10/26/2008

Democraticidade e tirania onomástica

Desculpe-se-me um título destes para um assunto tão simples e corriqueiro. O tema, trivial mas eventualmente útil, nada tem a ver com a sumptuosidade em epígrafe mas tem alguma relação com o seu significado. Basicamente o que pretendo perguntar é: quem tem um filho, deve dar-lhe apenas um nome próprio ou escolher dois?
Durante a minha vida profissional fui obrigado a ler muitos milhares de nomes e a decorar uma boa porção deles. Alguns eram tão neutros que não causavam o mínimo comentário, como foi o caso de Carlos Vieira da Silva ou Maria Teresa Brito Sousa. Outros, porém, obrigavam a fazer uma pausa na leitura e a usar uma língua mais ou menos desentaramelada: Ambrósio, Asdrúbal, Austregésilo, Leovegildo, Adalberta, Aldegundes, Felismina, Felizarda. Pessoalmente, sempre achei que um nome apenas estaria bem, i.e., João, Leonor, Vasco, Nuno, Sílvia. Porém, com o avançar da minha consciência democrática, passei claramente a preferir o conjunto de dois nomes, tanto para rapaz como para rapariga. Explico porquê.
Geralmente a situação passa-se desta forma: os pais conversam entre si o nome a dar ao bebé, questionam alguns membros da família, eventualmente os futuros padrinhos e, já está! O que pode "já estar" é o nome de "Adalberta". Isto significa que a criancinha vai crescer, passar a rapariga, a mulher adulta e sempre, inexoravelmente, a arcar sobre os ombros com este nome que, francamente, denota pouca caridade da parte de quem o escolheu.
Ora, admitindo que a rica madrinha tivesse feito questão de que o seu próprio nome passasse para a sua afilhada, bastaria um ligeiro toque para amenizar a dor que a criança iria um dia certamente experimentar. A tirania ficaria menorizada se, por exemplo, a criança se denominasse “Adalberta Isabel”. Com este simples passe de mágica, que a madrinha católica não deixaria de aprovar pela sua devoção a Santa Isabel, a criança poderia a determinada altura escolher ser “Isabel” em vez de Adalberta. O seu primeiro nome ficaria apenas para o registo escrito, mas socialmente a pessoa em questão cresceria entre os seus amigos e familiares como Isabel. (Para a abastada madrinha continuaria a ser Adalberta Isabel, claro!).
Seguindo esta linha de pensamento, mesmo dois nomes pouco controversos como Vasco e Rafael poderão ser preferíveis a simplesmente Vasco, ou simplesmente Rafael. Imaginemos que o rapaz a certa altura percebe que lhe puseram o nome de Vasco por causa daquele irmão do pai que ele detesta. Se lhe tivessem chamado Vasco Rafael, ele passaria a escolher Rafael e assim cortaria com qualquer ligação mental ao seu pouco-amado tio. Com raparigas, Ana Paula permite o uso de “Ana”, de “Paula” ou de “Ana Paula”. Três hipóteses, de entre as quais a portadora do nome pode um dia escolher a que mais lhe agrada. Com um nome só, não tem escolha! É daí que advém a citada tirania.
O mais curioso é que já tenho notado que, em certos casos, mesmo para os pais um nome simples não chega. Carece de uma bengala, especialmente quando esses pais estão menos contentes com o rapaz ou rapariga em questão. Ainda há dias ouvi uma mãe dizer para a sua pequena filha, em tom de ralhete, "I-nês Ma-ri-a, não mexas aí!" Questionei a mãe: "Ela é Inês Maria!? Não sabia!" A resposta não se fez esperar: “Na realidade, ela é só Inês, mas preciso de mais qualquer coisa quando quero repreendê-la!" Este era um dado que não me ocorria, confesso. Mas contra factos não há argumentos.

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