7/16/2006

O renascimento do Nolasco

O dia tinha estado quentíssimo, a lembrar tanto o calor de ananazes do Eça como os considerandos de Baudelaire sobre Lisboa no verão. A temperatura estava ainda muito elevada e sem a menor brisa, mas decidi dar um pequeno giro pela área. Já passava das oito e apetecia-me dar exercício às pernas.
Os "cinco minutos" que, ao sair, atirei para dentro de casa para quem quisesse ouvir, acabariam por transformar-se em muitos mais. Andei pouco, porém. Duzentos metros após sair a porta encontrei o Nolasco, vizinho de longa data mas com quem só cheguei à fala pela primeira vez há uns meses. A bem dizer, o Nolasco não é meu vizinho. É frequentador habitual da rua onde moro, onde reside também a sua mãe, senhora já de idade avançada. Com aquela canícula, o Nolasco levava-lhe dois garrafões de água que comprara num supermercado perto. Todo o cuidado é pouco para uma mãe que vive só.
Sujeito alto e moreno, de olhos vivos e completamente calvo, o Nolasco gosta de conversar. "Um chato!", tinha-me dito o meu amigo da papelaria quando pela primeira vez lhe perguntei quem era o personagem. "É confuso na conversa. E não despega!"
Pessoas como o Nolasco não são exactamente novidade para ninguém. Garantem, a determinada altura de uma conversa introdutória, que não nos vão contar a história da sua vida. Torna-se mais do que óbvio que é precisamente isso que vão fazer. Foi assim que eu soube pela boca do próprio do seu entusiasmo pela história e, muito particularmente, pela heráldica. Não sendo titular de nenhuma licenciatura, é um genuíno autodidacta. Vive o assunto com paixão.
De mim, o Nolasco sabe apenas que sou capaz de o acompanhar nas suas divagações históricas e que não comungo de várias das suas ideias. Compreendeu, além disso, que, ó sacrilégio!, não nutro o mínimo interesse pela heráldica. Mesmo assim, não lhe desgosta falar comigo.
Foi por isso que quando nos encontrámos frente a frente, ele a subir a rua na direcção da casa da mãe e eu pronto a dar uma pequena volta, o Nolasco se sentiu momentaneamente aliviado de dois pesos: o de carregar os garrafões, que de pronto colocou no chão, e o de ir em pura cogitação solitária, já com umas gotas de transpiração sobre a testa e a calva.
E como ia o Nolasco? "Bem," respondeu-me. "E o meu amigo?" (O Nolasco sabia quem eu era, mas admitiu a meio da conversa não se lembrar concretamente do meu nome.) Falei-lhe do carrego que ele levava num dia tão quente como aquele. "Isto para mim não é nada! Vou fazer 70 anos agora em Agosto e sinto-me muito bem!"
Murmurei qualquer coisa sobre a necessidade de se fazer exercício físico e recordei aquela regra de ouro que diz que o uso faz o órgão. Acrescentei, sorrindo, que a frase não se aplicava apenas ao órgão em que ele estava a pensar mas sim a tudo o que é exercitado. Sem o saber, estava a dar-lhe a deixa. "Meu amigo, não tenho nada que lhe contar isto, mas se não se importa de me ouvir..." Sugeri-lhe apenas que nos resguardássemos atrás do tronco de uma árvore de grande porte que tínhamos ali ao pé. Assim, pelo menos o sol poente não nos feriria os olhos.
Quando eu esperava que o Nolasco fosse direito ao assunto que se propunha partilhar comigo, notei que ele começava a fazer uma larga divagação sobre a sua mulher, "com quem nunca me dei bem". Tinham tido um único filho que, tal como ele, já estava a fazer carreira na escrituração comercial. A mulher e ele discutiam vezes demais. "Por causa disso, é pessoa em quem não toco há anos e anos!" Por um momento, passou-me pela cabeça que o Nolasco me ia falar de impotência sexual, mas o brilho que lhe ia nos olhos fez-me imediatamente dissipar essa conjectura. Depois de umas tiradas algo amargas sobre a sua vida conjugal, pôs-se de súbito a elogiar a esposa sob o ponto de vista profissional. Gabou-lhe as muitas qualidades que ela sempre tinha patenteado nas várias empresas em que trabalhara.
Ainda no seu extenso circunlóquio inicial, o Nolasco atirou-me com uns textos em que Salomão entrava como protagonista. Entendi que estava a enveredar pela Bíblia. Porquê?
Tudo era, afinal, uma justificação para o facto de ele andar naquela altura com uma mulher. Ele, que nunca tal tinha feito! Ainda por cima tratava-se de uma mulher casada. O crime parecia-lhe maior. "Ela tem 52 anos. Andava sempre triste. O marido é uma óptima pessoa mas, coitado, com a sua doença renal não só carece dos cuidados dela - que é extremamente zelosa - como não pode ter relações com a mulher." Aí, vi que o Nolasco estava finalmente a chegar ao assunto. "O problema é ser com uma mulher casada!", dizia-me ele. "Tem marido!" Para o descontrair, contei-lhe uma breve anedota a propósito. Riu-se. Lembrei-lhe que aquilo que afecta as pessoas não é o facto em si, mas sim o conhecimento do facto. "Desde que o marido não saiba, ele não se sente infeliz." Senti-me mal ao dizer isto, admito, mas o Nolasco precisava de desabafar com alguém.
Aí garantiu-me que o marido de nada saberia. Ele e a Lídia faziam tudo com muita discrição. E aparecia agora o grande motivo de satisfação do Nolasco: "Ela está muito admirada comigo. No outro dia, disse-me que eu parecia um rapaz de 21 ou 22 anos!" Tanta precisão na idade fez-me levantar algumas suspeitas, que naturalmente não expressei. O Nolasco deverá no entanto ter entrevisto algo, porque se apressou a dizer-me: "Jurámos mutuamente total fidelidade. Ela não anda com outro, eu não ando com mais ninguém! E sinto-me diferente! Sabe, acho que foi por me poupar tanto durante anos e anos que agora estou assim." Fiz-lhe notar que isso ia um pouco contra a ideia de o uso fazer o órgão, mas ambos passámos logo à frente, porque factos são factos e, afinal, regras não passam de teorias, que até admitem excepções.
A sua Lídia e ele podiam continuar com a sua relação por muito tempo. Ela recuperara a alegria, ele redescobrira o sexo. A sua amada, "que foi ela que se atirou a mim, começou a encostar-se tanto que eu não pude deixar de ceder", continua a cuidar desveladamente do marido, que esse é ponto assente. Quanto ao resto... Tentei sossegá-lo, pois a sua profunda formação católica continuava a mostrar alguns constrangimentos. "O resto conta pouco, amigo Nolasco. Tanto você como ela só têm uma vida. Se de facto não prejudicam ninguém e retiram prazer da vossa relação, que mal há nisso?"
O meu bem-intencionado passeio antes do jantar já ia longo no tempo, embora curtíssimo no trajecto. Despedimo-nos. O Nolasco reatou a marcha rua acima, com os seus dois garrafões. Olhei-o bem. Não caminhava exactamente com o vigor de um rapaz de 21 ou 22 anos. Pelo contrário, arrastava-se, ultra-devagar. Porém, não é verdade que, para um homem de 69 anos, irrepreensivelmente fiel até então à sua pouco estimada esposa, acarretar dez litros de água nada tem de parecido com fazer amor com uma jovem de 52?

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