10/11/2008

Seis personagens à procura de algo em comum

Tomemos seis figuras portuguesas: o Marquês de Pombal, Humberto Delgado, Álvaro Cunhal, Mário Soares, Freitas do Amaral e Cavaco Silva. Que têm elas em comum? Coloquei informalmente a pergunta a quatro ou cinco amigos que me responderam que todos eles eram pessoas conhecidas, mais ou menos ligadas ao poder e à política. Acrescentaram que os três primeiros já tinham morrido e os restantes continuavam vivos. Admito que não era esse o tipo de resposta que eu pretendia, mas não é improvável que eu próprio, se fosse apanhado desprevenido, respondesse da mesmíssima forma.
A resposta que eu gostava que me tivesse sido dada tinha a ver com o facto de cada um deles ter tido contactos, de forma mais ou menos relevante, com outras sociedades e outras culturas. Explicando-me melhor: sinto que o país onde nasci possuiu, e possui ainda até certo ponto, uma corrente conservadora que favorece o monolitismo e olha com reservas determinados contactos com o estrangeiro. A conotação negativa ainda hoje dada aos "estrangeirados" portugueses, pessoas como Luís da Cunha, Ribeiro Sanches, Verney e o Abade Correia da Serra, expressa bem a preferência pelos grandes "patriotas" nacionais, que muitas das vezes não saíram sequer as fronteiras do país.
Foi o Padre António Vieira, conhecido jesuíta e diplomata do século XVII, homem viajado e com múltiplos contactos ao longo da sua vida, que escreveu no seu Sermão de Santo António: "Sem sair (de Portugal) ninguém pode ser grande." Curiosamente, o que tem sido divulgado desta passagem do sermão de Vieira é apenas aquilo que vem a seguir ao pensamento acima citado: "Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal; para morrer, o mundo." Assim se gaba a universalidade dos portugueses que criaram um império nas várias partes do planeta, mas simultaneamente se escamoteia o outro princípio básico do pensamento de Vieira: "Sem sair (de Portugal) ninguém pode ser grande." (Certeiramente, José Cutileiro disse num artigo seu a propósito daqueles que se orgulham dos grandes feitos dos nossos antepassados mas que hoje se quedam mais em admiração do que em acção: "Os portugueses de hoje não são descendentes dos que foram à Índia; são descendentes do que cá ficaram.")
De facto, sem sairmos das nossas fronteiras talvez não possamos, como Vieira disse, ser verdadeiramente grandes. Comparar uma parte do país com outra, v.g. o Algarve com o Minho, pouco resulta e é quase como olhar unicamente para o umbigo. E o curioso é que a maioria das pessoas que verdadeiramente se distinguiram na vida portuguesa e alcançaram um nível que vai para além dos limites territoriais da nação são aquelas que, por uma razão ou outra, não se confinaram às fronteiras portuguesas. Condição de preferência: que já possuíssem uma boa base educacional. (Sem esta, tomar contacto com o estrangeiro ajuda, mas muito menos.) Não é verdade que foi em Inglaterra que Eça de Queiroz escreveu a maior parte da sua obra? Não é um facto que a estadia de Almeida Garrett na mesma Inglaterra foi decisiva para a formação do seu pensamento, quer do ponto de vista romântico, quer de consolidação das suas ideias liberais?
Ora, no mesmo saco cabem as seis figuras acima. Demos uma vista de olhos a cada um deles. Talvez encontremos algumas coisas interessantes, a juntar às que já conhecemos.
Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, ganhou muitas das suas ideias algo revolucionárias para a sociedade portuguesa antes de servir o rei D. José. Foi na Inglaterra protestante, onde viveu vários anos como embaixador, que o Marquês compreendeu aquilo que é um lugar comum dizer-se: a Reforma religiosa do século XVI, pelos novos princípios que criou nos países que a adoptaram, foi o movimento mais importante da civilização ocidental dos últimos séculos. Esses novos princípios tinham conduzido a um maior sentido de liberdade e responsabilização do homem na sociedade (accountability), a um sadio desrespeito pelos dogmas e pelas autoridades antigas, a um independentismo criativo e a uma forte curiosidade pelo saber. Que espanto foi para Sebastião José encontrar um país assim, em que a ciência se desenvolvia, o tempo contava, as finanças privadas funcionavam e havia uma classe claramente ilustrada! Portugal, sentiu ele, precisava de uma revolução de mentalidades. Fez o seu diagnóstico ainda no estrangeiro, de onde aliás foi escrevendo cartas ao seu rei D. João V que estão hoje reunidas sob o título de Escritos Económicos de Londres e que são a mais importante contribuição de estudos económicos que Portugal recebeu nesse século.
