"O síndroma do –s" (02/12) gerou algumas perguntas, a que tentarei dar resposta. Além dos comentários registados, recebi algumas questões que me foram colocadas por e-mail. Na suposição de que determinadas perguntas carecem de uma resposta que será eventualmente de interesse para mais leitores, permito-me responder com novo texto nesta parte principal do blog. Fica combinado que (1) voltarei ao síndroma do -s devido à questão do apóstrofo, (2) tratarei noutro post o assunto do a ou an em inglês antes de substantivo e, já a seguir, tentarei responder a uma questão mais genérica que me foi colocada por M. Alfacinha: porque é que, embora conheçamos as regras de uma língua estrangeira, continuamos por vezes a cometer erros?
Todos sabemos que ensinar e aprender estão, pelo menos em princípio, intimamente ligados. A aprendizagem da língua materna é uma das primeiras actividades humanas. O ensino faz-se, regra geral, de pais para filhos. Mãe, pai, avós & Cª são exímios a ensinar e têm nos bebés atentos alunos, conquanto eles pareçam por vezes algo distraídos. Porque as crianças de berço nada sabem, os ensinantes martelam as palavras, como se estivessem a martelar as teclas de um piano. É uma técnica universal. Repetem as sílabas para que as palavras encaixem melhor no cérebro que se está a desenvolver. É dessas repetições que vem a palavra bebé, conjuntamente com mamã, papá, xixi, cocó, papa, teté, popó, e até o tau-tau. A criança vai absorvendo. Um dia acabará por substituir essas palavras por outras mais adultas, mas reservá-las-á no seu cérebro para falar mais tarde com os seus próprios filhos. Os exemplos acima são de substantivos, uma das partes mais simples da língua. Porém, quando uma criancinha começa a ter de construir frases, o caso muda de figura e torna-se mais complexo. A diferença nos verbos entre passado, presente e futuro implica desde logo a assimilação da noção de tempo, algo que não é intuitivo mas que a criança vai assimilando. Na realidade, vai assimilando tão bem que, pouco a pouco, vai apreendendo e construindo para si própria as regras básicas da (sua) língua. Os adultos vão continuando a falar com ela, e quanto mais o miúdo ou a miúda tiverem de compreender, tanto melhor se expressarão quando precisarem de o fazer. A criança criou, entretanto, o seu software linguístico baseado nos padrões de regularidade que foi captando. Previsivelmente, a mesma criança claudicará nas excepções. E não são tão poucas como isso. Um adulto já há muito que passou essa fase porque esteve exposto à língua durante muito mais tempo. Porém, é normalíssimo e até saudável que uma criança se engane nos tempos verbais e diga posi em vez de pus, di em lugar de dei, ou fazi querendo dizer fiz. São coisas que geralmente provocam o riso dos adultos, mas que não são mais do que o reflexo da apreensão da base da língua (ele pôs, logo eu posi; se eu vi, eu di; ela faz, logo eu fazi). Na mesma linha, é natural que as crianças falem em cãos e não digam logo cães. Aprenderam a regra do padrão normal por si próprias, e é agora que vão começar a lidar com as excepções, o que levará o seu tempo.
Ora, na aprendizagem de uma língua estrangeira, uma criança, um adolescente ou um adulto já tem normalmente que contar com o seu próprio substrato linguístico, por si criado e profundamente enraizado. Vamos supor que a língua estrangeira é o inglês. Para aprender de cor expressões como good morning, good night, thank you, good-bye, ou substantivos como school, book, pen, pencil, ball e coisas simples como estas, a criança não necessita de criar outro software, embora entenda que se trata de uma língua diferente da sua. Contudo, quando precisar de usar adjectivos e substantivos, formas verbais ou construir frases negativas ou interrogativas, aí tem mesmo que criar outro software na sua cabeça. Se as novas estruturas lhe forem explicadas de forma simples, em processo gradual e dando-lhe a possibilidade de ela própria começar a aplicar os conceitos, aprenderá com relativa facilidade. E quanto a fazer erros? Recordemos os exemplos dados, reais, de eu posi, eu di, eu já fazi, e outros, que a criança nunca ouviu da boca de um adulto mas que criou à sua maneira, dentro da regularidade padrão que ela própria edificou. Na aprendizagem da língua estrangeira, vai suceder praticamente o mesmo, mas com comparações diferentes: quanto maior for a diferença entre a estrutura da sua língua materna e a do idioma que está a aprender, tanto menos fácil em princípio se torna a aprendizagem.
Paremos aqui um pouco para lembrar que lembrar que, em português, formação é um vocábulo simples, o que normalmente não sucede em inglês. Para este conceito de formação, o inglês usa education and training, o que nos dá uma chave importante. Tomemos education como a explicação teórica e training como a prática. Os dois aspectos completam-se entre si. Quem raramente pratica uma língua tem, logicamente, mais probabilidade de cometer erros. Porquê? Porque não criou as rotinas suficientes. A criação de rotinas é essencial para que, com uma boa base teórica, que estabeleça uma diferença facilmente compreensível entre os dois tipos de software linguístico, o aluno deixe de pensar tanto na forma do que diz e passe a falar ou a escrever com maior fluência. Daí que seja muitíssimo importante, por exemplo, que nas aulas de língua inglesa se use apenas o inglês como idioma, reservando eventualmente o português para o mero significado de um substantivo, adjectivo ou verbo.
Ao longo da minha vida profissional, encontrei alguns óptimos professores de língua inglesa. Para a esmagadora maioria daqueles com quem trabalhei, o inglês era a língua materna. Pessoalmente, aprendi muito com eles, mas também notei que precisavam frequentemente de saber como explicar a estudantes portugueses determinadas questões. Nenhum deles, porém, fazia erros do género de I didn’t knew it, ou It’s twenty miles far from Lisbon ou It’s a five-stars hotel. Por seu lado, os professores portugueses eram geralmente muito bons, sabiam explicar bem, mas podiam de vez em quando ter um slip of the tongue do género de Did he said that?. Acontece a todos. No passado também me aconteceu a mim. É gravíssimo? Não, a não ser que seja frequente. Aí será realmente preciso corrigir urgentemente. Sabe-se a explicação, mas ainda não se conseguiu a automatização total. Eu diria que com a prática muitos dos erros serão eliminados, porque a componente training é essencial. Para adolescentes (e não só), os filmes são um óptimo complemento de aprendizagem, assim como a leitura de peças de teatro modernas (com um diálogo natural e, ainda por cima, escrito) e a participação em programas de intercâmbio como o Erasmus.
Já agora, convém que quem se põe a aprender uma língua não tenha a aspiração de ser cem por cento perfeito. É uma atitude que tende a causar inibição. No fundo, é preferível cometer um deslize linguístico com um sorriso do que falar de forma gramaticalmente correcta com uma cara-de-pau.
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