11/23/2008

Uma onda irrepetível

O que terão de comum entre si estes 43 nomes, aqui listados por ordem alfabética – aos quais, aliás, muitos outros se poderiam acrescentar com a mesma característica comum?

Alexandre Quintanilha (Biólogo, investigador, director do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.)
Amadeu José de Freitas (Locutor desportivo)
António Calvário (Cançonetista)
Barata Feyo (Escultor, professor, director de museu)
Carlos Cruz (Locutor de rádio e de televisão; empresário)
Carlos Pinto Coelho (Jornalista, director de programas culturais na rádio e televisão)
Carlos Queiroz (Treinador de futebol)
David Borges (Jornalista)
Diana Andringa (Jornalista)
Emídio Rangel (Director de estações de rádio e televisão)
Eugénio Lisboa (Conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Londres, Professor universitário, ensaísta, crítico literário.)
Eusébio (Futebolista)
Fausto (Compositor e cantor)
Fernando Dacosta (Escritor, jornalista)
Fernando Gil (Professor, pensador, autor)
Fernando Nobre (Médico, Presidente da AMI)
Guilherme de Melo (Jornalista, escritor)
Gustavo Castelo Branco (Engenheiro, físico e investigador)
Helder Macedo (Professor Catedrático no King’s College, de Londres)
Hermínio Martins (Sociólogo-economista, Professor em Oxford, autor)
João Maria Tudela (Cançonetista, animador cultural)
João Pina Cabral (Antropólogo social, Professor, autor)
Jorge Perestrelo (Relator desportivo)
José Afonso (Cantor de intervenção e compositor; professor)
José Eduardo Agualusa (Escritor, articulista)
José Fonseca e Costa (Realizador de cinema)
José Gil (Professor da UNL e do Collège Int. de Philosophie, de Paris, ensaísta, pensador.)
José Rodrigues dos Santos (Locutor de televisão, Escritor; Professor)
Maria João Seixas (Autora de programas culturais TV, entrevistadora nos media)
Mário Crespo (Locutor de TV)
Mariza (Fadista)
Mia Couto (Escritor, biólogo)
Nicolau Santos (Jornalista)
Paula Teixeira da Cruz (Advogada, política)
Rui Cartaxana (Director do jornal Record)
Rui Knopfli (Jornalista, crítico de literatura e cinema, poeta, adido cultural em Londres)
Rui Nogueira (Escritor, articulista)
Rui Romano (Jornalista RTP)
Ruy Cinatti (Agrónomo, antropólogo, escritor)
Segadães Tavares (Engenheiro)
Sequeira Costa (Pianista)
Vítor Gomes (Músico, Os Gatos Negros)
Vítor Ramalho (Advogado, político)

