7/23/2012

Curto vs. longo prazo


          Se me perguntarem qual é o adjectivo que melhor caracteriza o tempo actual, concretamente neste país em que vivemos, direi que esse adjectivo é “precário”. Dependendo do ponto de vista mas sempre com a mesma conotação, admito que “instável” poderá ser escolhido alternativamente.

É bem conhecida a oposição entre as perspectivas de curto prazo e as de longo prazo. Quem pensa em termos de curto prazo prefere negociatas a negócios, privilegia a ocasião à estratégia à la longue, cultiva uma imagem de rapidez de decisão e odeia a hesitação (“decidir, mesmo que eventualmente não muito bem, é sempre melhor do que não decidir”). Quem pensa assim, toma como sua uma cartilha de mudança constante, adora o poder e surfa a onda que “está a dar”. Tem fraca cultura histórica, na qual aliás não vê grande utilidade, porque o mundo está a alterar-se profundamente, pelo que o mundo dos nossos dias é de tal forma novo e diferente dos anteriores que a propalada experiência das pessoas mais velhas não tem validade maior do que a de um pente para carecas.

Esta é uma forma de olhar o mundo com insistência no “já!” e no “agora!”, tendo possivelmente em mente a reflexão keynesiana de que a longo prazo estamos todos mortos. A vida é para se viver. Instante a instante. Carpe diem! Quem não gosta, que se adapte! Se não o fizer, tanto pior para ele!

Estamos num mundo de desregulação, ou de liberalização, como lhe queiramos chamar. Quem tem unhas é que toca guitarra. Se uns têm mais poder e são ricos é, quase com certeza, porque se adaptaram melhor à mudança. Constituem em certa medida um paralelo ao grupo dos dirigentes da sociedade romana. Fareed Zakaria lembra-nos, em O Futuro da Liberdade, que “enquanto a Grécia deu ao mundo a filosofia, a literatura, a poesia e a arte, Roma deu-nos os pressupostos do governo limitado e o Estado de Direito. O ponto mais frágil da lei de Roma residia no facto de, na prática, não se aplicar à classe dirigente.” Ora, este último ponto é assaz relevante para os tempos de hoje. A desigualdade que resulta da competição ou concorrência liberalizada justificar-se-á inteiramente. Essa desigualdade é apenas o produto de uma melhor adaptação aos tempos, tal como as espécies estudadas por Darwin mostraram que os animais que sobrevivem são aqueles que melhor se adaptam ao ambiente que os rodeia.

Os aspectos éticos que subjazem a comportamentos que seriam antigamente criticáveis, como a colocação de enormes lucros em centros offshore para evitar pagar vultosas parcelas de capital ao Estado, são atirados para debaixo do tapete. Os fracos que os invocam e censuram não têm, infelizmente para eles, unhas para o fazer. É tudo um problema de aptidão e de selecção de pessoas. A oligarquia justifica-se a si mesma. Há fracos e fortes na sociedade. Segundo a cartilha, é justo que sejam os fortes, para bem de todos, a definir as leis.

E que leis? Qual o lugar a atribuir à maioria dos mais fracos? Primeiro, terão que aprender a não “dormir na forma”. Assim produzirão mais. A produção está na base de tudo. Só manduca quem trabuca. Viver à custa dos outros amolece as pessoas. Há, por isso, que lhes criar instabilidade. Não deixar que ganhem raízes. Cada um deverá mostrar o que vale, dia após dia. A produção irá com certeza aumentar. As desigualdades poderão manter-se e até alargar-se, mas esse até acaba por ser um bom sinal. Quem parte e reparte, e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte. Aqui a classe dirigente não é tola. De facto, são uns verdadeiros artistas.

Se entre o forte e o fraco a liberdade oprime e só a lei liberta, importa controlar a lei. Fechar o circuito. Controlar tudo. Quem, entre os juízes, tiver pruridos éticos, deverá ser liminarmente afastado mais tarde ou mais cedo. Preferivelmente, mais cedo. Criar instabilidade entre os juízes é também uma política correcta.

O ideal para um patrão, que é quem manda, consiste na possibilidade de, com responsabilidades mínimas da sua parte, dispor das pessoas que com ele colaboram. Assim, idealmente, uma firma terá um pequeno núcleo duro de empregados fiéis, mas todos os restantes serão angariados segundo as necessidades da firma. A lei deverá permitir-lhe dispensar os empregados que ele achar conveniente e, eventualmente, readmiti-los mais tarde com um salário mais baixo. Se cada um souber que o seu lugar não está garantido, todos trabalharão com muito mais afinco para impressionar bem e manter o posto de trabalho. A precariedade laboral tem as suas vantagens. É possível que daí resulte que um casal de trabalhadores não se sinta com estabilidade suficiente para casar, comprar uma casa – imóvel – e ter filhos, mas isso é um problema de cada um. Se existir uma volumosa bolsa de desempregados, haverá sempre possibilidade de recrutar as pessoas certas a preços competitivos. E, se provar mal, o defeito é dele. Rua!

