Acho que para lá do primeiro reflexo que todos nós vemos, que é possivelmente a nossa imagem e a de outros num espelho, um outro reflexo que não nos escapa é o do céu espelhando-se nas águas do mar ou de um lago. Talvez tenha sido esta imagem que inspirou ordens religiosas como a dos cistercienses a conceptualizar uma ordem divina lá em cima no céu, que os monges tentavam reproduzir na Terra o mais fielmente possível. Assim, baseados nessa visão celestial, os conventos e mosteiros terrestres da Ordem de Cister seguiam sempre o mesmo tipo de construção nos vários países em que foram erguidos. Respeitavam o plano original.
Lembro-me que, quando aprendi este facto, dei por mim a pensar de maneira mais reflexiva, no sentido literal da palavra. Recordo-me que ao ir pela primeira vez a Évora com olhos de ver, depois de encontrar nas terras do Alentejo próximas da cidade vastos latifúndios, imaginei que o reflexo dessas propriedades tinha de ser visível nas casas que iria encontrar na cidade. Como seria natural, a ideia confirmou-se com a existência de algumas casas amplas, não altas, mas sempre com um fresco átrio e numerosas divisões.
Da mesma forma, é normal que se pense nos muitos zeros de conta bancária que os proprietários de luxuosas vivendas, automóveis espectaculares, iates e aviões privados têm necessariamente de possuir. É mais uma vez o reflexo, aquilo a que o fiscalista chama "sinais exteriores de riqueza".
Numa outra versão do mesmo tema, encontro frequentemente um reflexo notório nos transportes públicos lisboetas, dos autocarros ao metro, e nalgumas zonas da cidade. Não se trata aqui de casos de pobreza ou de riqueza, mas algo de ordem histórica e cultural. A percentagem de pessoas de cor não branca na cidade de Lisboa é hoje em dia bastante elevada. Angolanos, cabo-verdianos, brasileiros, moçambicanos, guineenses, são-tomenses, goeses, timorenses são às dezenas, às centenas, aos milhares. Nada tenho contra eles, obviamente, mas não posso deixar de entrever aqui o reflexo bem nítido de uma sociedade portuguesa que foi colonialista durante séculos. Os efeitos dessa longa colonização por outras terras mais tropicais acabam por reflectir-se no dia-a-dia de hoje. Também Londres, dado que o império britânico se espalhou por todo o mundo, oferece um reflexo semelhante, embora aí a percentagem maior seja de indianos, paquistaneses e nigerianos.
Em contrapartida, se formos, por exemplo, a Viena, a Berlim, a Praga, Budapeste ou Zurique, constatamos que a percentagem de pessoas de cor não branca é muitíssimo mais reduzida. A não-existência de um passado colonial do tipo do nosso ou do inglês explica imediatamente o fenómeno.
No jogo da vida, é interessante pensarmos nos aspectos em que somos apenas o reflexo, contrastando com outros em que somos eventualmente agentes de imagem-espelho.
A propósito do reflexo colonial, permito-me recordar o início do interessante ensaio A Stranger in the Village do escritor negro americano James Baldwin, publicado há cerca de 50 anos: "From all available evidence no black man had ever set foot in this tiny Swiss village before I came. I was told before arriving that I would probably be a "sight" for the village; I took this to mean that people of my complexion were rarely seen in Switzerland, and also that city people are always something of a "sight" outside of the city. It did not occur to me – possibly because I am an American – that there could be people anywhere who had never seen a Negro."
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