Se me perguntarem qual é o adjectivo que
melhor caracteriza o tempo actual, concretamente neste país em que vivemos,
direi que esse adjectivo é “precário”. Dependendo do ponto de vista mas sempre
com a mesma conotação, admito que “instável” poderá ser escolhido
alternativamente.
É bem
conhecida a oposição entre as perspectivas de curto prazo e as de longo prazo.
Quem pensa em termos de curto prazo prefere negociatas a negócios, privilegia a
ocasião à estratégia à la longue,
cultiva uma imagem de rapidez de decisão e odeia a hesitação (“decidir, mesmo
que eventualmente não muito bem, é sempre melhor do que não decidir”). Quem
pensa assim, toma como sua uma cartilha de mudança constante, adora o poder e
surfa a onda que “está a dar”. Tem fraca cultura histórica, na qual aliás não vê
grande utilidade, porque o mundo está a alterar-se profundamente, pelo que o mundo
dos nossos dias é de tal forma novo e diferente dos anteriores que a propalada experiência
das pessoas mais velhas não tem validade maior do que a de um pente para carecas.
Esta é uma
forma de olhar o mundo com insistência no “já!” e no “agora!”, tendo
possivelmente em mente a reflexão keynesiana de que a longo prazo estamos todos
mortos. A vida é para se viver. Instante a instante. Carpe diem! Quem não gosta, que se adapte! Se não o fizer, tanto
pior para ele!
Estamos num
mundo de desregulação, ou de liberalização, como lhe queiramos chamar. Quem tem
unhas é que toca guitarra. Se uns têm mais poder e são ricos é, quase com
certeza, porque se adaptaram melhor à mudança. Constituem em certa medida um
paralelo ao grupo dos dirigentes da sociedade romana. Fareed Zakaria
lembra-nos, em O Futuro da Liberdade,
que “enquanto a Grécia deu ao mundo a filosofia, a literatura, a poesia e a
arte, Roma deu-nos os pressupostos do governo limitado e o Estado de Direito. O
ponto mais frágil da lei de Roma residia no facto de, na prática, não se
aplicar à classe dirigente.” Ora, este último ponto é assaz relevante para os
tempos de hoje. A desigualdade que resulta da competição ou concorrência
liberalizada justificar-se-á inteiramente. Essa desigualdade é apenas o produto
de uma melhor adaptação aos tempos, tal como as espécies estudadas por Darwin
mostraram que os animais que sobrevivem são aqueles que melhor se adaptam ao
ambiente que os rodeia.
Os aspectos
éticos que subjazem a comportamentos que seriam antigamente criticáveis, como a
colocação de enormes lucros em centros offshore
para evitar pagar vultosas parcelas de capital ao Estado, são atirados para
debaixo do tapete. Os fracos que os invocam e censuram não têm, infelizmente
para eles, unhas para o fazer. É tudo um problema de aptidão e de selecção de
pessoas. A oligarquia justifica-se a si mesma. Há fracos e fortes na sociedade.
Segundo a cartilha, é justo que sejam os fortes, para bem de todos, a definir
as leis.
E que leis?
Qual o lugar a atribuir à maioria dos mais fracos? Primeiro, terão que aprender
a não “dormir na forma”. Assim produzirão mais. A produção está na base de
tudo. Só manduca quem trabuca. Viver à custa dos outros amolece as pessoas. Há,
por isso, que lhes criar instabilidade. Não deixar que ganhem raízes. Cada um
deverá mostrar o que vale, dia após dia. A produção irá com certeza aumentar.
As desigualdades poderão manter-se e até alargar-se, mas esse até acaba por ser
um bom sinal. Quem parte e reparte, e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou
não tem arte. Aqui a classe dirigente não é tola. De facto, são uns verdadeiros
artistas.
Se entre o
forte e o fraco a liberdade oprime e só a lei liberta, importa controlar a lei.
Fechar o circuito. Controlar tudo. Quem, entre os juízes, tiver pruridos
éticos, deverá ser liminarmente afastado mais tarde ou mais cedo.
Preferivelmente, mais cedo. Criar instabilidade entre os juízes é também uma
política correcta.
O ideal para
um patrão, que é quem manda, consiste na possibilidade de, com
responsabilidades mínimas da sua parte, dispor das pessoas que com ele
colaboram. Assim, idealmente, uma firma terá um pequeno núcleo duro de
empregados fiéis, mas todos os restantes serão angariados segundo as
necessidades da firma. A lei deverá permitir-lhe dispensar os empregados que ele
achar conveniente e, eventualmente, readmiti-los mais tarde com um salário mais
baixo. Se cada um souber que o seu lugar não está garantido, todos trabalharão
com muito mais afinco para impressionar bem e manter o posto de trabalho. A
precariedade laboral tem as suas vantagens. É possível que daí resulte que um
casal de trabalhadores não se sinta com estabilidade suficiente para casar,
comprar uma casa – imóvel – e ter filhos, mas isso é um problema de cada um. Se
existir uma volumosa bolsa de desempregados, haverá sempre possibilidade de
recrutar as pessoas certas a preços competitivos. E, se provar mal, o defeito é
dele. Rua!
