12/17/2007

Verso e reverso


Imagine que, num exame de História, lhe pedem para responder a uma pergunta sobre as grandes linhas do Renascimento nos séculos XV e XVI. O mais natural é que na sua resposta se refira a um vasto movimento cultural que marca o fim da convencionada Idade Média, com o despertar na Europa de um entusiasmo pelos estudos clássicos, um renovada afirmação do papel que está reservado ao homem na Terra, a redescoberta da ciência, e a importância das viagens marítimas de descobrimento no aparecimento de uma enorme curiosidade relativamente ao mundo. Após escrever sobre tudo isto, deter-se-á. Colocará um ponto final.
Deveria, no entanto, ter parado aí? Montaigne, que viveu no século XVI e foi, portanto, testemunha da sociedade desse tempo, escreveu: "Tudo rui à nossa volta, em todos os grandes Estados, seja de cristandade, seja em outras partes. Olhai, e encontrareis uma evidente ameaça de mudança e ruína." A que se devia este posicionamento preocupado de Montaigne? Ao desmoronamento de antigas crenças e concepções, "que davam ao homem a certeza do seu saber e segurança no que fazia. O século XVI desmoronou tudo: a unidade política, religiosa e espiritual da Europa; a certeza da ciência e da fé; a autoridade da Bíblia; o prestígio da Igreja e do Estado."
Daqui terá nascido, como sabemos, um vasto período de cepticismo que levou a duas vias: uma de profunda reanálise da sociedade e do conhecimento em Inglaterra e França, nomeadamente com Bacon e Descartes. A outra que conduziu, inversamente, ao arreigamento de antigas mentalidades, intransigentemente apegadas à cultura anterior. É, afinal, este o processo da Reforma (protestante) em países como a Inglaterra, a Holanda, em vários Estados da futura Alemanha, na Suiça, etc. e da Contra-Reforma da Igreja católica, em nações como a Espanha e Portugal, com profundos efeitos até aos nossos dias - até porque as viagens de descoberta e conquista levaram os povos ibéricos a obter o domínio de toda a América Latina, deixando para a cultura cristã predominantemente de raiz protestante a América do Norte.
O que pretendo fazer aqui, de forma necessariamente breve devido aos constrangimentos impostos pelo blogue, é uma sumária comparação entre essa situação do passado e o actual estado do mundo, naquilo a que se convencionou chamar "globalização". Tal como Montaigne o foi no século XVI, nós estamos a ser testemunhas de uma enorme agitação e mesmo revolução. Aliás, não somos apenas testemunhas. Somos participantes.
Geralmente quem fala sobre a globalização exalta as suas potencialidades. Mas é difícil de escamotear o facto de que a incerteza reina e a relativa segurança das décadas que antecederam os dias de hoje tem vindo a diluir-se. Ressurgem conceitos que se poderiam julgar definitivamente ultrapassados, como a precariedade do trabalho, a desumanização das relações laborais, a mentalidade que vira costas ao social para embarcar furiosamente no lucro puro e duro.
Será que o conceito de globalização ocorre pela primeira vez? Então, e a actividade de séculos dos portugueses nos mares da Índia, da China e do Japão? E as armadas espanholas que transportavam enormes quantidades de mercadorias, de ouro a prata, de especiarias a cerâmica, entre as Filipinas e a América Latina e a Europa? E a grandiosa frota holandesa, que ia tão longe que precisou de criar um crucial entreposto na ponta de África onde Atlântico e Índico confluem, que depois se transformou na África do Sul mas que entretanto permitiu que se fizessem com notável sucesso viagens a Ceilão e à Indonésia? E que dizer da mais poderosa de todas as frotas comerciais e de guerra - a britânica - que formou variadíssimos empórios comerciais, logrou impor-se em todo o vasto continente indiano, vergou o poderio chinês, entrou pela Nigéria dentro e tornou viável a colónia que mais tarde se haveria de transformar nos Estados Unidos da América? Esta globalização que hoje vivemos é, apenas, mais uma globalização. Certamente diferente das outras pelos meios tecnológicos que utiliza, mas tão ou mais exploradora do homem do que todas as outras.
Entretanto, porque terminaram as globalizações anteriores? Porque eram ciclos e não processos lineares que se pudessem estender indefinidamente. Porque as questões em jogo não permitiam continuar o processo da mesma forma. Daí resultaram nuns casos meras querelas, noutros conflitos em maior escala e, em certas conjunturas, sanguinolentas guerras entre as nações colonialistas europeias promotoras dessa globalização.
Não creio que estejamos presentemente à beira de uma guerra, mas é curioso ver como as nações se agregam em blocos para assim se tornarem mais poderosas. Sob o ponto de vista militar, EUA e Rússia continuam a ser os países mais poderosos num mundo global que está muito longe de ser um vastíssimo estado de direito, pelo que, quer queiramos quer não, a derradeira divisa continua a ser might is right (o poder está na força). Daí que ameaças verbais contem pouco contra o real poder das armas. Já nos teremos esquecido de factos ainda recentes como os bombardeamentos de Belgrado, Bagdade e Beirute, todos por aviões ocidentais? O que puderam as populações de Beirute, Bagdade e Belgrado fazer contra as bombas despejadas do ar?
Ameaças fortes, tais como desequilíbrios sérios nas moedas, valorizações e desvalorizações substanciais a fomentarem desemprego e descida do nível de vida, largos movimentos migratórios, elevados preços de matérias-primas e especulação financeira de grande gabarito podem, a prazo indeterminado, conduzir a conflitos bélicos de pequena, média ou grande envergadura. Tudo é uma incógnita. É por isso que convém recordar as palavras de Montaigne sobre o seu tempo. Tanto a (boa) globalização como o seu reverso são factos a tomar em linha de conta.

Nota: As linhas entre aspas foram retiradas de uma conferência de Manuel Cícero, a que assisti na Gulbenkian há uns meses.

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