Imagine
quem lê estas linhas um daqueles indivíduos supinamente chatos que parece só se
preocuparem com torneiras que pingam, televisores que são deixados a funcionar
sem ninguém a olhar para eles, luzes da casa de banho que são acendidas por
alguém à entrada mas completamente ignoradas à saída, máquinas de café ligadas
longas horas depois do café ter sido feito e bebido, esquentadores com a
chamazinha acesa 24 horas por dia, ou mesmo tubos de pasta de dentes ou
esferográficas sem as respectivas tampas. Indivíduos desses não deviam existir
no mundo. Chateiam os outros e complicam mais do que resolvem. Se pensam que
vão conseguir emendar os outros, levá-los a ser como eles, estão redondamente
enganados. Características profundas dos seres humanos, tais como distracção,
desleixo e coisas quejandas, se nasceram com a pessoa com ela hão-de morrer.
Este breve
intróito serve para apresentar um caso que nada tem de incomum e que ocorreu
ontem à noite com o meu amigo Nicolau. Foi ele próprio que mo contou. O
Nicolau, é conveniente referi-lo aqui, é precisamente um desses indivíduos que
se preocupam com montes de coisas. Na sua vinda para o apartamento de praia que
possui num condomínio, notou que a porta ao lado da sua tinha por cima a luz
acesa. Sabendo que o seu vizinho Gomes estava ainda em Lisboa e não viria tão
cedo ao prédio, ficou preocupado e desgostoso com aquele gasto inútil. Um
verdadeiro desperdício! Mesmo que o filho do Gomes viesse ocupar o apartamento
durante o fim-de-semana, como era seu hábito, ainda faltavam três dias. Mais
três dias com a luz acesa!
A primeira
coisa que ocorreu ao Nicolau foi telefonar ao seu vizinho a dizer-lhe que tinha
deixado a luz acesa. Mas para quê? Será que o Gomes viria de Lisboa até ali, de
carro, a gastar gasolina? Seria maior o custo do que o benefício. E, por outro
lado, teria sido mesmo o Gomes a deixar a luz acesa? Por que não a
mulher-a-dias? Se não tivesse sido o Gomes, com que cara ficaria ele, Nicolau,
a acusar o seu amigo de uma coisa que ele, afinal, não tinha feito?
E se não lhe
dissesse nada? Pensando bem, o Gomes não sabia o que se passava, não fazia a
mínima ideia de que a luz estava acesa, logo não estaria agora nem preocupado,
nem a sofrer. O total desconhecimento de um facto desagradável impede que a dor
se manifeste. Ele, Nicolau, que tinha consciência de tudo, é que estava a
sofrer. E não era ele que iria ter que pagar aquele consumo inútil de luz!
Mas,
prosseguiu o Nicolau nas suas divagações, por que razão teria o Gomes de ser
exactamente como ele, a sofrer com coisas como aquela? O Nicolau sabia por
experiência pessoal que as pessoas diferem entre si e que ele próprio,
infelizmente, não era metro-padrão que se aplicasse à maior parte das pessoas.
Afinal, era bem possível e até provável que o Gomes, quando finalmente viesse a
casa e encontrasse a luz acesa a apagasse, tout
court, limitando-se a premir o interruptor que estava dentro de casa, junto
à porta. E estava agora, ele, Nicolau, para ali aflito, testa enrugada de tanto
pensar...
Galgando a
escada a dois degraus de cada vez, surgiu entretanto o seu filho Luís, 11 anos
desenvoltos. O que estava ali o pai a fazer, especado a olhar para a luz? O pai
explicou-lhe em pormenor a sua angústia e concluiu: “Sabes como detesto ver uma
lâmpada a gastar electricidade sem necessidade nenhuma!”
“Oh pai”,
disse-lhe o miúdo, “ponha-me às suas cavalitas!” O pai fez-lhe a vontade. Já à
altura da lanterna, o miúdo preparava-se para a abrir e desatarrachar a lâmpada
quando o pai, atento e solícito, lhe passou rapidamente para as mãos o lenço
que acabava de tirar do bolso: “A lâmpada está com certeza muito quente.”
Com toda a
facilidade, o Luís fez com que a luz, antes acesa, passasse a conversa do
passado. Desceu das costas do pai, que entretanto ficou e orgulhoso com a
perspicácia do filho. Deu-lhe os parabéns. Mas para si próprio, o Nicolau ficou
confuso. E, para não variar, preocupado. Como é que ele não tinha pensado
naquela solução, tão simples? Com uma cadeira, teria num ápice resolvido a
situação. Concluiu, com forte dose de honestidade para consigo mesmo, que
demasiados pensamentos e hipóteses em excesso acabam por ser teorias sobre
teorias e não têm nada de prático. O seu catraio tinha resolvido a questão num
abrir e fechar de olhos!
Creio que a luz, agora apagada, tinha feito acender uma outra luzinha no
cérebro do Nicolau. Afinal, aquela lâmpada acesa talvez não tivesse sido de
todo inútil.
Resolver problemas pode ser um modo de ganhar a vida (embora me pareça que se ganha mais criando-os ...). A análise dos mecanismos que nos levam à descoberta de soluções levou-me a concluir que as abordagens e associações insólitas (e por vezes simples ...) estavam na base de alguns dos sucessos mais significativos.
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