10/14/2007

Ouro e Platina

Tenho um apontamento datado de 1996 em que me classifico como truth-seeker. É mais uma naiveté da minha parte. Leio nesse escrito que - perdoem-me a longa transcrição - "o que mais me toca é o desvirtuar deliberado da verdade para servir causas próprias. Incluo dentro deste desvirtuamento a propositada ocultação de factos, o que conduz, pelo desconhecimento objectivo das situações na sua globalidade, a um conhecimento truncado, frequentemente a servir a causa de determinados interesses. É contra esta situação que luto, seja a nível de notícias claramente manipuladas na imprensa ou na televisão, seja a nível da educação transmitida oficialmente nas escolas. O amante da verdade que sou não se importa de ir contra valores pré-estabelecidos e virtualmente intocáveis. Assim, posso aparentemente ir contra a noção de pátria, contra um membro do clã familiar, contra o meu próprio clube desportivo, contra a empresa em que trabalho. Na realidade, não estou contra uma coisa; estou apenas a favor da verdade, e esta é que pode ser incompatível com certas noções geralmente aceites no seio do clube, da empresa, da família ou da nação. Daí que a minha posição seja sempre de um certo distanciamento, de recusa absoluta de ser incondicionalmente por uma pessoa, por uma coisa. Admito como lógico e natural que várias pessoas me considerem, devido a isto, frio para com as instituições. Contudo, a minha posição é, a meus olhos e muito pelo contrário, de ardente defesa, pois só com uma base sólida, assente na verdade, se pode caminhar em frente. Tanto a instituição como eu. (Que a verdade se divulgue ou não é um aspecto diferente, que pode ter a ver com estratégias; há, como é óbvio, segredos militares, por exemplo, que não podem ser divulgados pois serviriam uma parte contrária; mas, fora estes casos que são do senso comum, que não se minta deliberadamente, enganando a sociedade e preparando-a defeituosamente para o futuro.)"
Isto era aquilo que eu escrevia e verdadeiramente sentia. Continuo a senti-lo, e por isso reproduzi aqui este passo. Nas duas instituições onde mais tempo trabalhei procurei sempre encontrar o máximo de verdade no campo da pedagogia. Produzi relatórios onde estudei ambas as escolas, embora mais a privada do que a pública. Os relatórios que produzi continham dados interessantes, que proporcionavam visões de conjunto alicerçadas em informação concreta e real. Recordo-me que o director da instituição particular, que era sempre a primeira pessoa a ler o relatório que eu fazia motu proprio com periodicidade anual, me dizia frequentemente: "Não se esqueça de que estes relatórios são confidenciais". Por outras palavras: eu fazia os estudos, retirava as ilações, e depois não deveria divulgar nada. De facto, eu não divulgava tudo, mas por uma razão que era diferente da do director: não estava interessado em criar conflitos institucionais, que inevitavelmente acarretam custos bastante onerosos para todos. Aquilo que divulgava em reuniões nada tinha de confidencial. A lição maior que retirei foi a de que alguma da informação contida naqueles apanhados de cento e tal páginas, com vários quadros, cruzamento de dados, resultados de sondagens a centenas de alunos, etc. era preciosa. Mas em que medida era preciosa para o director? Na exacta medida em que ninguém mais conhecesse na íntegra o seu conteúdo. "Esta informação é ouro", chegou a dizer-me. E eu concluí que o controlo dessa informação era platina.
Recordo, a este propósito, a importância da confissão na Igreja católica. O padre fica na posse de informação valiosa em muitos aspectos. Pode usá-la? Não, pelo menos teoricamente. Existe a proibição de revelar os segredos da confissão. No passado, o cargo de confessor do rei, assim como o de confessor da rainha, eram deveras importantes. Pelo menos um desses confessores (Frei Miguel Contreiras) passou para a história. E cá temos o mesmo: informação e respectivo controlo.
Sem o controlo, a informação de pouco vale. Tudo aquilo que é acessível a todos tem pouco ou nenhum valor. Recordemos a história do pai que dá ao filho uma série de conselhos avisados para ele ter sucesso, incluindo alguns truques inteligentes. Depois de lhe ensinar aquilo que julga ser vital e que é fruto da sua experiência, adverte o filho: "Agora não vás contar a outros o que te disse! Se o fazes, o efeito destas técnicas que te ensinei é nulo.” Cá temos mais do mesmo: informação importante, logo seguida do seu controlo.
O post recente que intitulei "imperdível" fala-nos destas coisas. O julgamento do caso de pedofilia popularmente conhecido como "da Casa Pia", a história da forma como a licenciatura de Sócrates terá sido obtida, o aparente conluio, há uns anos, entre o Ministério do Ambiente, o Banco Espírito Santo e o CDS para a obtenção de favores especiais, a que se junta a informação que veio a lume de Rui Pereira e Abel Pinheiro (CDS) serem membros do mesmo grupo maçónico, mais a pretendida demissão de Souto Moura e a alegada intervenção de Sócrates - tudo nos traz informação de valor, que a lei recentemente revista tenta controlar. Os homens de confiança de uns são cada vez mais os homens de desconfiança dos demais. É aqui que a democracia exige transparência de processos, dirá o naïf. Então e a segurança, a necessidade de manter as coisas secretas, porque o segredo é a alma do negócio?, dirá o político experiente.
Ora, é aqui que entram os checks e os counterchecks característicos de um bom sistema democrático. Ter uma pessoa a verificar uma coisa não chega. É necessário que haja alguém independente a checar a forma como a verificação foi feita. É neste domínio que uma imprensa livre e com capacidade de investigação é essencial. É também por isso que manter-lhe a boca tapada pode ser muito conveniente.
Dizia Bertrand Russell já não sei onde que o famoso oráculo de Delfos que nós tínhamos aprendido no liceu como sendo o grande conselheiro do governo de Atenas era, afinal, manipulado pelos lobbies. Tudo bate certo. Convém não abrir a caixa de Pandora para que os segredos não voem com o vento. Entende-se melhor assim. A partir de agora, graças às novas disposições legais, não vamos ter mais reprodução de conversas telefónicas nos jornais como até aqui. Everything is under control. O ouro e a platina. Tudo me lembra uma ilustração clássica que mostra um indivíduo a dizer para outro, que está amordaçado: "És livre de dizer aquilo que quiseres. Fala!"

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