6/03/2011

Ortografia: atenção ao que foi acordado!

Presentemente, qualquer português que queira escrever com exatidão tem de pensar duas vezes antes de escolher a ortografia exata. Correto passa a ser o que não era correcto, sendo que dentro em breve esta última grafia passará ao Canal História.
Entretanto, pelo que julgo saber, não houve um só partido que no seu recente programa eleitoral tivesse adotado a nova ortografia. Sucede que este não é um simples pormenor. É que foi a Assembleia da República que aprovou o acordo ortográfico (contra a opinião de inúmeros portugueses, entre os quais muitos linguistas). Os deputados refletiram demoradamente sobre o assunto e votaram com grande consciência, como a ortografia que utilizam nos programas dos seus partidos amplamente demonstra!
Embora seja abjeto escrever nesta nova forma, porque nada tem a ver com a prática europeia, o número de palavras que temos que mudar é excecionalmente elevado. É difícil ter a priori a perceção daquilo que se tem que alterar. A confusão ainda será maior quando nós – e, connosco, as crianças que agora se iniciam – tivermos que escrever em espanhol, francês ou inglês, e mesmo algumas palavras em alemão, porque se o direto e o diretor são presentemente grafados assim, sem –c-, directo, direct, direct e direkt mantêm-se nas quatro línguas acima mencionadas, assim como director, directeur, director e Direktor. O mesmo se passa com factor, reactor, actor, actriz, expectativa, expectoração, atracção, fracturante, injectar, perspectiva, preceptor, reactividade, receptividade, etc. etc. Está escancarada a porta para a entrada em grande dos portugueses nos erros ortográficos cometidos quando usam línguas estrangeiras na sua escrita. Mas que importância tem isso? O corrector, perdão, corretor existente no computador tratará de resolver o assunto. Quem escrever à mão terá maior dificuldade, mas, francamente, quem é que hoje escreve à mão?
Com o novo acordo, a nossa atividade terá outros objetivos, a atuação de grupos de teatro ou da própria seleção nacional de futebol também. Na realidade, todos os nossos atos passarão a ser diferentes e nós próprios seremos mais ativos graças ao uso de uma ortografia mais atual que, diga-se por mera curiosidade, os brasileiros já utilizam há variadíssimas décadas. Nós é que estávamos atrasados, tal como aliás outros idiomas, v.g. o inglês, o espanhol e o francês se mantêm atrasados.
Estas alterações não afetarão alguns profissionais, como por exemplo os arquitetos porque eles também mudam a sua grafia. Espera-se, porém, que o seu caraterístico caráter se mantenha, para que o público não passe a encarar com ceticismo a sua conceção de arte.
Alguns homens terão a sua vida facilitada no que respeita à ereção porque sempre é um peso a menos que têm que arrostar. A posição de ereto também trará benefícios para a sua coluna. São só benefícios.
Mas, já agora, quem paga a fatura destas diferenças todas? E para quê? Esse é o grande mistério. Será que um texto oficial em português emitido por um órgão oficial como a ONU não necessitará a partir de agora de quaisquer alterações na sua versão brasileiro-portuguesa? Só um ingénuo dirá que não. Existem numerosas diferenças sintáticas entre o português do Brasil e o de Portugal que naturalmente se mantêm. Isto para não falar já nos casos de Angola, Moçambique, Cabo Verde, etc. Os inteletuais, os inspetores, os detetives, os espetadores ver-se-ão à perna com problemas. E quanto aos professores? Lecionar será mais fácil para eles? Um otimista dirá que sim. Muda-se o tato, muda-se o olfato, mas tudo fica ótimo. Mudam-se os projetos, uns tantos objetos e, como vem sendo costume, não haverá praticamente qualquer reação. Quem fala de rutura? O assunto está a ter boa receção em todos os setores. Sem as sutilezas do antigamente, o nosso trajeto está traçado para o sucesso!


P.S. Este post-scriptum é puramente pessoal. Como já em tempos mencionei a amigos, não vou cumprir o acordo ortográfico. Professor durante muitos anos, bendigo a minha situação de retirado das funções de leccionação, pois se continuasse no ensino teria muito a contra-gosto de aplicar o acordo. Ao longo da vida acatei sem dificuldade várias alterações ortográficas que se produziram (o ele quiz passou a ele quis, o tècnicamente a tecnicamente, o trema desapareceu, tal como o ponto de interrogação invertido e outras coisas do género). Mas o que está a suceder é a sul-americanização da língua europeia, é o aculturamento ao brasileiro, a descaracterização da língua escrita e o afastamento ortográfico das principais línguas europeias. É humilhante para Portugal.
Fernando Pessoa, em nome de quem se usa e abusa da frase “Minha pátria é a língua portuguesa”, seria o primeiro a estar contra estas alterações, como aliás ele próprio bem atesta no seu Livro do Desassossego. Infelizmente, as suas reflexões foram escamoteadas por quem, devido a interesses mais ou menos obscuros, acabou por fazer o mal e a caramunha.
Ainda tive alguma esperança o ano passado quando um amigo me passou o endereço de um centro coordenador de protesto contra o acordo. Entrei em contacto, tirei fotocópias, arranjei dezenas de pessoas ávidas de rejeitar o acordo – só uma das que contactei colocou alguma objecção a assinar. Porém, a necessidade de papel escrito, da óbvia assinatura e não só do documento de identificação como também do número do cartão de eleitor, factores a que se juntou a não-realização de reuniões – fui a uma, na Voz do Operário, interrompida ao fim de pouco tempo e, ao que julgo, nunca repetida – foi todo um conjunto de coisas que tornou impeditiva a recolha de 35 mil assinaturas no tempo concedido. Passei palavra a amigos, que fizeram o mesmo que eu, recolhendo assinaturas. Depois, creio que tudo esmoreceu. Lamento muito que assim seja. Dizem-me que existe agora um novo prazo, mas sem uma entidade coordenadora custa-me a crer que o trabalho seja viável. As crianças nas escolas, como vejo pelo caso do meu neto, já estão a aprender com a nova ortografia. Parece-me irreversível. É um crime o que estão a fazer à língua portuguesa. Esta enorme transformação não deixa de ser uma componente significativa do nosso declínio como país soberano.

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