10/26/2011

A lição dos clássicos


Onde quer que se vá nesta cidade de Lisboa, independentemente das pessoas com quem se esteja, a crise estará presente nas conversas, na maneira triste dos olhares que nos fitam, na lamúria que escapa ao mais leve trejeito. Francamente, sinto-me cansado e, como eu, muitos dos meus concidadãos. Não admira que os últimos textos que escrevi para este blog tenham exactamente sido sobre a crise. Intoxicados nós todos, escrevemos ou falamos para nos desintoxicar – esquecendo que com isso estamos a contribuir para uma maior intoxicação de quem nos lê ou ouve.
É por ter consciência deste facto que me sinto hoje particularmente feliz por ter assistido a algo bem diferente e, sem dúvida, muitíssimo mais interessante do que todo o palavreado político.
O que foi? Em princípio, seria apenas mais uma conferência do ciclo "Antiguidade versus Contemporaneidade", que as Sugestões do João Miguel não deixaram de assinalar. Semanalmente, à terça-feira no ISCTE, tenho assistido a conferências sobre Arquitectura, Pintura e Cinema. Desta vez era sobre Literatura. Como professor que leccionou montes de anos e que portanto tem uma ideia do que é uma boa aula, eu daria uma nota muito próxima de 20 valores à Dra. Maria Cristina Pimentel, da Faculdade de Letras. A sua mais-valia começou pela escolha do material, que teve o cuidado de mandar fotocopiar para todos os presentes. Depois, continuou pela forma simples e alegre, entusiástica e entusiasmante, como o apresentou. Falar dos clássicos do mundo da literatura e ver como eles são ou foram transportados para o mundo actual pode ser fastidioso. Nos tempos que correm, de mil tecnologias, de imagens por tudo e por nada, falar com e para uma assistência desconhecida sem praticamente nenhum dos inúmeros gadgets existentes implica um certo risco mas mostra a segurança de quem sabe construir uma empatia com os presentes e domina o assunto com excelência. Falar-nos com vivacidade de obras de Homero, de Vergílio, de Tácito, das Metamorfoses de Ovídio, repescando com singeleza e extraordinária facilidade imensas histórias da mitologia grega e romana, proporcionou à assistência uns surpreendentes "momentos" (aparentemente breve, a aula-conversa durou quase duas horas, mas ninguém olhava para o relógio).
Qual era a declarada intenção da oradora? Mostrar aos seus ouvintes o quanto perdem em numerosos poetas portugueses que eles estejam a ler, de António Ferreira e Camões a Correia Garção e Bocage, de Miguel Torga e Sophia a Eugénio de Andrade e Fiama, de Manuel Alegre e Nuno Júdice a José Mário Silva e Pedro Mexia, se não conhecerem com razoável detalhe o mundo clássico.
Passámos por histórias como a de Píramo e Tisbe (o Romeu e Julieta da antiguidade), a tragédia de Cassandra e o drama não menor de Dido e Eneias, ouvimos falar da maçã que Páris deu a Vénus e que se prolongou até aos nossos dias como "o pomo da discórdia", voltámos ao sempre interessante mito de Narciso, fizemos um desvio para recordar o Minotauro e o fio de Ariadne ("o fio da meada"), relembrámos Orfeu e Eurídice, Apeles, pintor oficial de Alexandre Magno, o suplício de Sísifo, as sereias que originalmente eram metade-mulher e metade-ave (o canto das aves), etc. etc.
Cristina Pimentel tem toda a razão. Sem conhecer em detalhe a mitologia clássica não se captam muitas das referências dos nossos poetas e prosadores. Lemos, olhamos, mas não vemos. Permito-me fazer a transcrição de uma composição recente de José Mário Silva, incluída nas notas que nos foram dadas:

Está na cozinha, a sopa ao lume, os pratos na
mesa, talheres para dois, como se ele viesse. Hoje.
Ele não volta, anda embarcado há muitos anos num
navio com sal e ferrugem nos porões. Mas ela espera,
sabe que ele pode chegar a qualquer momento. Às
vezes espreita a telenovela ou as ervas a crescer junto
ao muro do quintal. No resto do tempo, faz e desfaz
o mesmo naperon, para enganar as horas, o frio,
a solidão e um corpo esquecido do que é o amor.

Que título deu o autor à sua composição? Penélope, Meio-Dia. Quem não tiver presente a aliás bem conhecida história de Penélope entenderá o porquê do título e a razão do fazer e desfazer o naperon?
Aliás, num outro exemplo famoso, como se poderá entender completamente o Ulysses, de James Joyce (1922), sem ter lido a Odisseia, com as referências a Calipso, a Circe, a Cila e Caríbdis, a Ítaca, etc. (O quadro acima é de Primaticcio e representa Ulisses e Penélope.)

Por mera coincidência estou presentemente a ler um livro de George Steiner, onde ele faz significativas referências aos clássicos. Diz coisas cheias de interesse: "Eu defino um clássico, seja na literatura, na música, nas artes ou na filosofia, como uma forma significante que nos lê. Lê-nos mais do que nós o lemos. (…) De cada vez que entramos nele, o clássico questiona-nos. (…) O clássico perguntar-nos-á: "compreendeste?", "estás preparado para agir sobre as transformações, sobre as possibilidades de uma outra existência, mais enriquecida, que eu formulei?" (…) Enquanto "o atributo da vulgaridade, da obra efémera é precisamente o de poder ser classificada e compreendida de uma vez por todas" "o clássico esquiva-se a qualquer decidibilidade definitiva."

Valeu muito a pena ter ido à conferência. Apreciei imenso a qualidade de uma óptima profissional do ensino. Transmitiu mensagem. Eficientemente.

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