Uma vez regressado ao país e com os grandes poderes que adquiriu depois do "divino" terramoto de 1755, ensaiou a revolução. As linhas da Baixa lisboeta testemunham o seu querer. Os relógios de caixa que encomendou para os vários ministérios também (haveriam de desaparecer, encafuados em conventos e mosteiros quando o Marquês caiu em desgraça). Contribuiu para a expulsão dos Jesuítas e reformou a Universidade de Coimbra, ensaiando parcialmente as ideias do estrangeirado Luís António Verney. Criou a Aula do Comércio para que os filhos dos seus compatriotas mercadores ficassem a saber algo mais sobre comércio internacional. E realizou várias outras coisas, desde a criação da Região Demarcada do Douro até à fundação de uma cidade geometricamente planeada ab initio, como Vila Real de Santo António, passando pelo fomento da indústria nacional.
Com toda a naturalidade, num país que já tinha, dois séculos antes, expulso os grandes criadores de fortuna - os judeus, que acabaram por ir aumentar a riqueza das nações protestantes da Inglaterra e da Holanda, as quais os acolheram de braços abertos -, o Marquês revolucionário acabou por ser apeado do seu lugar e exilado para Pombal. As suas ideias seriam reconhecidas mais tarde por intelectuais como Garrett e, já no século XX, pelos republicanos que lhe erigiram a grande estátua que coroa a avenida de Lisboa crismada com o nome mais querido dos liberais: Liberdade.
Com Humberto Delgado, que foi, aos 47 anos, o general mais novo das Forças Armadas portuguesas, passou-se algo interessante também. Homem do Colégio Militar, onde se formara, tomou parte activa na revolução do 28 de Maio de 1926, que iria desembocar no Estado Novo de Oliveira Salazar. Humberto Delgado era um conservador, ultra-apoiante do regime salazarista. De que outra forma se entenderia que tivesse promovido a general ainda tão novo?
Entretanto, no espaço temporal de 5 anos – de 1952 a 1957 – esteve nos Estados Unidos a chefiar a missão militar portuguesa em Washington. Passado esse tempo, o homem que voltou da América era outro, de espírito mais aberto, consciente do que era a democracia e do que ela representava para o progresso das nações. A transformação foi radical. Apercebendo-se disso, a oposição, que sempre acreditou que uma revolução só seria possível em Portugal através da colaboração das Forças Armadas, congregou-se à volta do General (mais tarde, seria o General Spínola, lembram-se?), propondo-o como candidato presidencial em luta contra o Almirante Américo Tomás, proposto pelo regime. Numa famosa entrevista que deu à imprensa, quando lhe perguntaram o que faria com Salazar caso fosse eleito Presidente da República, Delgado respondeu desassombradamente: “Obviamente, demito-o.” A oposição chamou-lhe “General Sem-Medo”. O regime salazarista pretendeu ridicularizá-lo apodando-o de “General Coca-Cola” (bebida então proibida em Portugal e olhada como droga poderosa do capitalismo americano: os EUA já nos perturbavam na ONU por causa dos territórios ultramarinos). Será inútil continuar com a história da fraude eleitoral que todos conhecemos, do exílio forçado de Delgado e da sua morte às mãos da PIDE, convenientemente perto mas ainda fora das fronteiras portuguesas. O que nos interessa aqui é a fulcral estadia na América do General Delgado.
