5/13/2011

Quando o antigo colonizador passa a colonizado

Em termos da União Europeia, a diferença que se encontra nos padrões existentes entre alguns países-membros como a Alemanha e Portugal é flagrante. Proponho-me estabelecer algumas distinções entre estes dois países. Porquê? Parece-me lógico: um, por ser o nosso país. O outro, a Alemanha, por ser o incontestado líder da União.
O que é hoje a Alemanha começou por ser um conjunto de vários principados com interesses muitas vezes antagónicos em alguns aspectos. Graças à força e poder de liderança de Bismarck na segunda metade do século XIX, acabaram todos por se unir de maneira a formarem um grande país com uma língua e moeda comuns. Entre vários outros factores de desigualdade que existiam, os principados professavam religiões cristãs com um sentido diferente, do que resultaram lutas entre católicos e protestantes. Ainda hoje, afastadas já que são as guerras religiosas, existem regiões na Alemanha que são predominantemente protestantes e outras católicas. Curiosamente para quem defende a paz e a uniformidade a todo o custo, dessas lutas resultou uma maior liberdade. Porquê? Basicamente porque as águas agitadas conduzem sempre ao levantar de questões e estas, por seu lado, desenvolvem o sentido crítico das pessoas. Fica-se a saber, conscientemente, por que motivo se é católico ou protestante e, dentro deste segundo grupo, se se é luterano ou calvinista, por exemplo. Ou se é ateu. Ou agnóstico. O mesmo sucedeu em Inglaterra, na França, na Holanda.
Pelo contrário, em Portugal nunca houve verdadeiras lutas religiosas. A Igreja católica constituiu um verdadeiro monobloco. A censura instaurada por diversas formas, entre elas através da Inquisição eufemisticamente denominada “Santo Ofício”, controlou sempre quaisquer desvios da religião oficial. São conhecidos os casos de portugueses que, ou por possuírem uma costela judaica, ou por advogarem ideias que poderiam constituir um embaraço para os governantes políticos e religiosos do país, foram remetidos ao exílio da pátria. Noutros países - desde a Inglaterra à Rússia, à França, à Holanda e à Itália -, alguns tornaram-se famosos dentro da sua área, sendo no entanto praticamente ignorados em Portugal. São os “estrangeirados” que, para que o nacionalismo bacoco dos portugueses fosse exaltado, foram virtualmente considerados inimigos da pátria. A falta de liberdade no país e a ausência de espírito crítico que se pudesse manifestar abertamente levou facilmente ao domínio de uns tantos sobre todos os restantes.
A grande clivagem nacional entre ricos e pobres arrasta-se há séculos, geralmente sob a branda complacência da Igreja Católica e dos governantes que ao longo dos séculos vêm dirigindo a nação. Judeus cultos e proeminentes foram expulsos de Portugal, indo enriquecer com o seu contributo outras nações. Do conceito judaico de “povo eleito”, Portugal manteve até hoje cultos profundamente enraizados que nos falam de um paraíso “à beira-mar plantado” e do país como “uma dádiva de Deus a um povo eleito”. Vivendo entre a ficção mítica que o uso da História tão habilmente manipulou e a realidade menos agradável e mais sombria, o povo tem de há muito a consciência de que no país a justiça é, simplificadamente, a justiça dos ricos, e que a corrupção prevalece impune sempre que os VIP estão sob a alçada da justiça. O povo apreendeu também como natural o facto de que aqui “os rios correm para o mar” quando é o deserto que mais precisa da sua água. Pouco instruídos no geral quando comparados com trabalhadores de outros países do norte da Europa, os portugueses parecem possuir melhores qualidades de trabalho quando exercem actividades para si próprios do que quando, por exemplo, servem o Estado. Como sabemos, os trabalhadores portugueses são muito apreciados na Europa pelos empresários e governantes, não só por serem de facto diligentes e bem dotados, como também por se constituírem em comunidades que poucas ou nenhumas ondas de perturbação levantam em países estrangeiros.
Para além de alguns períodos relativamente curtos em que tivemos alguma indústria nacional que se visse – com o Marquês de Pombal, primeiro, e com a nossa entrada na EFTA na segunda metade do século XX - somos basicamente um povo de comerciantes. Compramos para vender. Não totalmente a despropósito, há quem nos chame “os árabes da Europa”. Os nossos centros comerciais são fabulosos, mas infelizmente vendem mais artigos estrangeiros do que portugueses. Os Lusíadas já foram apodados de "a Bíblia do comércio". E quem faz estas comparações? Geralmente pessoas de países protestantes ou de ascendência judaica.
