2/25/2014

O Nicolau



Imagine quem lê estas linhas um daqueles indivíduos supinamente chatos que parece só se preocuparem com torneiras que pingam, televisores que são deixados a funcionar sem ninguém a olhar para eles, luzes da casa de banho que são acendidas por alguém à entrada mas completamente ignoradas à saída, máquinas de café ligadas longas horas depois do café ter sido feito e bebido, esquentadores com a chamazinha acesa 24 horas por dia, ou mesmo tubos de pasta de dentes ou esferográficas sem as respectivas tampas. Indivíduos desses não deviam existir no mundo. Chateiam os outros e complicam mais do que resolvem. Se pensam que vão conseguir emendar os outros, levá-los a ser como eles, estão redondamente enganados. Características profundas dos seres humanos, tais como distracção, desleixo e coisas quejandas, se nasceram com a pessoa com ela hão-de morrer.
Este breve intróito serve para apresentar um caso que nada tem de incomum e que ocorreu ontem à noite com o meu amigo Nicolau. Foi ele próprio que mo contou. O Nicolau, é conveniente referi-lo aqui, é precisamente um desses indivíduos que se preocupam com montes de coisas. Na sua vinda para o apartamento de praia que possui num condomínio, notou que a porta ao lado da sua tinha por cima a luz acesa. Sabendo que o seu vizinho Gomes estava ainda em Lisboa e não viria tão cedo ao prédio, ficou preocupado e desgostoso com aquele gasto inútil. Um verdadeiro desperdício! Mesmo que o filho do Gomes viesse ocupar o apartamento durante o fim-de-semana, como era seu hábito, ainda faltavam três dias. Mais três dias com a luz acesa!
A primeira coisa que ocorreu ao Nicolau foi telefonar ao seu vizinho a dizer-lhe que tinha deixado a luz acesa. Mas para quê? Será que o Gomes viria de Lisboa até ali, de carro, a gastar gasolina? Seria maior o custo do que o benefício. E, por outro lado, teria sido mesmo o Gomes a deixar a luz acesa? Por que não a mulher-a-dias? Se não tivesse sido o Gomes, com que cara ficaria ele, Nicolau, a acusar o seu amigo de uma coisa que ele, afinal, não tinha feito?
E se não lhe dissesse nada? Pensando bem, o Gomes não sabia o que se passava, não fazia a mínima ideia de que a luz estava acesa, logo não estaria agora nem preocupado, nem a sofrer. O total desconhecimento de um facto desagradável impede que a dor se manifeste. Ele, Nicolau, que tinha consciência de tudo, é que estava a sofrer. E não era ele que iria ter que pagar aquele consumo inútil de luz!
Mas, prosseguiu o Nicolau nas suas divagações, por que razão teria o Gomes de ser exactamente como ele, a sofrer com coisas como aquela? O Nicolau sabia por experiência pessoal que as pessoas diferem entre si e que ele próprio, infelizmente, não era metro-padrão que se aplicasse à maior parte das pessoas. Afinal, era bem possível e até provável que o Gomes, quando finalmente viesse a casa e encontrasse a luz acesa a apagasse, tout court, limitando-se a premir o interruptor que estava dentro de casa, junto à porta. E estava agora, ele, Nicolau, para ali aflito, testa enrugada de tanto pensar...
Galgando a escada a dois degraus de cada vez, surgiu entretanto o seu filho Luís, 11 anos desenvoltos. O que estava ali o pai a fazer, especado a olhar para a luz? O pai explicou-lhe em pormenor a sua angústia e concluiu: “Sabes como detesto ver uma lâmpada a gastar electricidade sem necessidade nenhuma!”
“Oh pai”, disse-lhe o miúdo, “ponha-me às suas cavalitas!” O pai fez-lhe a vontade. Já à altura da lanterna, o miúdo preparava-se para a abrir e desatarrachar a lâmpada quando o pai, atento e solícito, lhe passou rapidamente para as mãos o lenço que acabava de tirar do bolso: “A lâmpada está com certeza muito quente.” 
Com toda a facilidade, o Luís fez com que a luz, antes acesa, passasse a conversa do passado. Desceu das costas do pai, que entretanto ficou e orgulhoso com a perspicácia do filho. Deu-lhe os parabéns. Mas para si próprio, o Nicolau ficou confuso. E, para não variar, preocupado. Como é que ele não tinha pensado naquela solução, tão simples? Com uma cadeira, teria num ápice resolvido a situação. Concluiu, com forte dose de honestidade para consigo mesmo, que demasiados pensamentos e hipóteses em excesso acabam por ser teorias sobre teorias e não têm nada de prático. O seu catraio tinha resolvido a questão num abrir e fechar de olhos!
           Creio que a luz, agora apagada, tinha feito acender uma outra luzinha no cérebro do Nicolau. Afinal, aquela lâmpada acesa talvez não tivesse sido de todo inútil.

1 comentário:

  1. Resolver problemas pode ser um modo de ganhar a vida (embora me pareça que se ganha mais criando-os ...). A análise dos mecanismos que nos levam à descoberta de soluções levou-me a concluir que as abordagens e associações insólitas (e por vezes simples ...) estavam na base de alguns dos sucessos mais significativos.

    ResponderEliminar