Sou assinante de revistas americanas há mais de 40 anos. Fosse nos anos 60, na década de 70, na de 80 ou na de agora, sempre notei uma significativa predominância ao longo dos anos de capas dessas revistas com referências ao Médio Oriente. O envolvimento de Israel era e é notório. Isto significa que um pequeno país como Israel representa muito para os interesses americanos. É normal, porém, que isso suceda. Não só os Estados Unidos estão de há muito interessados no petróleo do Médio Oriente, como o facto de ali possuírem uma "lança na Ásia" lhes é extremamente importante.
Israel é um estado sui generis. Nenhum outro que eu conheça foi aprovado pela ONU com base em direitos históricos. Uma bem orquestrada campanha a favor dos judeus, simulada como acto de contrição feito pelo Ocidente para se remir dos pecados de uma nação ocidental - a hitleriana Alemanha - conseguiu colocar Israel no mapa em 1948. A decisão foi tomada em Nova Iorque, que recebera entretanto a sede das Nações Unidas e assim mostrava os efeitos benéficos de se jogar em casa. O facto de o território do novo estado de Israel estar ocupado não constituiu óbice de monta. Começava a revelar-se aqui uma verdadeira assimetria de poderes, que hoje é porventura ainda mais visível. É esta profunda diferença entre um Israel que é tratado como ponta de lança avançada dos Estados Unidos naquela região do globo, equipado e protegido pela nação militarmente mais bem apetrechada do mundo, e a maioria dos habitantes dos países circunvizinhos habitados por povos de diferentes religiões, que tem levado a numerosos conflitos passados, os quais tenderão sem dúvida a continuar no futuro.
Hoje, 58 anos volvidos da constituição de Israel, continua a mesma guerra inicial. O que se passa neste momento é a mera continuação de uma raiva surda entre aquele espinho para os muçulmanos e a luta pela sobrevivência dos habitantes de Israel. Se me disserem que um rapaz ou uma rapariga, de 26 ou 36 anos, de nacionalidade israelita, sentem aquela como sua pátria e estão dispostos a dar a vida por ela, considero isso perfeitamente natural. Se me disserem que, se Israel perder uma guerra perderá a sobrevivência, concordo também. Portanto, já que existe tem necessidade de se defender. E contudo...
O que se vê é que as nações mais poderosas militarmente são também as mais poderosas mediaticamente. Para começar, verifique-se que o mundo pouco sabe da criação de Israel, do protectorado britânico que o precedeu, da passagem de testemunho da Grã-Bretanha aos Estados Unidos após a 2ª Guerra Mundial. Os relatos começam geralmente ontem. Não se começa a História onde ela verdadeiramente tem início. Começa-se onde mais convém a cada uma das partes.
Tzipi Livni, a actual ministra dos Negócios Estrangeiros de Israel, disse numa entrevista que as resoluções 1559 e 1680 das Nações Unidas determinaram a necessidade de o governo libanês ser soberano em toda a extensão do seu território e de desmantelar todas as milícias, incluindo o Hezbollah. O governo libanês não terá cumprido essa determinação da ONU, motivo pelo qual Israel teve toda a razão em lançar um ataque contra o Líbano - apenas em resposta a um primeiro ataque do Hezbollah. Vemos mais uma vez que a história começa aqui e agora, porque é aqui que convém. Não houve provocações anteriores dos israelitas na zona, como por exemplo o sequestro de ministros palestinianos e o que se passou e passa em Gaza. Escamoteia-se inteiramente que há várias resoluções tomadas nas Nações Unidas não cumpridas por Israel. Entre elas, algo tão importante como o abandono de áreas específicas que os israelitas foram ilegalmente ocupando. A pergunta coloca-se: e se os israelitas não quiserem acatar essas resoluções, quem é que os obriga, protegidos como estão pelos Estados Unidos? Aqui temos a assimetria de poderes em colisão com um teórico direito internacional. Porém, quando é para os adversários, esse direito é mesmo para cumprir. Dois pesos, duas medidas. Filhos e enteados, como se diz em português corrente.