E quanto aos alemães? Bem, esses, talvez pelo posicionamento da antiga (e actual) capital, Berlim, talvez pelas lutas de separação da Áustria católica nas lutas entre Viena e Berlim que esta última acabou por vencer, são mais protestantes do que católicos na sua maneira de ser. Daqui resulta que o que Max Weber refere a propósito da reforma é particularmente interessante e continua válido de uma forma geral: "Quando um sócio do banqueiro Jakob Fugger se aposentou porque já tinha ganho o suficiente e aconselhou Fugger a fazer o mesmo, este classificou a atitude de pusilânime e disse que ele próprio queria trabalhar e ganhar dinheiro enquanto pudesse. Estamos em presença de um cunho ético de conceito de vida. O ganho é considerado como objectivo da vida do homem e não apenas como um meio de satisfazer as suas necessidades materiais."
No que nos diz respeito, creio que na generalidade se pode dizer que somos um povo por natureza desconfiado, que acredita pouco em estranhos e prefere ter empresas dinasticamente familiares a criar grandes empórios de difícil controlo. Aqui somos muito diferente dos alemães, os quais, pela sua cultura própria, pelas características do seu sistema educativo e também pelo clima, não só confiam mais no trabalho de equipa – expulsando sem hesitação quem não seguir as regras do grupo – como tendem a criar empresas de dimensão muito maior.
Razões históricas que se prendem com empreendedoras viagens de exploração marítima e com o comércio dos portugueses com as populações nativas em vastíssimas zonas do Atlântico e do Índico em séculos passados fizeram com que Portugal conseguisse um império que durou vários séculos e se finou em 1974. Aí também, como seria de esperar, imperou o comércio, incluindo o da escravatura. Portugal foi construindo um vasto império de ambos os lados do Atlântico Sul: na América com o vastíssimo Brasil, em África com Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e a enorme Angola. Do outro lado de África, já no Oceano Índico, os portugueses fizeram de Moçambique também uma importante colónia. E, ainda, mais longe da metrópole, territórios na Índia, Macau e Timor contribuíram para a riqueza portuguesa.
O grande patrão de tudo isto não eram empresários privados, mas sim o Estado. Os réditos acabavam por vir para a nação, mas posteriormente a sua distribuição deixava muito a desejar. Construíram-se numerosas igrejas e decoraram-se muitas outras com riquezas que incluíam ouro e prata. Quanto ao povo, ele era mantido em grande parte analfabeto. Da afluência de riquezas vindas do Brasil e, mais tarde, das colónias africanas, resultou uma certa indolência nacional, que pouco desenvolveu a ciência e a investigação, ao contrário do que aconteceu na Alemanha, que, embora sem existir ainda como país nem possuir colónias, desde a Idade Média se uniu em ligas, v.g. liga hanseática, contou com banqueiros tão importantes que chegaram a fazer eleger papas, foi com o tempo fazendo significativas descobertas no campo da física, da química, das ciências naturais, da filosofia e da música, e se preocupou com a instrução das populações.
Suponho que posso dizer que, no Portugal de tempos idos, a vida se tornou relativamente fácil para empresários e pessoal dirigente. Graças ao trabalho de escravos nas colónias ou de trabalhadores com salários baixos, conseguiam boas maquias na metrópole, com as quais iam vivendo. Tinham obrigatoriamente de estar de boas relações com o Estado e com a Igreja. Frases que ainda hoje se usam, como "O trabalho é bom para o preto", "trabalhar que nem um preto" e outras semelhantes entraram no vocabulário português e nele se mantiveram até hoje. Foram mantidas igualmente outras, como "trabalhar que nem um mouro", "ser um mouro de trabalho" e "julgas que eu sou um galego que faz tudo?", expressões que são resquícios da exploração do trabalho de populações muçulmanas e de galegos mais pobres que tentavam a sua chance em cidades maiores como Lisboa e Porto.
Estes conceitos não vêm a despropósito. Da mesma maneira que todo o homem se desenvolve com base numa infância e adolescência já passada, também os países têm estas suas idades que já foram engolidas pelo tempo mas que, no entanto, deixam sempre marcas que se mantêm até ao presente.