Há uns largos anos já, criou-se, salvo erro nos Estados Unidos, o just in time, por vezes abreviados para jit. Do ponto de vista da gestão, o just in time justifica-se perfeitamente. Tomemos o caso de uma farmácia, que tem necessidade de possuir um largo stock de medicamentos para atender as sempre inesperadas levas de pessoas que surgem com as mais diversas receitas. Para ter esse largo stock de medicamentos, a farmácia teria de dispor de um espaço enorme e de um substancial fundo de maneio. Tudo se resolve, porém, se usarmos o just in time. Graças a este sistema, o proprietário da farmácia terá no seu estabelecimento apenas umas tantas unidades dos medicamentos mais comummente receitados. Um telefonema ou um e-mail para uma central de compras à qual a farmácia está agregada pode resolver-lhe o problema passadas umas horas, ou eventualmente até menos. Com isto, a existência de um vultoso fundo de maneio torna-se desnecessária e, no estabelecimento, passa a existir mais espaço, por exemplo para vender produtos cosméticos que conferem uma óptima margem de lucro ao proprietário.

E se, em vez de medicamentos, uma firma pudesse aplicar este sistema a muitos dos seus empregados? Colocá-los-ia em stand-by, pagando-lhes um mínimo nos dias em que não fossem necessários, e compensando-os depois com um largo número de horas de trabalho, as que fossem precisas, para resolver casos de urgência ou os chamados “picos” laborais. Não haveria estritamente nenhum vínculo laboral, mas o empregado-precário saberia que poderia eventualmente contar com a firma sempre que houvesse laboração que o exigisse. Just in time.

As novas leis laborais portuguesas caminham neste sentido. A parte leonina cabe cada vez mais ao patronato, que beneficia dos enxames de pessoas em busca de trabalho, quase que a qualquer preço.

Mas não são só as leis laborais que se modificam, como se poderia prever. As mudanças vão igualmente incidir sobre a componente mais essencial ao homem: a habitação. A liberalização das rendas de casa antigas, i.e., os contratos anteriores a 1990, será a próxima grande bomba social a deflagrar. Não só muita gente será despejada por impossibilidade de cumprimento de rendas especulativas, como também a nova lei, aprovada na Assembleia da República apenas pelos partidos que detêm o poder, trará a sua componente forte de precariedade: os novos contratos terão, por norma, a extensão de… dois anos. Mais instabilidade. De dois em dois anos, os senhorios disporão da possibilidade de não renovar os respectivos contratos. O que isto significa em termos de instabilidade é indizível. Compram-se móveis para uma casa, onde ficam bem, que podem não caber na outra para onde as pessoas se vejam obrigadas a mudar. Criam-se hábitos de vizinhança, que podem perder-se totalmente passado o biénio. A regra é: não deixar criar raízes. A instabilidade é uma virtude, a estabilidade um vício. Daí que também o Estado não deva continuar a garantir postos de trabalho a ninguém, salvo a um núcleo duro essencial para dar continuidade a determinadas secções e departamentos.

Esta precariedade lembra-me, e de que maneira, o que vi na Índia. E se não vi noutros países do sudeste asiático foi porque não fui lá. Aí também é possível obrigar um homem a fazer “uma directa” de trabalho, sem se deitar, para ter de manhã pronta uma encomenda para o cliente que parte cedo no dia seguinte. Just in time!

 Esta instabilidade e  a não-criação de raízes passam também para o mundo da natureza florestal. De onde vem mais rapidamente dinheiro: do pinheiro ou do eucalipto? Em termos de rapidez – o tal “já!” e “agora!” – o eucalipto vence sem qualquer dúvida o pinheiro. Ou o sobreiro. Pois o que está na forja (em fase adiantada)? Lembrando o conhecido aforismo que nos diz que “A ignorância e a criatividade, quando no poder, constituem uma mistura explosiva”, a nova legislação prevista vai permitir que áreas inferiores a cinco hectares, mas na prática até dez hectares, incluindo áreas de regadio, sejam facilmente convertidas em eucaliptais. Os lobbies das celuloses rejubilam. O país já está a arder. Preparam-se novas terras para que os eucaliptos possam medrar. Um eucaliptal não é uma floresta, constituída como toda a floresta por ervas, arbustos e árvores. Um eucaliptal tem eucaliptos. Unicamente. Esgota facilmente de toda a água a terra onde é plantado. É essa água, juntamente com o sol e com o solo, que alimenta a árvore e a faz crescer  rapidamente.

Disse há dias na televisão uma habitante da serra algarvia que viu muitos dos seus tradicionais sobreiros serem devorados por chamas assassinas: “Estou triste. Fiquei sem nada. Nem uma árvore tenho para deixar aos meus filhos!”

Este pensamento de deixar árvores para os filhos é exactamente o oposto da política actual. Lucros rápidos, exportações a crescerem e o país a deteriorar-se cada vez mais, comprometendo seriamente o seu futuro. Nem os pinheiros, nem os sobreiros devem poder criar raízes. Instabilidade lucrativa. Criatividade destruidora. O capitalismo no seu melhor!

Sem comentários:

Enviar um comentário