Poucas coisas me dão tanto prazer como ouvir histórias curiosas de pessoas simples. São histórias que demonstram uma sageza especial e uma vivência nem sempre fácil.
Há dias, estive uns minutos em animada conversa com uma vendedora da praça que conheço há muitos anos. Mulher que está hoje na casa dos setenta, ela costumava vender fruta na rua com o seu carrinho de mão. Porém, quando a polícia começou a andar atrás dos vendedores ambulantes, ela não teve outro remédio senão alugar uma bancada na praça e lá se instalar.
Lembro-me das vezes em que a via colocar para os seus clientes "fruta da boa" num saco preto de plástico, que depois pesava. Quando uma vez lhe perguntei por que motivo os sacos que ela usava - e as companheiras que andavam também a vender fruta na rua - eram sempre daquela cor, ela não mentiu: "Às vezes temos uma maçã ou laranja menos boa e pomo-la logo no fundo do saco. Ora, como o saco é preto não se vê. Não podemos ser só nós a ficar com o prejuízo. Comprámos a fruta como boa, mas já sabemos que uma ou outra peça vem tocada. Assim, distribuímos o mal pelas aldeias." Consciência tranquila, portanto. Isto já é o passado de venda na rua, porém.
Na bancada da praça é diferente. O cliente pode geralmente servir-se a si próprio. Há, evidentemente, algumas excepções, nomeadamente quando um determinado tipo de fruta é mais perecível e não resiste muito ao toque ou ao apalpar mais forte dos fregueses. Nesses casos, é a vendedora que coloca a fruta, seja no saco – que agora já não é preto – ou numa caixa. Embora nem sempre, há alguma marosca feita pela vendedora que continua a existir. Eu diria que lhe está na massa do sangue.
Confesso, entretanto, que a admiro pela vida difícil que leva, por saber que com a sua idade vai buscar fruta durante a madrugada ao mercado abastecedor e conduz ela mesma a sua carrinha. Notável!
E qual foi a última história que lhe ouvi? Queixava-se ela da coluna: já não conseguia carregar caixas pesadas. Nada de mais natural! Tinha geralmente o filho, motorista de táxi, para ajudar na carga e outro homem para a descarga, já na praça. Da queixa do seu mal na coluna passou à doença que teve aos 3 anos e ao acidente alguns anos depois. A doença foi uma paralisia que lhe afectou todo o lado esquerdo; o acidente foi com um automóvel, que a atropelou e lhe partiu os ossos da bacia. Seis meses no hospital após a operação. E sobreviveu assim, com aparente saúde? "O trabalho dá saúde!" disse-me ela. Pois sim; mas a paralisia não evitou que ela ficasse com a coluna um pouco torta e com um braço e uma perna mais atrofiados. Até um pé é maior do que o outro. "Num pé calço 37, no outro 38." E como é que faz para comprar sapatos?, perguntei-lhe. Não há pares de sapatos com dois números diferentes. "Ah, isso nunca me atrapalhou. Entro numa sapataria ou então numa feira e peço para ver uns sapatos 37 e outros 38. Lembro que nem todos os fabricantes têm as mesmas medidas. Depois, com várias caixas à minha frente, compro os sapatos de que mais gosto, mas tenho sempre o cuidado de tirar um 37 e um 38. Até hoje nunca falhou!" Chamei-lhe a atenção para o facto de ela prejudicar o vendedor, que ficava com sapatos desirmanados. "Que tem isso? Deus já me castigou tanto durante a vida que de certeza me perdoa isto! Se me vejo obrigada a enganar este bocadinho, afinal é por culpa dEle." E pronto. Consciência limpa e tranquila.
As desculpas que nós geralmente arranjamos para as nossas acções menos éticas não têm fim. Esta vendedora de fruta está em óptima companhia.
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