11/28/2008

Um ligeiro intermezzo

Deixemos em paz os temas mais sérios da actualidade política e lancemos um rápido olhar a algumas palavras da língua que usamos diariamente (e que em grande medida nos baliza o pensamento).
Olho para o título de uma notícia do jornal que diz: "A noite será a grande amiga dos carros eléctricos." Páro. Leio de novo. Fico com curiosidade. Porque será que os carros eléctricos não são bem-vindos de dia? Porque empatam o trânsito? A notícia, remetida para a página 16, esclarece-me, entretanto. Mostra-me que estou a patinar num mal-entendido. Não se trata dos amarelos da Carris. O que está em questão são os automóveis movidos a electricidade. Eles devem ficar a carregar durante a noite para serem utilizados de dia. À noite, a energia é mais barata, o que também incentiva o uso de fontes de energia renováveis. São carros amigos da noite.
Cingindo-me apenas à terminologia, acho que, para evitar problemas e enquanto houver eléctricos em Lisboa, vou continuar a utilizar para estes novos automóveis o nome que sempre lhes dei: Voltswagen.
Quando falamos de substantivos femininos e masculinos, sabemos todos que existem diferenças interessantes, como por exemplo entre um rio e uma ria. Enquanto o primeiro nos dá uma ideia de caudal que flui continuamente e até, por vezes, de águas rápidas e alterosas, a ria é mais acolhedora e pacífica. Maternal. À semelhança do homem e da mulher?
Também entre o moral e a moral existe uma diferença notória. Enquanto o primeiro termo se refere basicamente a ânimo ("levantar o moral das tropas"), a segunda palavra transporta-nos mais a um conjunto de regras que se opõem ao conceito de pecado ou infracção e são parentes da ética.
Então e a vogal e o vogal? Sabemos que as vogais são o recheio das consoantes, as quais por sua vez constituem a ossatura das palavras. As vogais são a carne, a sonoridade – mais abertas ou mais soturnas, mais claras, mais escuras ou mais finas e sibilinas. Então, e o vogal? Bem, um vogal é um membro com direito a voto numa assembleia ou num júri. Vogal de exames, por exemplo. E porquê "vogal"? Exactamente porque tem voz, i.e. voto. O étimo é "vocal".
Há diferença entre uma secretária e um secretário? Certamente que sim. Como pessoas, uma é mulher, o outro é homem. Como peça de mobiliário, só se utiliza a primeira. E porquê "secretária" ou "secretário"? Porque se trata de alguém em quem se pode confiar, que guarda segredo das coisas que são confidenciais. Num verso que cito de cor, Camões dizia para a sua pena, à qual confiava o seu sentir: "Vinde cá, meu fiel secretário..." E Bocage tem um soneto cuja primeira quadra reza assim: "Oh retrato da morte, oh Noite amiga / Por cuja escuridão suspiro há tanto! / Calada testemunha do meu pranto,/ De meus desgostos secretária antiga!” Já agora: a secretária-móvel guarda também segredos nas suas gavetas e por vezes tem uma parte secreta - "o segredo" - que em princípio só o seu proprietário conhece.
É curioso que as palavras por vezes camuflem bem, tal como as secretárias, aquilo que são. Qual será o verbo que significa algo como "tirar até à última gota"? Todos o conhecemos. Esse verbo é "esgotar". No entanto não é fácil descobrir a "gota" que lá está. (No fundo, é o mesmo que descobrir "a cabeça" e "o rabo" em "capicua".)
Termino esta superficialíssima digressão com o "fado". Estava eu um dia a ler um livro interessante sobre Portugal, escrito por um americano que tinha comprado uma casa junto a Sintra e aqui vivia há cerca de um ano. O indivíduo tinha ficado encantado com os nossos moinhos e faz deles descrições soberbas. Quando chegou à "canção nacional", porém, escorregou um bocado. Decerto por conhecimento ainda imperfeito da língua portuguesa e da pronúncia de alguém que lhe disse que fado em inglês era faith (na realidade é fate) divagou sobre o dito como estando altamente ligado à fé dos portugueses. Foi um pequeno percalço, mas que linguisticamente é interessante por oferecer um par habitual, tal como o c-g de vocal e vogal que acima vimos. Neste caso é o d-t. Fado vem de fatu-, que significa "destino" e que nos faz dizer, entre muitas outras coisas, que algo "é fatal como o destino". Fatalmente assim, no nosso característico fatalismo. Então, e como se chama "a deusa do destino"? "A fada", claro.
E por aqui ficamos hoje.

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