Quanto, durante a década de 90 do século passado, a União Europeia decidiu criar o euro – à semelhança do que os alemães tinham no final do século XIX feito com o seu marco -, o engenheiro Rogério Martins, que foi ministro após o 25 de Abril e sempre mostrou ser um bom conhecedor da história alemã, comentou num interessante artigo que não nos devíamos esquecer de que, para os germânicos, a substituição do marco pelo euro e a adesão de vários países a esta nova moeda, era "oiro". Expressando a sua ideia com graça, ele fez notar que, na pronúncia alemã, o –eu- se lê algo como –ói- , de onde a maneira alemã de pronunciar a nova moeda se assemelha de facto a "oiro". Foi uma observação perspicaz e certeira. Na realidade, pouco a pouco e apesar dos imensos dinheiros consumidos na restauração da reunificação com a República Democrática após a queda do Muro de Berlim, a Alemanha foi ganhando terreno através de trocas comerciais que lhe eram invariavelmente favoráveis e, graças a uma política de forte contenção salarial, conseguiu aumentar substancialmente a sua competitividade e surgir, após uma década, como o grande motor da União Europeia.
Falando do presente, verificamos que as exportações alemãs bateram no passado mês de Março todos os recordes com registo até agora (os registos existem desde 1950). Só no mês de Março, os alemães conseguiram exportador mercadorias e serviços no valor total de 98,3 biliões de euros. As importações também foram elevadas e atingiram igualmente um valor record, mas entre os 79,4 biliões de euros que as importações totalizaram e os 98,3 biliões das exportações ainda existe um saldo positivo praticamente da ordem dos 19 biliões de euros. Num mês. Nada de desprezar! Presentemente, a Alemanha é o segundo maior exportador mundial, logo a seguir à China. É opinião quase unânime que o país está a entrar numa década de ouro.
Com isto, acentua-se o facto de a Zona Euro estar a operar em duas velocidades. Enquanto a Alemanha e a França crescem, Portugal e a Grécia atravessam enormes dificuldades. E os juros dos empréstimos concedidos a estes dois países periféricos são altíssimos, mais para os atirarem para fora do euro do que para os manter no cabaz da moeda única. No fundo, os países de maior velocidade na Europa conhecem bem aquilo que é da sabedoria popular: maçãs podres num cesto de fruta tendem a fazer apodrecer toda a outra fruta do cesto. O remédio mais rápido e, certamente, mais eficaz, é o de nos livrarmos das maçãs que não estão sãs. Deixando a linguagem figurada: então, e se por acaso os países mais ricos tiverem interesses investidos nesses de economia mais fraca? Bem, se esse for o caso, ter-se-á então de arranjar maneira de garantir o seu pagamento. Emprestar dinheiro para que essa liquidação seja feita é uma das medidas possíveis. Quanto ao destino dos países sujeitos a este tratamento, isso é lá com eles! Se tivessem tido juízo e se tivessem comportado de outra maneira, não lhes teria sucedido o que sucedeu. Não nos recordamos todos da fábula do sapo que queria ser tão grande como o boi e tanto se encheu que rebentou? Porque é que uma história antiga não pode ser válida hoje em dia?
Para nós, portugueses, a situação não é nada brilhante. Embora tenhamos naturalmente que levantar cabeça e lutar, aquilo de que se falava há anos – "enquanto o alemão é arrogante, o português apresenta-se com ar rogante" – confirmou-se. Infelizmente. Na Alemanha existiu uma estratégia nacional de liderança. Os sindicatos cooperaram. A Alemanha ganhou uma nova consciência nacional. A competitividade que conseguiu nas suas exportações – muitas vezes para países da União Europeia – foi obtida graças a trabalho disciplinado, à mencionada contenção e ao fabrico dos componentes mais rudimentares para a sua indústria noutros países de salários mais baixos, reservando para o território alemão o fabrico dos componentes de tecnologia mais avançada. Com isso conseguiu preços concorrenciais e obteve o elevado montante de exportações atrás referido. Sem ser agora uma nação bélica – depois das experiências mal sucedidas da duas Grandes Guerras do século XX não se esperaria outra coisa -, a Alemanha não deixa de colaborar em todas as acções em que os Estados Unidos são a força predominante. Assim, enviou tropas suas para o Iraque, para o Afeganistão e outros países, à luz de tratados internacionais. Mas soube retirar a tempo as suas forças estacionadas na Líbia. Com isso, garante um posicionamento entre os primeiros lugares do comércio com os países em que as suas tropas operam. Através da sua política, a Alemanha tornou-se uma espécie de China de qualidade superior. As grandes somas de dinheiro que arrecada com as exportações são parcialmente investidas com bons juros noutros países da União Europeia, e não só.
