6/20/2011

Mais vale cair em graça do que ser engraçado

Todos nós, creio, já experimentámos a sensação de estarmos à beira-mar e recebermos ondas, pequenas ou um pouco maiores, que foram produzidas por um grande barco que passou lá longe e agitou o oceano. Transpondo isso para o que se passa com a nossa memória que, por assim dizer, também é accionada por ondas movidas por semelhança ou por contraste, ocorre frequentemente que só ao fim de alguns anos, por vezes muitos, é que nos damos conta do significado e importância de determinado ditado. Aquele que reproduzo acima chegou-me há dias de volta, embrulhado numa dessas ondas.
"Mais vale cair em graça do que ser engraçado" é algo que conheço desde a minha adolescência. Uma tia, alentejana, em cuja casa passei vários anos enquanto estudava, usava este ditado com relativa frequência. Devo dizer que nunca lhe prestei muita atenção, mas de súbito ele chegou-me agora, a galope. Os ditados têm destas coisas. São grandes verdades. É por isso que resistem à passagem do tempo. É por isso também que usam sempre o verbo no presente. São asserção pura, juízos formulados após muita experiência e acumulação de sabedoria. Por isso não são passado nem são futuro, embora constituam uma das pedras sobre as quais o futuro se há-de construir.
O que é cair em graça? Não estamos aqui a falar da graça divina, mas sim em cair na graça das pessoas. Cair em graça é, fundamentalmente, agradar. Em termos comuns, se tu agradas a alguém, é porque esse alguém gosta de ti. Porque é que gosta de ti? Aqui existe um número quase infinito de hipóteses, mas o essencial é que existe uma empatia que se criou nesse alguém relativamente a ti. E essa empatia é duradoura? Depende. Tal como em inglês se diz fall in love e o seu oposto fall out of love, também a empatia pode chegar ao fim após um curto período ou manter-se por um longo período de tempo. Mesmo até ao fim dos nossos dias.
O "ser engraçado" do ditado lembra a tentativa de cair nas boas graças. Ora, nada que seja forçado dura muito tempo. É como uma única camada superficial de verniz. Na realidade, na maioria dos casos duradouros cai-se nas boas graças de uma pessoa sem esforço, apresentando-se como se é. Há coisas que não são fáceis de explicar, mas parece correcto falar-se de uma certa química que atrai ou que repele.
A diferença entre cair ou não cair em graça pode ser abissal. Imaginemos um professor que lecciona três turmas diferentes. Uma determinada atitude infeliz tomada pelo professor no primeiro dia de aulas numa das turmas pode ter causado uma imediata antipatia nesse grupo de alunos. Embora a situação possa mudar com o tempo e ser eventualmente corrigida, o professor não terá em princípio a mesma receptividade nessa turma que tem nas restantes, nas quais existe uma perfeita empatia.
Em que é que se traduz esta empatia? Em pormenores que são importantes. Uma história interessante e cómica que o professor conte receberá no final um coro de gargalhadas, caso exista empatia total. Mas, em situação contrária, pode levar a um simples esgar ou mesmo uma careta e a um resmungo "Onde está a graça?" Na colaboração é importantíssima a empatia. Trabalha-se de bom grado com um professor de quem se gosta e só a muito custo com alguém que não nos caiu no goto.
Quem cai nas boas graças do público vence com facilidade. E naturalidade. Porém, tal como sucede com os professores, pode perder essas boas graças através de determinados actos. É algo frequente com os políticos. Quando a maioria da "turma" da população eleitora começa a criar antipatia por um político de quem anteriormente gostava, o mesmo discurso que sempre pareceu interessante passa, gradual ou subitamente, a uma balela insuportável. Quedar-se-ão sempre aqueles inabaláveis simpatizantes que, por razões pessoais que ultrapassam a realidade – "o amor é cego" – continuam a ter esse político nas suas boas graças, mas todo o indivíduo que enveredou pela carreira política sabe que quanto mais subiu, tanto mais descerá.
Por vezes pode ser um preconceito a impedir que alguém receba as nossas boas graças. Consideremos uma pessoa de direita, fortemente anticomunista. Ao ter conhecimento de que José Saramago foi um comunista militante, ignora o facto de ele ter ganho um prémio Nobel de literatura. O facto de o escritor ter sido comunista tolda a visão do potencial leitor e impede-o de ler seja o que for: “não lhe acharia graça nenhuma!”