Há uns largos
anos já, criou-se, salvo erro nos Estados Unidos, o just in time, por vezes abreviados para jit. Do ponto de vista da gestão, o just in time justifica-se perfeitamente. Tomemos o caso de uma
farmácia, que tem necessidade de possuir um largo stock de medicamentos para atender as sempre inesperadas levas de
pessoas que surgem com as mais diversas receitas. Para ter esse largo stock de medicamentos, a farmácia teria
de dispor de um espaço enorme e de um substancial fundo de maneio. Tudo se
resolve, porém, se usarmos o just in time.
Graças a este sistema, o proprietário da farmácia terá no seu estabelecimento
apenas umas tantas unidades dos medicamentos mais comummente receitados. Um
telefonema ou um e-mail para uma
central de compras à qual a farmácia está agregada pode resolver-lhe o problema
passadas umas horas, ou eventualmente até menos. Com isto, a existência de um
vultoso fundo de maneio torna-se desnecessária e, no estabelecimento, passa a
existir mais espaço, por exemplo para vender produtos cosméticos que conferem
uma óptima margem de lucro ao proprietário.
E se, em vez
de medicamentos, uma firma pudesse aplicar este sistema a muitos dos seus
empregados? Colocá-los-ia em stand-by,
pagando-lhes um mínimo nos dias em que não fossem necessários, e compensando-os
depois com um largo número de horas de trabalho, as que fossem precisas, para
resolver casos de urgência ou os chamados “picos” laborais. Não haveria
estritamente nenhum vínculo laboral, mas o empregado-precário saberia que
poderia eventualmente contar com a firma sempre que houvesse laboração que o
exigisse. Just in time.
As novas leis
laborais portuguesas caminham neste sentido. A parte leonina cabe cada vez mais
ao patronato, que beneficia dos enxames de pessoas em busca de trabalho, quase
que a qualquer preço.
Mas não são só
as leis laborais que se modificam, como se poderia prever. As mudanças vão
igualmente incidir sobre a componente mais essencial ao homem: a habitação. A
liberalização das rendas de casa antigas, i.e., os contratos anteriores a 1990,
será a próxima grande bomba social a deflagrar. Não só muita gente será
despejada por impossibilidade de cumprimento de rendas especulativas, como
também a nova lei, aprovada na Assembleia da República apenas pelos partidos
que detêm o poder, trará a sua componente forte de precariedade: os novos
contratos terão, por norma, a extensão de… dois anos. Mais instabilidade. De
dois em dois anos, os senhorios disporão da possibilidade de não renovar os respectivos
contratos. O que isto significa em termos de instabilidade é indizível.
Compram-se móveis para uma casa, onde ficam bem, que podem não caber na outra
para onde as pessoas se vejam obrigadas a mudar. Criam-se hábitos de vizinhança,
que podem perder-se totalmente passado o biénio. A regra é: não deixar criar
raízes. A instabilidade é uma virtude, a estabilidade um vício. Daí que também
o Estado não deva continuar a garantir postos de trabalho a ninguém, salvo a um
núcleo duro essencial para dar continuidade a determinadas secções e
departamentos.
Esta
precariedade lembra-me, e de que maneira, o que vi na Índia. E se não vi
noutros países do sudeste asiático foi porque não fui lá. Aí também é possível obrigar
um homem a fazer “uma directa” de trabalho, sem se deitar, para ter de manhã
pronta uma encomenda para o cliente que parte cedo no dia seguinte. Just in time!
Esta instabilidade e a não-criação de raízes passam também para o
mundo da natureza florestal. De onde vem mais rapidamente dinheiro: do pinheiro
ou do eucalipto? Em termos de rapidez – o tal “já!” e “agora!” – o eucalipto
vence sem qualquer dúvida o pinheiro. Ou o sobreiro. Pois o que está na forja
(em fase adiantada)? Lembrando o conhecido aforismo que nos diz que “A
ignorância e a criatividade, quando no poder, constituem uma mistura
explosiva”, a nova legislação prevista vai permitir que áreas inferiores a
cinco hectares, mas na prática até dez hectares, incluindo áreas de regadio,
sejam facilmente convertidas em eucaliptais. Os lobbies das celuloses rejubilam. O país já está a arder.
Preparam-se novas terras para que os eucaliptos possam medrar. Um eucaliptal
não é uma floresta, constituída como toda a floresta por ervas, arbustos e
árvores. Um eucaliptal tem eucaliptos. Unicamente. Esgota facilmente de toda a
água a terra onde é plantado. É essa água, juntamente com o sol e com o solo,
que alimenta a árvore e a faz crescer rapidamente.
Disse há dias na
televisão uma habitante da serra algarvia que viu muitos dos seus tradicionais
sobreiros serem devorados por chamas assassinas: “Estou triste. Fiquei sem
nada. Nem uma árvore tenho para deixar aos meus filhos!”
Este
pensamento de deixar árvores para os filhos é exactamente o oposto da política
actual. Lucros rápidos, exportações a crescerem e o país a deteriorar-se cada
vez mais, comprometendo seriamente o seu futuro. Nem os pinheiros, nem os
sobreiros devem poder criar raízes. Instabilidade lucrativa. Criatividade
destruidora. O capitalismo no seu melhor!
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