Uma coincidência totalmente inesperada fez com que esta palavra originalmente de uma língua nativa da África do Sul entrasse no meu vocabulário em dois dias seguidos. Na noite de um desses dias chegou-me um e-mail que contava a história que a seguir transcrevo. No dia seguinte de manhã assisti a uma conferência na Gulbenkian. No meio da sua comunicação, o orador, Achille Mbembe, abordou exactamente esse tema. Comecemos pela história:
Um jovem antropólogo esteve a estudar durante cerca de duas semanas os usos e costumes de uma determinada tribo sul-africana. Objectivo: apresentar um trabalho de investigação na sua universidade. Após o que para ele foi uma experiência interessante, em que julgou ter analisado tudo relativo ao modo de vida da tribo, desde o modo de construção das casas à maneira de vestir, hábitos alimentares, educação, rituais de nascimento e morte, e a questão da liderança na comunidade, chegou o dia das despedidas e do regresso. Como o seu voo era apenas ao fim do dia, ficou ainda com algum tempo de espera. Entre outras coisas, decidiu fazer na aldeia uma brincadeira com as crianças com as quais tinha convivido e cuja confiança tinha grangeado.
Pensando nas crianças, comprou na cidade umas tantas guloseimas para oferecer. Colocou-as todas num cestinho muito bonito, enfeitado com um belo laço vermelho. Colocou o cesto debaixo de uma árvore, à sombra. Depois, chamou os miúdos, raparigas e rapazes, e deu-lhe breves instruções sobre o que iriam fazer. Era algo bastante normal: iam fazer uma pequena corrida a ver quem é que conseguia chegar primeiro à meta. A meta era o cesto com as guloseimas. Quem chegasse primeiro ganhava o cestinho com os doces todos.
As crianças posicionaram-se na linha de partida que ele oportunamente desenhou no chão e aguardaram o sinal. Quando o antropólogo gritou "Partida!", todos os miúdos deram imediatamente as mãos uns aos outros e largaram a correr em direcção à árvore debaixo da qual estava o cesto. Quando lá chegaram, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem-nos, felizes da vida.
O antropólogo foi ao seu encontro e, algo estupefacto porque o resultado não era exactamente o que ele esperava, não pôde deixar de lhes perguntar por que razão tinham ido todos juntos se um só poderia ter ficado com o cesto e com todos os doces que lá estavam dentro.
A resposta veio rápida: "Ubuntu! Como é que um de nós podia ficar feliz se os outros ficassem tristes?"
Foi uma resposta que desconcertou o jovem antropólogo. Havia duas semanas que estava a estudar aquela tribo e ainda não tinha compreendido esta parte essencial da vivência do povo. A lição foi para ele.
Como acima referi, no dia seguinte ouvi Achille Mbembe, investigador em História e Política na Universidade Witwatersrand, de Joanesburgo, abordar com alguma profundidade o conceito de ubuntu. Definiu-o como "mutualidade humana". Explicou que era uma tentativa que já há anos se ensaiava na África do Sul, com base em costumes de várias comunidades, e que, como conceito, estava mesmo a ser aplicado na legislação do país. Ubuntu não é o contrário de individualidade, explicou Mbembe, mas baseia-se na vida entrosada dos humanos, na qual todos dependemos uns dos outros. Ubuntu propõe uma ética de existência colectiva. Uma vida não pode adquirir mais valor à custa de outrem. Só conseguimos sobreviver se partilharmos. Como conceito, ubuntu refreia a lógica do individualismo e lembra a origem clássica da democracia.
Pareceu-me extremamente interessante e corajoso que esta ética esteja a ser desenvolvida numa vasta comunidade que, ao longo de muitas décadas, se desenvolveu e se tornou uma das sociedades mais desiguais do mundo. A África do Sul deve ser hoje o segundo país com maiores desigualdades sociais, logo a seguir ao Brasil.
Ubuntu para todos!
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