Quase quarenta anos depois da Revolução de Abril, da esperança, da liberdade e dos cravos floridos, eis que surge a Revolução do Cravo Murcho. Está a ocorrer neste momento.
Quando, anteontem, o Primeiro-Ministro foi ler aos microfones da televisão e da rádio um comunicado relativo às linhas gerais a seguir no Orçamento para 2012, muitas pessoas aguardavam com ansiedade as medidas que o Governo iria tomar. Onde se iria cortar nas gorduras do Estado, tópico que o próprio PM tinha referido ainda como membro da oposição, era a expectativa número um. Milhares de portugueses que trocam entre si mails através da Internet tinham já expressado as suas preferências: organismos públicos que ninguém percebe para o que servem a não ser para receberem filiados em partidos, frotas de automóveis topo de gama a que políticos e determinados juízes têm direito, escandalosos pagamentos extra por serviços, fundações largamente subsidiadas pelo Estado, etc. Cortar na despesa e na consequente eliminação de gorduras seria aqui. E se não fosse?
Não foi. O ponto de vista do Governo não é necessariamente o do cidadão comum. Numa acção desta ordem, o Governo actuou de uma forma que me lembrou a guerra colonial em que participei. Durante esse período verifiquei amiúde que os guerrilheiros nossos inimigos nunca escolhiam sítios planos, nos quais tenderiam a perder no confronto. Eram sempre pequenas colinas que lhes serviam de local para lançar os seus ataques. Essas pequenas colinas serviam-lhes um propósito triplo:
1. O alvo que buscavam – as nossas tropas – era fácil de atingir.
2. O ataque era seguro, uma vez que podiam fugir pela contra-encosta e embrenhar-se na mata.
3. Quanto à eficácia, essa dependia da pontaria dos atiradores.
Não foi mais do que estes mesmos princípios que o Governo português usou no Orçamento para 2012: facilidade, segurança, eficácia. Ao concentrar o seu objectivo no funcionalismo público e nos pensionistas – aí incluindo também os da Segurança Social e não só os da Caixa Geral de Aposentações -, o Governo está na sua coutada. Tanto os pagamentos aos funcionários no activo como aos pensionistas dependem dele. É fácil atirar sobre este alvo, composto na sua esmagadora maioria por sitting ducks.
A segurança é total, ou quase. Só as forças militares e para-militares podem organizar manifestações de protesto, mas ao procurarem ficar de fora das medidas de sacrifício que também lhes são exigidas acabarão por sobressair como reclamantes de privilégios, o que não cairá nada bem junto de todos os restantes que são sacrificados.
E quanto a eficácia, estamos conversados. O Estado poupa, do lado da despesa e sem cobrar impostos, uma grossa maquia, superior a 3 biliões de euros. É que haverá aproximadamente 950 mil portugueses que ficarão em 2012 e 2013 (e depois?) sem o 13º e o 14º mês na totalidade; a acrescentar a estes, há cerca de 500 mil que sofrerão em média cortes parciais na ordem dos 50 por cento. Os funcionários públicos no activo serão ainda afectados por um corte médio de 5% nos seus salários. Para quem ganha acima de 1000 euros, o corte nos seus vencimentos anuais ascende a 14,2%.
Neste blog falou-se várias vezes na impossibilidade de desvalorização da moeda. Antigamente, com o escudo, era prática corrente proceder-se a desvalorizações. A desvalorização ajudava a competitividade das empresas e do Estado em matéria de exportações e de turismo, facto que era largamente propagandeado pelos serviços públicos. O extraordinário destas desvalorizações era o facto de elas provocarem muito poucas ondas, embora o seu impacto fosse enorme nos produtos importados e, consequentemente, nos preços. Uma das razões, creio, era o facto de que as desvalorizações atingiam a todos aparentemente por igual: os escudos do juiz e do político passavam a valer menos, tal como os escudos do operário. Se o político ou o juiz possuíam fundos noutras moedas, isso não era do domínio público.
Como é óbvio, as pensões de reforma eram igualmente atingidas. Isso mesmo sabiam os governantes, que por vezes elevavam os vencimentos dos funcionários públicos – sempre uma grande massa de eleitores – antes das eleições, baixando-os alguns meses depois através da desvalorização da moeda. Ora, como presentemente o Estado não podia fazer isso, estava a braços com um problema sério: o peso das reformas não só se mantinha, como aumentava devido ao número sempre crescente de reformados. Já agora: nos anos de 1977 e de 1983, a desvalorização que o escudo sofreu cifrou-se respectivamente em 15 e 14 por cento. Não será que os 14, 2% agora registados estão dentro dos mesmos parâmetros?
Para finalizar, perguntar-se-á: e os ricos? Porque ficam eles de fora? Bem, lembremo-nos da história dos guerrilheiros africanos e dos seus princípios básicos: facilidade, segurança e eficácia. Os ricos têm o seu dinheiro a bom recato, longe da vista dos guerrilheiros e demasiado envolvido em engenhosas manobras de manipulações monetárias em offshores para que seja fácil chegar lá. Logo…
E quanto aos Amorins, os Belmiros e os Soares dos Santos? Os dois últimos, ligados ao comércio de produtos alimentares, não se cansam de exaltar em anúncios publicitários a sua patriótica escolha de produtos portugueses de qualidade. Porém, como as taxas fiscais são substancialmente mais baixas em determinados países europeus, como a Holanda e a Irlanda, é nesses países que pagam os seus impostos, obviamente descapitalizando o Estado português e beneficiando os seus homónimos estrangeiros. Como diz o anúncio do Pingo Doce: "Sabe bem pagar tão pouco!" Apetece-me parafrasear Fernando Pessoa, e espero que ele me perdoe: "Meu dinheiro é a minha pátria."
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