12/14/2007

Ainda o acordo ortográfico

Sinto que já não deveria voltar neste blogue ao tema do acordo ortográfico. Há uma boa razão: não suscitou qualquer comentário. Mesmo assim, não me conformo, repetindo embora algumas das minhas ideias-chave. A primeira é que não sou de maneira nenhuma contra mudanças, desde que elas façam sentido e tenham lógica no contexto de uma determinada sociedade e língua. A segunda, também básica, é que não entendo por que razão sociedades diferentes que tiveram a sua evolução própria e são hoje, politicamente, nações independentes, hão-de querer unificar a sua ortografia, se a sua maneira de pronunciar as palavras é por vezes bem diferente. Haverá sempre alguém a ser forçado, e nada justifica isso. Parece que só a parte comercial é que interessa. Até nisto, Santo Deus! A língua, seja na sua forma oral, seja na escrita, não é algo em que se possa mexer como se manipula um produto!
No outro dia, calhei ter ao pé de mim uma edição datada de 1820 de uma obra do Padre António Vieira. Tirei, de propósito, algumas notas. Naquela altura, escreviam-se muitas consoantes duplas que mais tarde se verificou serem desnecessárias, v.g. accender, appetite, aquelle, intelligencia, annos, elle, nellas, soccorro, efficaz, occulto, succede, supponho; ditongos nasais que pareceriam muito esquisitos hoje: satisfaçaõ, naõ, irmaõ, irmãa, maõ, lãa, ladroens, varoens, Capitaens; não se acentuavam palavras nitidamente esdrúxulas como temerario, prudencia, misericordia, lisongeas, materia e Alfandega; muitas palavras graves eram desnecessariamente acentuadas, v.g. pódem, Angòla, cautélas, tomára, óvos, póde, démos; a 3ª pessoa do plural dos verbos no indicativo presente era muito estranha, como se pode ver em trabalhaõ (trabalham), entendaõ, saibaõ, etc.
Ora bem, tudo isto foi corrigido, felizmente. Hoje a língua portuguesa está melhor graficamente, mais rápida na escrita e mais lógica. Não achei mal uma das últimas mudanças que se fizeram, que foi retirar a acentuação nos advérbios de modo (terminados em –mente, como somente, tecnicamente, etc.) Não estou em desacordo com alterações que estejam de acordo com a nossa pronúncia e sejam passíveis de simplificação reflectida e lógica.
Estou, no entanto, totalmente em desacordo com o facto de termos ou que puxar por outros países ou andar a reboque deles. Se o tempo do colonialismo acabou, não se diga uma coisa e faça-se outra. Não temos rigorosamente nada a ver com a grafia do português que se fala no Brasil. Nem devemos tentar mudar a ortografia usada pelos brasileiros nem eles a nossa. Idem para os angolanos e moçambicanos. Os países independentes tomam o rumo que querem. Ponto final.
Repare-se no exemplo dado pelo inglês do Reino Unido e pelo inglês dos Estados Unidos, que, naturalmente, faz com que os nossos computadores estejam equipados com um inglês UK e um inglês USA. O mesmo poderá suceder, se é que não sucede já - e com naturalidade - entre o português de Portugal e o português do Brasil. Quando leio um livro brasileiro, noto logo nas primeiras linhas que está escrito em português do Brasil. Tudo bem. Sigo em frente. Quando um brasileiro lê um livro de um autor português, repara imediatamente que existem diferenças substanciais, e que estas estão longe de se resumir a ortografia. Isto está correcto e é normal. É a evolução natural das sociedades e das línguas. Para quê alterar o que está bem? Colonialismo no sentido inverso? Se quem anda a tratar desta errada uniformidade ortográfica fosse plantar batatas, seria bem melhor! Talvez ao andar de cabeça baixa para plantar as ditas percebesse melhor a dimensão do problema.

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