11/04/2006

À distância

Lê-se no jornal: "Presidente afegão critica ataque da NATO que matou civis". Responsáveis falam em cerca de 60 vítimas, incluindo um grande número de civis. Há uma semana morreram nove civis numa outra operação da NATO em Kandahar. O pior incidente deste género terá ocorrido em Julho de 2002: um raide norte-americano matou 46 civis e deixou 117 feridos. A maioria das vítimas estava numa festa de casamento. A notícia lembra ainda que os pilotos chegaram a bombardear membros da força internacional, tendo havido um soldado canadiano morto por fogo vindo de aviões americanos em Setembro deste ano.
No Outono de 1898, o general britânico Kitchener, posteriormente agraciado com um grau honoris causa em Cambridge, abriu o vale do Nilo "à influência civilizadora dos empreendimentos comerciais". A vitória das suas tropas sobre os sudaneses em Omdurman significou a morte de 11 000 sudaneses, contra 48 britânicos. Uma desproporção imensa! Essa batalha constituiu um exemplo típico da morte à distância, uma especialidade europeia na altura. Nunca nenhum sudanês esteve a menos de 300 metros das tropas britânicas.
Antes da Revolução Industrial, a principal exportação europeia era a força. Por todo o resto do mundo, os europeus eram vistos como guerreiros nómadas ao estilo dos mongóis e dos tártaros. Enquanto estes estabeleciam a sua supremacia da garupa dos cavalos, os europeus faziam-no do convés dos seus navios. Mesmo povos que eram mais avançados do que os europeus - por exemplo, os indianos - não tinham navios capazes de resistir ao fogo de artilharia ou de transportar armas pesadas. Em vez de melhorarem a sua frota, os mogóis preferiram comprar serviços de defesa aos Estados europeus, que assim não tardaram a ver-se numa posição que lhes permitia assumir na Índia o papel de governadores. No século XVI, os europeus tornaram-se deuses de canhões que matavam muito antes de as armas dos seus opositores os atingirem. Trezentos anos mais tarde, esses deuses tinham conquistado um terço do mundo. Em última instância, o seu reinado assentava sobre o poder dos canhões dos seus navios.
Ao conceber o primeiro barco a vapor, Robert Fulton acabou por incrementar decisivamente o poderio militar de algumas nações, que assim começaram nos meados do século XIX a transportar canhões europeus para o interior da Ásia e da África, abrindo uma nova era na história do imperialismo. A canhoneira tornou-se um símbolo do imperialismo em todos os principais rios africanos - o Nilo, o Níger e o Congo - possibilitando aos europeus controlarem pela força das armas áreas imensas até aí inacessíveis.
E as espingardas? Bem, aí também os europeus atingiram uma superioridade absoluta. Até meados do século XIX a arma típica era o mosquete de pederneira, carregado pela boca e com cano de alma lisa. Era uma arma que podia ser igualmente fabricada pelos ferreiros dos povoados africanos. O alcance do mosquete não chegava a cem metros, embora fizesse um barulho assustador. Com a descoberta da espoleta e depois do cano de alma estriada, o mosquete melhorou extraordinariamente de precisão. Em 1853, os britânicos criaram as espingardas Enfield, que já tinham um raio de 500 metros mas ainda obrigavam os soldados a pôr-se de pé para dispararem. Foram usadas pela primeira vez nas colónias. Na Prússia, introduziram-se entretanto vários avanços técnicos nas espingardas. Em 1866, durante a guerra entre Berlim e Viena pela hegemonia da Alemanha, os prussianos conseguiam disparar sete vezes as suas espingardas no tempo que levava os austríacos, de pé, a carregar e disparar um tiro apenas. O resultado foi o previsível. Em 1869, os britânicos passaram para a Martini-Henry. Seguiram-se os franceses com a espingarda Gras e os prussianos com a Mauser, ainda usada pelo exército português na década de 1960. Assim, os europeus eram superiores a qualquer inimigo concebível dos outros continentes.
Imagine-se agora no século XXI em que nos encontramos. Os europeus e, particularmente os americanos, estão claramente à frente de todos nestes aspectos de tecnologia militar. É fácil destruir casas alvejando-as de bordo de um avião a uma considerável distância, ou atingi-las com mísseis de grande poder de destruição, ou ainda arrasá-las de dentro de um tanque armado. Tudo à distância.
Quando se trata de ocupar as zonas bombardeadas, de patrulhar estradas e ruas, aí o caso muda bastante de figura. Mas a primeira parte do show pode ser tão demolidora que leve imediatamente à rendição total: veja-se os casos de Hiroshima e Nagasaqui em 1945.
É sempre bom ter coisas deste tipo presentes quando vemos, ouvimos ou lemos as notícias.

Nota: Uma parte significativa desta informação foi retirada do livro de Sven Lindqvist Exterminem Todas as Bestas, publicado entre nós pela Caminho e que recomendo fortemente a todos os que se interessam por Colonialismo.

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