Embora alguns dos eventuais leitores deste blog conheçam na lista acima alguns nomes melhor do que outros, notarão decerto que há entre eles muitas figuras conhecidas. E não só conhecidas como de muito mérito, dotadas de um espírito de iniciativa que as fez, em certa medida, subir para a ribalta. A esmagadora maioria destas pessoas vive ainda entre nós. Infelizmente, Amadeu José de Freitas, Fernando Gil, Jorge Perestrelo, José Afonso, Rui Knopfli, Rui Romano e Ruy Cinatti já faleceram.
No domínio profissional, embora do grupo acima sobressaiam em termos percentuais os homens e as mulheres dos meios de comunicação social, existe uma notável variedade: cientistas como Alexandre Quintanilha, engenheiros premiados como Gustavo Castelo Branco e Segadães Tavares, escritores como Mia Couto, Agualusa, José Rodrigues dos Santos e Fernando Dacosta, poetas como Rui Knopfli e Ruy Cinatti, um pianista (Sequeira Costa), advogados e políticos como Paula Teixeira da Cruz e Vítor Ramalho, cantores e compositores como Fausto e José Afonso, intérpretes de canções como Mariza, António Calvário e João Maria Tudela, um escultor (Barata Feyo), professores e brilhantes pensadores como os irmãos Gil - José e Fernando -, e Hélder Macedo, diplomatas e escritores como Eugénio Lisboa, sociólogos e antropólogos como Hermínio Martins, João Pina Cabral e Ruy Cinatti, um médico que é Presidente e criador da AMI (Fernando Nobre), um treinador de futebol (Carlos Queiroz) e um ex-jogador que se tornou há muito símbolo do futebol português (Eusébio).
Mas não há dúvida de que o grande peso que ressalta desta lista provém de profissionais ligados ao jornalismo e aos media, v.g. Rui Cartaxana, director do jornal Record, Nicolau Santos director de uma secção do Expresso e colaborador da SIC, além de locutores, comentadores e animadores culturais da televisão e da rádio, como José Rodrigues dos Santos, Mário Crespo, Carlos Cruz, Carlos Pinto Coelho, David Borges, Diana Andringa, o saudoso Jorge Perestrelo do “ripa na rapaqueca!”, Maria João Seixas, Guilherme de Melo e os acima mencionados Rui Romano e Amadeu José de Freitas.
Por esta altura creio que já todos entenderam que estou a referir-me a pessoas que ou nasceram nas antigas colónias portuguesas - mais especificamente em Angola ou Moçambique, mas também noutras paragens - ou foram de tal forma docemente picados pelo bom insecto africano - também os há ferozes! - que nunca mais esqueceram o seu passado cultural e foram por ele indelevelmente marcados. São pessoas que se salientaram na sociedade portuguesa - ou na de noutros países do mundo - através do seu dinamismo, capacidade de trabalho e ânsia de inovação.
Há cerca de 50 anos, a emigração de mais de milhão e meio de portugueses para a Europa e para África foi muito positiva para o país. Redundou numa não-propositada democratização, i.e. o contrário daquilo que a censura impunha. A sociedade fechada e policial que tínhamos passou gradualmente a abrir-se, como que por inerência. A televisão contribuiu para essa abertura. Por seu lado, a vinda para a metrópole - devido à guerra que deflagrou nas colónias em 1961 - de numerosos portugueses que nasceram ou fizeram parte da sua vida em terras de África e da Ásia foi igualmente muito enriquecedora para o Portugal europeu. Muitos dos que regressaram das colónias mostraram ser não só pessoas dotadas de uma notável capacidade de iniciativa como também de uma mente aberta a outros horizontes, o que lhes permitiu trazer um saudável apport em vários domínios ao país onde passaram a viver. A África colonial portuguesa, apesar da omnipresente P.I.D.E., era um espaço muito diferente do território metropolitano. Vivia-se mais, os horizontes eram mais vastos para um grande número de famílias brancas. Existia uma mentalidade assaz diferente daquela estreiteza que se pressentia, e sentia, no território da Europa. Lá não se encontrava a mesma mesquinhez e desconfiança que predominava na metrópole. Havia uma amizade mais forte entre as pessoas, uma maior solidariedade. Era uma sociedade com outros horizontes. Nas colónias, a Igreja não conseguia ser tão dominadora e abafante como no Portugal ibérico. Aliás, também as forças armadas aprenderam a democratizar-se na guerra colonial. Por este conjunto de razões, houve muitos brancos que, ou por terem nascido nas colónias ou por nelas terem vivido o tempo suficiente para se poderem considerar saudavelmente "africanizados", sentiram um enorme choque quando vieram para a metrópole. Em certa medida, revoltaram-se. A sua revolta, que também fazia parte da sua sobrevivência, ajudou o país.
