Há coisas que não esquecem. Entre as muitas que só desaparecerão da minha memória quando a minha própria memória um dia desaparecer conta-se uma série de longas conversas que, no início da década de 70, mantive num hospital de Moscovo com um sociólogo de trinta e poucos anos que lá se encontrava internado. Ele era de Tashkent, no Uzbequistão. A certa altura falou-me de um grande tremor de terra que tinha recentemente abalado a sua cidade e causado centenas de mortos. "Doeu-me imenso ver tantos funerais na minha cidade, mas o mais revoltante de tudo foi verificar que, oficialmente, tinham morrido apenas 7 (sete) pessoas. Dado que a União Soviética deveria, se o número de mortos fosse maior, autorizar a entrada em Tashkent de equipas da Cruz Vermelha Internacional, para eles indesejáveis, reduziu-se tudo a sete mortos e a um número indeterminado de feridos. Ter que viver com a mentira oficial foi terrível. Se era assim que deturpavam uma verdade que convivia ali mesmo connosco, como poderiam querer que acreditássemos e confiássemos nas notícias que diariamente nos chegavam de Moscovo sobre outros assuntos?"
Ocorre-me este episódio quando oiço o governo menorizar propositadamente o que se está a passar em muitas escolas públicas de ensino não-superior. Existe um descontentamento profundo que se traduz em comentários sentidos como os que este próprio blogue registou há dias (e que está disponível perto daqui, apenas umas tantas linhas mais abaixo). Por que razão há tantos docentes (e outros funcionários dependentes do Ministério) a pedirem a reforma? Em 2008 totalizam 7471, o que representa um aumento de 43,5 por cento (!) relativamente a 2007 e de 12,5 por cento face a 2006. O que levará tantos docentes com vinte e muitos anos de ensino, ou mesmo trinta, a revoltar-se contra uma situação que nunca até agora encontraram nas suas escolas? Tal como sucedeu o ano passado, está em curso uma avaliação por demais burocratizada e frequentemente conduzida por professores recentemente promovidos a titulares nos quais os colegas nem sempre reconhecem competência para implementar a referida avaliação. Entre outros casos que são do meu conhecimento, o jornal Público informa-nos que uma professora com 34 anos e nove meses de serviço se vai reformar antecipadamente - com isso sendo obviamente penalizada na sua futura pensão. Como diz essa professora, cujo nome vem publicado, "Não tenho medo de falar. Já meti os papéis para me ir embora: não quero avaliar nenhum professor porque isto é uma fantochada."
A manifestação de hoje em Lisboa trouxe à rua muitos docentes que sentiram necessidade de protestar veementemente. Que a manifestação foi organizada por um sindicato com alguns dirigentes comunistas é um facto. Que o Mário Nogueira seja, ao que consta, o inimigo mais detestado por Sócrates, também aceito. Que isto proporciona aproveitamento político aos partidos da oposição é igualmente verdade. Mas paremos para pensar no essencial: quem é que consegue fazer movimentar tantos professores de todo o país, se não existir um substrato de razões objectivas que provoca todo este desvio do statu quo que se desejaria normal em muitos estabelecimentos de ensino?
No pasa nada?
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