12/01/2006

Palaviagens

Este palavrão pretende ser uma das coisas que, admito, mais me distraem: viagens através de palavras. O mundo é tão grande e diverso, as gentes tão diferentes entre si - e ao mesmo tempo com necessidades básicas tão iguais -, o ambiente que nos rodeia tão dessemelhante por vezes, que nada há de mais natural que a comunicação seja feita babelicamente através de formas distintas e comparações divergentes. Seja como for, há muitas formas linguísticas que se inserem no mesmo tronco.
Pessoalmente, tenho conhecimento de poucas línguas. Nada sei de idiomas orientais, não entendo nem turco nem finlandês, a linguagem índia é-me totalmente desconhecida e de alguma africana só possuo uns ténues rudimentos. Daqui resulta que estou reduzido à minha língua materna, a algum conhecimento de latim e grego como línguas mortas, um pouco de espanhol e italiano como todo o português que se preza, francês, inglês e alemão q.b.
Mesmo assim, isto não impede que faça pequenas ou grandes viagens através de palavras. São viagens que tenho que interromper ao fim de cinco minutos de correria cerebral, ligações e hiperligações. A malha entretece-se de tal maneira que a certa altura é melhor largá-la, para a retomar noutra ocasião.
Ainda há pouco, encontrei num problemazito de palavras cruzadas "ausência de vontade de comer". A palavra-solução era fastio. Fastio acordou em mim o fast, inglês, que significa jejum. Passei naturalmente ao breakfast, que é a quebra do jejum geralmente designada entre nós por "pequeno-almoço". O desayuno espanhol, entretanto, dá-nos a mesma ideia. Lembrando-nos do francês, vemos que jeûner significa jejuar, donde déjeuner (almoço) é, no fundo, desjejuar. Por arrasto, o primeiro desdejum é chamado petit-déjeuner, construção que também permitiu que nós, portugueses, chegássemos ao pequeno-almoço ("mata-bicho" na versão popular. Este "bicho" continua a viver entre nós quando dizemos que "não tenho verdadeiramente fome, mas sinto aqui um bichinho..."). Já agora, o disjunare latino (quebrar o jejum) acabou por produzir também o dîner francês, que por sua vez deu o dinner inglês. Chegamos à conclusão de que o princípio que está na base dos nomes de uma boa série de refeições é o estado de sem comida. É uma lógica como qualquer outra ("o que está vazio precisa de ser enchido").
Estas palavras cruzadas trouxeram-me outra questão: um sinónimo de lagoa. Pensei em lago, mas a solução era algo que fiava mais fino. Através da combinação horizontais-verticais cheguei a palude. Fez-se-me luz. Transportei-me de regresso ao rio Cuanza na africana Angola e lembrei-me daquelas lagoas que se formavam na estação das chuvas e que posteriormente, com o calor e falta de contacto com o grande rio que as tinha formado, ficavam pejadas de infernais mosquitos. O paludismo! Desta vez, a descoberta da palavra - claro que palavra foi há muito descoberta e terá sido criada exactamente por causa disso, mas quando descobrimos algo por nós próprios trata-se pelo menos de uma descoberta pessoal - causou em mim satisfação, o que contrasta positivamente com as picadas dos anófeles que infestam aquelas paragens.
O alemão é das línguas que mais me ajudam neste entendimento das coisas. Ao não ser uma mera correia de transmissão do francês, ao contrário de milhentos vocábulos ingleses, a língua alemã analisou os conceitos e deu-lhes as formas correspondentes. Vou dar apenas dois exemplos para ilustrar o que quero dizer. Tomemos a palavra Presidente. Em alemão existe uma forma derivada do latim e outra germânica. A forma germânica é Vorsitzender, o que literalmente significa "aquele que se senta em frente". Só então verificamos que o nosso "presidente" também tem a ver com isso. O pre dá-nos a ideia de antes, ante ou perante. Juntemos-lhe o sidente, que tem naturalmente a ver com palavras como sítio, sede e sedentário, esta última a significar "que está no mesmo sítio". É a imobilidade de quem se senta em frente que lhe dá a posse da cadeira principal, um elemento que surge no inglês chairman. Esta imobilidade não indica inacção mas sim imparcialidade, o não se virar particularmente nem para uma parte nem para outra, ser imparcial. Admito que eu não teria chegado lá sem o Vorsitzender alemão.
Uma outra raiz vocabular germânica para mim de grande utilidade foi Druck, que basicamente significa "pressão". Como em francês e inglês temos préssion e pressure, semelhantes ao vocábulo português, não pensamos mais nisso. Mas quando o germânico Druck nos aparece é diferente, como em Eindruck e Ausdruck. No primeiro caso existe um prefixo que corresponde ao inglês in ou im (para dentro), no segundo um outro que corresponde a out ou a ex (para fora). De repente as palavras são re-aprendidas no seu significado mais profundo. Impressão passa a significar uma pressão, mais ou menos profunda, em qualquer coisa, e expressão uma pressão que sai. Daqui entendermos que a necessidade de nos livrarmos de uma pressão grande que nos avassala possa ser vital. Aliviamos a pressão através de algo que sai, i.e. através da expressão, que pode ser naturalmente feita por meio da comunicação oral, da escrita, da pintura e de mais mil e uma formas.
Da mesma maneira que aprendemos a ver o nosso país com olhos diferentes cada vez que vamos lá fora e tomamos contacto com outras realidades, também passamos a olhar diferentemente a língua que usamos depois de termos contacto com idiomas estrangeiros através das nossas viagens. Este horizonte alargado é a grande virtude das palaviagens.

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