Foi assim relativamente natural - embora não seja geralmente reconhecido como tal - que muitas dessas pessoas tivessem singrado na sociedade que os acolheu e nela se tivessem posteriormente destacado. Por natureza produtos híbridos de dois (ou mais) meios distintos, foram primordialmente aqueles que eram possuidores de uma boa educação académica os que sobressaíram. O aroma africano (ou asiático) entrechocava-se com o europeu e produzia frequentemente uma mescla especial. Daí - e certamente de outros factores como os atrás mencionados - nasceu uma irreverência a que nem Lisboa nem o Porto estavam habituados e que deu um impulso significativo ao Portugal do terceiro quartel do século passado. Daqui nascem alguns dos nomes da listagem acima.
Dando o meu testemunho pessoal, reconheço que houve vários países que tive a oportunidade de visitar que me influenciaram poderosamente. Porém, nenhum me influenciou tanto como Angola, onde encontrei a virgindade de terras e de pessoas que ambicionava conhecer. Ainda hoje na minha forma de pensar e agir acho frequentemente traços distintos que me remetem para a minha permanência de cerca de dois anos e meio em terras de Angola. Embora conceda que também viagens, relativamente curtas mas produtivas, a países como o México, a Rússia, os Estados Unidos, a Turquia, o Brasil e a Índia contribuíram para que o meu pensamento saísse da esfera fechada do território onde nasci, a verdade é que a magia de África não mais saiu de dentro de mim.
Ora, se eu próprio sinto esta cultura diferente, como não haveriam de reagir aqueles que nasceram noutra sociedade e que, possuidores de notáveis capacidades potenciais, só precisavam de campo fértil para desabrochar? Daqui nasceu uma plêiade de pessoas a quem presto naturalmente a minha homenagem. É, infelizmente, um núcleo ao qual se tem dedicado pouca atenção no seu conjunto, ainda que individualmente muitas dessas pessoas sejam sobejamente notadas.
E o número é muitíssimo maior do que o dos nomes listados. À guisa de exemplo, note-se que neste mesmo blogue participam com alguma regularidade pessoas como o António (advogado), a Isabel (engenheira civil) e a Elisa (professora de Filosofia). O que têm eles em comum? Todos nasceram em Angola ou lá viveram durante vários anos que foram significativos nas suas vidas. E todos denotam uma curiosidade permanente, um alerta para a cultura e um salutar desassossego que me sabe bem destacar.
Nunca ouvi ninguém dizer que esta é uma onda absolutamente irrepetível, mas certamente que o é. Onde poderão repetir-se, por exemplo, os cinco magníficos do Liceu Nacional de Lourenço Marques, Eugénio Lisboa, Hélder Macedo, Hermínio Martins, Fernando Gil e o seu irmão José Gil? Todos eles são figuras intelectuais que fizeram grande parte da sua vida em reputadas universidades de Inglaterra e França.
Em campo menos intelectual, se nos virarmos para o domínio desportivo, talvez alguém ainda se lembre de quatro sensacionais jogadores de hóquei em patins que nos chegaram de Lourenço Marques e quase faziam só por si o cinco nacional que foi campeão do mundo: Moreira, Vaz Guedes, Fernando Adrião, Velasco e Bouçós. Só Vaz Guedes não era de Moçambique!
Sinto que é bom reconhecer que a transculturalidade tem grandes vantagens, nomeadamente quando é acompanhada por uma sólida educação de base. Quebram-se eventuais amarras, voa-se mais alto, existe uma vontade de agitar o mundo, num inconformismo que surge implícito. Se é pena que esta onda não se possa repetir, há que pensar na enorme vantagem que o sair de fronteiras representa - fronteiras tanto no domínio físico como no da educação. É este o bom caminho que se nos oferece, mas continuará a ser muito gratificante pensar em todos os acima mencionados - e não só -, que contribuíram ou ainda contribuem, através do produto do entrechoque cultural que nos legam, para criar um país mais rico e uma sociedade mais interessante.