Este juízo ou conceito prévio (preconceito em português, prejudice em inglês) é aplicado noutras situações e com resultados similares. Há pessoas, nomeadamente homens, para quem um poeta foi bom até ao dia em que souberam que ele era homossexual. Semelhantemente, um racista, com o seu preconceito contra uma raça diferente da sua, é capaz de admirar a beleza de uma mulher africana, mas comentará algo como "É preta, mas bonita". Estão fora de questão as boas graças destas pessoas para com homossexuais ou indivíduos de raça negra.
Ter graça é, no sentido do provérbio, "estar em graça". Como o oposto de "estar em graça" inclui uma vasta gama de possibilidades que vão do mero desconhecimento da pessoa ou coisa que é objecto da graça até ao "cair ou estar em desgraça", quem está em desgraça nunca pode ser verdadeiramente engraçado por mais que o tente. Aí, o problema residirá principalmente na intolerância de quem coloca alguém em graça ou em desgraça. Quando a pessoa que tem essas peias eventualmente delas se libertar, pode entrar num mundo novo, que lhe esteve entretanto vedado pela sua própria maneira encouraçada de ser.
Em situações de todos os dias, haverá pessoas no teu grupo de amigos e conhecidos que criaram uma forte empatia contigo, enquanto outras permanecem algo desconfiadas e não vêem nada de especial em ti. Uns calam-se quando tu começas a dizer qualquer coisa, querem ouvir-te; outros fecham os ouvidos e distraem-se com qualquer outra coisa: de ti nada vem de jeito.
Quando as pessoas comentam que aquilo que dizes é geralmente engraçado, elas estão a comunicar-te que gostam de ti. O termo "engraçado" contém em si a "graça" que te envolve.
Que esta graça inicial pode desaparecer ao fim de algum tempo e criar uma desilusão, maior ou menor, atesta-o o elevado número de divórcios entre casais que uma profunda empatia unia e que depois, com a constante proximidade diária e em resultado de múltiplas situações desconhecidas até então, a viram esvanecer-se. E quando falo em divórcios não estou apenas a mencionar aqueles que são registados oficialmente, mas sim aquela passagem da empatia inicial para outro qualquer sentimento, que pode ser, como sucede no caso do político e de outros ídolos, de quase-ódio depois da anterior adoração. Do estado de graça houve alguém que caiu na desgraça.
A vida está cheia destas coisas, seja na componente profissional, nas amizades, no relacionamento familiar. Este é um assunto velhíssimo, por ser muito real. O Raul Solnado costumava ironizá-lo através da história do casal de namorados em que ele inicialmente dizia para ela "Adoro este teu sinalzinho! Tão giro!". Ao fim de longos anos de casamento, quando ela encostava o rosto ao seu apetecia-lhe dizer (embora o não dissesse) "Chega para lá essa verruga!"
Há coisas algo misteriosas aqui, há químicas que constituem um certo enigma para o leigo. Mas vale a pena pensar nelas, creio. Assim como vale a pena saudarmos sempre o aparecimento de alguém para quem as nossas palavras façam verdadeiro sentido e recebam um forte acolhimento. Pode ser "o início de uma longa amizade".

P.S. Sobre a amizade e, afinal, as boas graças em que uma pessoa está ou não, escreveu um dia o cardeal Mazarino (1602-1661): "Faz grandes elogios de uma pessoa na presença de um terceiro. Se este se mantém calado, é porque não é amigo dessa pessoa. O mesmo poderás adivinhar se ele desviar a conversa para outro assunto, se mal responde, se se esforça por moderar os teus elogios, se se diz mal informado acerca da pessoa em causa ou ainda se se lança no elogio de pessoas que nada têm que ver com aquela de que se está a tratar.
Podes igualmente mencionar um acto admirável praticado por essa pessoa - um acto acerca do qual sabes que o teu interlocutor está perfeitamente ao corrente - para veres se ele aproveita ou não para o valorizar. Reagirá, talvez, dizendo que, nesse caso, foi uma questão de sorte ou que a Divina Providência é, por vezes, muito pródiga. Ou então aproveitará para gabar proezas ainda mais notáveis de outros. Pode ainda afirmar que essa tua pessoa se limitou a seguir um bom conselho."

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