6/12/2011

Os que estão abaixo de nós



Para fazer um intervalinho na temática das politiquices que, em certa medida, já cansam e são frequentemente má-língua, passemos para algo de boa-língua. O que não quer dizer, no entanto, que não usemos algo que seja político. Ou mesmo má-língua. Confuso? Nem por isso. Esclareçamos:
Quando países do Norte da Europa, como a Alemanha, a Inglaterra, a Holanda, a Suécia e a Dinamarca usam a sigla PIGS em inglês para Portugal, Itália (ou Irlanda), Grécia e Espanha, eles estão naturalmente a depreciar-nos a todos. Note-se que quem chamar pig (porco) a um juiz pode ter como garantido que vai ter que responder perante a justiça e é muito natural que termine na cadeia. Porco é palavra tão insultuosa que em França quem der o nome de Napoleão, herói nacional para muitos franceses, a um porco sujeita-se a uma pena de prisão. (Suponho que George Orwell pressentia este facto quando deu o nome de Napoleão exactamente a um dos porcos que passaram a dirigir a quinta dos animais no seu conhecido livro O Triunfo dos Porcos, Animal Farm.)
Os mais ingénuos dirão que isto é algo do passado. Hoje em dia já ninguém usaria termos desta ordem. Bem, o actual uso de PIGS para os referidos países da União Europeia desmente categoricamente esta suposição.
Sejamos justos: quer queiramos admiti-lo ou não, o homem tem uma visível tendência para criar uma escala hierárquica e desconsiderar aqueles que estão abaixo de si. Não é só na Índia que existem castas. Tudo expressa ou pretende expressar uma forma de superioridade e de domínio ou poder. Ou de menos poder. Aliás, trata-se de um facto que a língua materna espelha à evidência. Como? As formas são múltiplas, variadas, mas por hoje demos uma mirada basicamente às comparações depreciativas para as quais usamos frequentemente animais.
Se se perguntar a uma criança se os animais estão acima ou abaixo do homem, ela responderá automaticamente que estão abaixo. Caramba, nós somos racionais, eles não. A criança não estranhará muito o acima e abaixo, embora nunca tenha ouvido falar no darwinismo social, que elenca ou hierarquiza a sociedade consoante determinadas características, frequentemente medidas através da riqueza pessoal, da inteligência, habilidade para negócios, poder mediático, etc.
Ora, se bem que seja verdade que há animais que parecem compreender-nos relativamente bem numa ordem que lhes dermos, na realidade eles são incapazes de entender uma anedota ou de fazer contas de cabeça. De entre a vasta gama de animais há uns que nos estão mais próximos, que por assim dizer convivem connosco e que são, obviamente, aqueles que conhecemos melhor. O modo como na nossa língua hierarquizamos esses animais é interessante e está longe de ser igual em todas as culturas.
Imaginemos animais como a galinha, o burro, o cavalo, a vaca, o boi, a cabra, o porco, o cão, a hiena, o antílope e o porco-espinho. Verificamos desde logo que os três últimos não vivem exactamente junto a nós nem são populares no nosso vocabulário. Os outros são. Deixemos portanto o porco-espinho, o antílope e a hiena a dormir descansados. Temos os outros com que nos ocupar.
Para já, voltemos aos PIGS. Como cidadão português, sinto-me aviltado sempre que oiço um alemão ou um holandês a incluir o meu país no grupo dos PIGS. Somos todos pessoas, não animais. E logo porcos! De facto, chamar porco a uma pessoa é feio, deselegante e ofensivo. Entretanto, que nome davam os portugueses aos judeus que, muitas vezes sob ameaça de morte ou de perseguição, acabavam por converter-se ao cristianismo? Marranos, não era? E o que são marranos? Não são suínos, porcos? Nem mais.
A visão hierárquica da nossa sociedade está bem expressa no racismo. Portugal foi, como todos sabemos, um país colonizador e um dos maiores traficantes de escravos provindos de África. Esses escravos eram os tais que, para alguns negreiros e não só, nem alma tinham. Uma comparaçãozinha com animais não ficaria mal. E daí nasceram entre outros os mulatos, nome proveniente do cruzamento de um progenitor branco com um progenitor preto, a lembrar as mulas, as quais resultam do cruzamento de um cavalo com uma burra ou de um burro com uma égua. E as cabritas? As cabritas são mais brancas do que as mulatas, mas são também comparadas a um animal. Não se diz cabra por ser demasiado feio; cabrita acaba por ser um eufemismo. A cabrita tem um progenitor mulato e o outro branco. O termo cabrita é possivelmente mais doloroso do que o de mulata. Porquê? Porque podendo a cabrita passar por branca, recordar que ela, apesar disso, é cabrita torna-se-lhe socialmente penoso. Quando brancos racistas o fazem é mesmo uma crueldade.
Os animais entram, pois, na criatividade linguística, deixando escondidos com-o-rabo-de-fora sentimentos racistas ou sexistas. Se é um branco a dominar, a diferença de raças vai servir em princípio para elevar a sua própria raça a um plano de superioridade. Para o fazer, para além de pagar salários mais baixos, cria anedotas depreciativas, de uma maneira muito semelhante àquela que usa para denegrir a mulher (se for homem) ou o homem (se for mulher), o homossexual e a lésbica (pelos seus desvios relativamente ao padrão mais comum), o campónio ou saloio (para acentuar a superioridade do urbano sobre o campesino).
Para denegrir uma mulher, por exemplo, não é raro que o homem use os nomes de cabra, vaca e baleia. Pode dizer que ela é estúpida que nem uma galinha, que parece mesmo uma galinha a cacarejar ou então lembrar-lhe o ditado: se a galinha canta de galo, então corta-se-lhe o gargalo. A mulher chamará ao homem burro, porco, camelo – até este pacato animal do deserto chega a estas paragens - machão ou garanhão. Em caso de adultério o homem será cabrão. A mulher será uma pega ou uma cadela. Uma besta dá para ambos. Tudo animalada. Um homossexual será bicha, que dá para os dois sexos, e veado ou borboleta só para o masculino.
Assim se vê, de uma penada, como os animais servem ao ser humano como arma de arremesso em caso de arrufos, discussões e zangas mais ou menos graves. Se os bichos soubessem deste tipo de uso que os homens deles fazem talvez fossem menos colaborantes e amigos.
Com isto tudo, resta lembrar que o animal mais vezes invocado pejorativamente é indubitavelmente o burro. Este é de longe o grande campeão. Mais domingueiramente, assume o nome de asno. Mas de burrices e de burradas está o mundo cheio, assim como de asneiras, asneirolas e indivíduos asnáticos. Pobres bichos! Quase sempre na mó de baixo!

P.S. Entre outros, deixei de fora três bichinhos simpáticos que são frequentemente usados como comparação para o género humano, nomeadamente para a mulher: a cobra, a víbora, e a serpente da Evita. Foi de propósito; mordem!

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