P.S.1. Não me foi exactamente fácil descobrir que todos estes nomes estavam ligados às antigas colónias portuguesas. Como digo atrás, muitos outros podem ser acrescentados dentro dos parâmetros da transculturalidade. Fico agradecido se alguns dos leitores me fornecerem outros nomes.

P.S.2. Este tema está inserido no contexto de um trabalho mais abrangente que ainda não dei por terminado. Gostaria, entretanto, de acrescentar alguns pontos e levantar questões que me parecem relevantes.
Será que alguém que viva sempre no mesmo local e ambiente tem as mesmas possibilidades de desenvolvimento intelectual de uma outra pessoa que conheça vários países e culturas in loco?
Será que um engenheiro que enverede a certa altura pelo mundo das letras, um médico que se apaixone pelo domínio da arte ou um agrónomo pelo campo da antropologia adquirem outra dimensão na sua vida?
Será que alguém com estudos que mude efectivamente de carreira a meio da sua vida produz em si próprio um renascimento ou uma redescoberta? E a isso, que não implica necessariamente mudança de espaço físico, poderemos também chamar transculturalidade?
Será que o dominar idiomas diferentes da língua materna representa em certa medida alguma transculturalidade?
Creio que estas perguntas têm toda a razão de ser. Olhemos para o caso de Ruy Cinatti por exemplo. Dele se poderá dizer que foi agrónomo, antropólogo e poeta. Com o seu curso de agronomia tirado em Lisboa no ISA, a certa altura da sua vida rumou a Timor. Esteve também em S. Tomé. A transcultura fez o resto. Descobriu o que não conhecia. A curiosidade que existe em todos os talentos e que cria a ânsia de saber e de experimentar, impôs-se. A antropologia tomou conta dele, tal como a poesia.
Hoje conhecemos Eugénio Lisboa como professor universitário, ensaísta e crítico literário. Contudo, estamos em presença de uma pessoa que tirou o curso de Engenharia Electrotécnica no IST e que trabalhou em França no ramo petrolífero durante 20 anos. Depois esteve 17 anos como conselheiro cultural da Embaixada portuguesa em Londres e leccionou em várias partes do mundo.
Tomemos o caso do conhecido locutor José Rodrigues dos Santos. Nasceu em Moçambique em pleno período da guerra colonial (1964). Aos 17 anos estava em Macau e enveredava pelo jornalismo (na Rádio Macau). Em Lisboa, cursou depois Comunicação Social na UNL e fez um estágio em Londres, na BBC. Esta acabou por contratá-lo por um período de três anos. Regressado a Portugal ganhou notoriedade na televisão aquando da Guerra do Golfo, em 1991. Passou a ser colaborador permanente da CNN. Após doutorar-se em Ciências da Comunicação, manteve o seu posto na RTP, mas começou igualmente a leccionar. Ultimamente, amadureceu o suficiente para escrever romances que mereceram a atenção do público - um deles vai ser objecto de filme em Hollywood. Temos aqui um caso típico de pessoa que tem conhecimento real e relativamente profundo de várias culturas - de Moçambique, Macau, Londres e Portugal. Deveremos falar dele como locutor de televisão, como professor, ou como romancista? Ou juntar tudo? Transcultura?
Cada vez noto mais que, nos bons cérebros, letras e ciências se unem, em suporte mútuo. O criativo atinge mais facilmente a saturação e consequente rotina de um determinado tema e carece de renovar-se, de criar uma nova paixão. Sempre com a liberdade como substrato. Existe nele uma inquietação permanente. É mais gratificante ser original uma vez do que copiador e imitador cem vezes. Encare-se nesta perspectiva a obsessão criativa e desdobrante de Fernando Pessoa, ele próprio um produto de África na sua formação de base durante a juventude, fluente em duas línguas estrangeiras, e convivente no Portugal europeu com uma cultura diversa e com aquilo que lhe chegava de França, país que nunca visitou.
Descubra-se algo semelhante em Almada Negreiros, um são-tomense tanto pelo solo onde nasceu como pelo lado da sua mãe. Almada, artista irreverente e polifacetado, a desdobrar-se pela pintura, pela poesia, pelo ensaio, pela tapeçaria, pela caricatura, pelo vitral: "poeta d’Orpheu, futurista e tudo".
Disse Kant: "Quanto mais fizeres, quanto mais pensares, tanto mais viverás".

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