Será bom lembrar aqui que a Alemanha foi, ainda no final do século XIX, o primeiro grande país a defender a política do Lebensraum, i.e. do espaço vital. De acordo com esse conceito, o espaço ocupado pela Alemanha na Europa seria demasiado reduzido para a capacidade e para o potencial alemães, de onde urgia que o país se expandisse e fosse ocupar outros territórios. O mundo só ganharia com isso. O seu grande problema foi que esses territórios já estavam ocupados pelas colónias europeias da Inglaterra, de Portugal, da França, da Espanha, da Bélgica e da Holanda. Para os conquistar, teria que delas desalojar os seus dominadores. Daqui resultaram, entre outros factores, as sucessivas acções bélicas que se traduziram em dois longos e mortíferos conflitos armados.
Eu diria que nas últimas décadas a política alemã tem sido bem diversa, mas não foge ao ambicioso conceito do Lebensraum. Tal como sucede com os chineses, o excesso de dinheiro do seu comércio tem sido usado para adquirir dívida soberana de alguns estados, de que se salientam Portugal, Grécia e Espanha.
E é aqui que eu entraria com a questão levantada pelo título deste post: quando o antigo colonizador passa a colonizado. Vou tentar ser claro. Uma das características principais do colonialismo, hoje aparentemente obsoleto, é a existência de comércio não-justo entre o país colonizador e a sua colónia. O país colonizador vende caro e compra barato. É uma situação que pessoalmente me lembra o que tive ocasião de presenciar em Angola em vários locais: fora das cidades, no chamado “mato”, cantinas (lojas) de brancos vendiam de tudo aos nativos a preços elevados e, no final do ano, se por acaso os nativos não tinham dinheiro para pagar a conta em dívida, os proprietários das lojas negociavam com os seus devedores o pagamento através de terras. Jomo Kenyatta (1894-1978), um esclarecido dirigente negro do Quénia, resumiu brilhantemente aquilo que, do seu ponto de vista, sucedeu com a colonização britânica: "Quando os brancos chegaram a África, nós tínhamos as terras e eles a Bíblia. Ensinaram-nos a rezar de olhos fechados. Quando os abrimos, eles tinham as terras e nós a Bíblia." Permito-me imaginar com que sentimento interior de revolta esta frase foi escrita.
Eventualmente mais importante ainda do que esta situação, porém, é o facto de as decisões de política comercial serem todas tomadas no país colonizador. Isto significa – ou significou, se se preferir – que, entre outras coisas, as eventuais plantações de açúcar, de algodão, de café, de cacau, etc. eram na sua generalidade feitas em proveito daquilo a que geralmente chamámos metrópole, que assim alimentava as suas fábricas de lanifícios, as suas refinarias de açúcar, as suas torrefacções de café, as suas fábricas de chocolate, etc. Daqui resulta que a colónia, por natureza não independente, tem – ou teve - de se submeter aos desígnios e interesses da metrópole.
No que toca à Alemanha, o país não viveu muito esta questão, embora tivesse tentado. E fá-lo-ia de forma bem mais insensível do que Portugal, a julgar pela sua experiência na Namíbia e pela sua tentativa de total aniquilação da população local. Ora, presentemente a Alemanha faz com Portugal e com a Grécia aquilo que um colonizador moderno faria, implacavelmente, com uma colónia, embora em moldes diferentes. O envio de uma comissão com poderes decisórios – a famosa troika – é bem reveladora do que digo. O documento assinado pelas autoridades portuguesas é de pura submissão. Por outro lado, a fixação de uma taxa de juro elevadíssima para o empréstimo denota exactamente o mesmo. A grande diferença é que agora não falamos de plantações, nem de explorações de petróleo ou de diamantes. Falamos de dinheiro. Vem a dar no mesmo. Infelizmente para todos, Portugal é forçado a beber do veneno que durante centenas de anos deu, talvez inconscientemente por parte de muitas pessoas, a beber aos povos que colonizou. São assim os altos e baixos da vida, na qual a única grande certeza é a de que nada se manterá eternamente igual: tudo, mais lentamente ou de forma mais rápida, acaba sempre por mudar.

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