Se os palestinianos não reconhecem o Estado de Israel, isso é um sacrilégio. Se os israelitas, sempre secundados pelos Estados Unidos, não reconhecem a existência de um Estado Palestiniano, isso é questão de somenos importância.
Se armas para o Hezbollah provêm, não comprovadamente, do Irão, estamos em presença do eixo do mal. Se armas americanas apetrecham o exército israelita com equipamento ultra-moderno que se destinava ao Iraque ou que veio urgentemente dos EUA com passagem por um aeroporto do Reino Unido, está tudo bem. É apenas o eixo do bem a funcionar.
Condoleeza Rice surge no Médio Oriente como grande juíza do mundo. Ela decide se vai haver cessar-fogo imediato ou se vai continuar o despejo de bombas, matando e ferindo centenas de libaneses, na esmagadora maioria civis, incluindo mulheres e crianças. Prossegue a destruição escandalosa de edifícios que reduzem bairros inteiros de Beirute e outras cidades a montes de destroços e ruínas, tal como já tinham sido destruídos da forma mais cruel depósitos de água essenciais para a vida das pessoas na faixa de Gaza. E parece que já ninguém estranha que seja uma diplomata dos EUA a vir dar ordens!
Os media mostram fotografias do lado israelita com um destaque diferente do que dão ao outro lado. Israelitas atingidos por mísseis são frequentemente identificados ("uma rapariga de 15 anos e um homem de 76"). Do outro lado é apresentado geralmente apenas o número de mortos e diz-se algo como "na maioria civis". Quantas crianças têm sido mortas pelos ataques israelitas na Palestina? Há entrevistas com políticos israelitas, mas alguém procura a opinião de políticos e de universitários do outro lado?
O argumento dos falcões é sempre o mesmo: "a guerra é necessária para alcançar a paz." Na realidade, não é a paz que se alcança, mas sim a submissão dos vencidos aos vencedores. Entretanto, os Estados Unidos e Israel conseguem fazer quase o pleno: pôr a maioria das pessoas do mundo contra si. Até unem o mundo muçulmano e árabe, o que é difícil. Um velho provérbio daqueles lados diz, na sua simplicidade, "Eu e o meu irmão podemos estar contra o nosso primo. Mas eu, o meu irmão e o nosso primo estaremos juntos contra um estranho."
Da parte dos EUA vem o mesmo cinismo que ainda recentemente tivemos ocasião de presenciar no Iraque: dinheiro para a reconstrução. Os EUA anunciaram o seu contributo de 24 milhões de dólares como ajuda para os estragos causados pelas bombas (dos aliados Israel-EUA). Como essa ajuda se materializará é outra questão. Por seu lado, Israel apresenta imediatamente a sua própria factura: diz que na sua zona norte, com a paralisação industrial, está a perder 111 milhões de euros por dia. Em face do número de mortos e do nível de destruição, "dez olhos por um olho", "cem dentes por um dente", este é um caso típico de fazer o mal e a caramunha. Mas é assim que actua o eixo do bem.
Muitos dos media, obedientemente, publicam tudo, sem destrinçar propaganda do resto. Na maior parte dos casos usam terminologia parcial. Seja no Iraque, seja na Palestina ou no Líbano, não há nacionalistas nem resistentes. Há apenas rebeldes, insurrectos e terroristas. Entretanto, bombas e mísseis continuam a cair de forma perfeitamente assimétrica em território libanês e israelita, enquanto se discute o cessar-fogo no edifício das Nações Unidas, com o veto americano a actuar. Quantos inocentes mais terão ainda de morrer, quantos milhares de pessoas mais ficarão sem as suas casas e com as vidas destruídas até os senhores do mundo se decidirem a dar a guerra por finda?
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