Álvaro Cunhal simboliza, em certa medida, a antítese do capitalismo americano. Defendeu sempre, tenazmente, o comunismo russo. Homem de elevada estatura intelectual, licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, esteve preso várias vezes em Portugal, tendo logrado fugir rocambolescamente da prisão-fortaleza de Peniche, onde a polícia de Salazar o mantinha enclausurado. Aproveitou as suas leituras e a sua longa estadia na União Soviética e em Paris, cidade em que viveu cerca de oito anos na clandestinidade, para depois conduzir como verdadeiro líder, idolatrado, as hostes do seu partido em Portugal. Quando, após o 25 de Abril de 1974, os que o detestavam diziam, jocosamente e para o colocar em ridículo, que sempre que ele ia à casa de banho se limpava duas vezes - a cópia era para enviar para Moscovo -, estavam implicitamente a reconhecer a influência que a União Soviética tinha exercido sobre ele. Se se tivesse confinado ao território adentro das fronteiras lusas, Cunhal não teria sido o mesmo, certamente.
O grande oponente de Álvaro Cunhal, Mário Soares, escolheu parcialmente uma educação semelhante à daquele que foi seu grande rival. Como licenciado em Direito e em Ciências Histórico-Filosóficas, Mário Soares foi e continua a ser um pensador mas também um homem de acção. Feito prisioneiro pela PIDE uma dúzia de vezes, acabou por se exilar no estrangeiro - um pouco à semelhança do que tantos liberais se viram forçados a fazer para fugirem à sanha das conservadoras forças miguelistas no século XIX. Escolheu a França como país de refúgio, tendo colaborado em várias universidades. Com mais talento para a política do que para línguas, ficou famoso pelo seu "ami Miterã" e pelo seu castelhano perroqueño. Impôs-se como líder socialista, cultivando amizades um pouco por todo o lado, como foi o caso de Willy Brandt, o chanceler alemão daquele tempo. Leu muito do que era leitura absolutamente proibida pelo regime em Portugal. Cultivou-se de forma notória, embora sempre com maior propensão para as letras do que para os números. Foi várias vezes Primeiro-Ministro, tendo contribuído para a abertura de Portugal à Europa. Chefiou a República durante dez anos (1986-1996). Aí tornou-se um verdadeiro globetrotter. Ele reconhecia a vantagem de ver as coisas in loco. Ainda hoje continua activo, com uma boa visão geral. Actualizado, mantém-se o paladino da liberdade que sempre foi.
Passando ao nosso quinto personagem, Diogo Freitas do Amaral, também homem de Direito como Álvaro Cunhal e Mário Soares, foi, como este último, candidato a Presidente da República em eleições que haveria de perder por poucos votos. Haverá ainda quem o ligue à fundação de um partido da direita, o CDS. Com razão, aliás. Ele foi um dos seus fundadores. Jurista de renome, o seu pai tinha sido um claro apoiante de Salazar e deputado pelo círculo de Braga.
Freitas do Amaral sempre se mostrou um homem inteligente, seguro, bem-educado. Pelas suas qualidades de homem de saber, moderação e equilíbrio, foi em 1995 nomeado para desempenhar as funções de Presidente da Assembleia-Geral da ONU, em Nova Iorque. É bom aqui recordar o que sucedeu a Humberto Delgado com a sua estadia na América. Com Freitas do Amaral ter-se-á passado algo de semelhante. Freitas tinha, no entanto, uma bagagem intelectual francamente maior do que a do General Delgado. No grande areópago que são as Nações Unidas, teve que contactar líderes de todo o mundo, alargar em muito os seus horizontes, estabelecer novas linhas de pensamento. É neste sentido que não deve causar grande admiração que, regressado a Portugal, ele se tivesse tornado um homem politicamente diferente. Muito mais aberto do que anteriormente e sempre interessado na educação superior, modernizou a Faculdade de Direito em que leccionava. Politicamente, inclinou-se para uma luta por uma sociedade mais justa. Neste sentido, não hesitou em criticar vivamente a Administração Bush pela invasão do Iraque, para grande desespero dos apoiantes do CDS. Não esteve contra os democratas dos Estados Unidos, mas sim contra a política agressiva e violadora do direito internacional de Bush. Na mesma linha, aceitou o convite que o governo socialista de Sócrates lhe endereçou e sobraçou a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros, cargo que iria abandonar por motivos de saúde.
Mais uma vez se nota neste caso uma forte influência do estrangeiro. O professor Miller Guerra disse um dia que ninguém deve esperar que as faculdades se reformem a si próprias. De facto, as revoluções têm que vir de fora. De dentro, em sociedade encasulada, só teremos mais do mesmo. Daí que haja necessidade de uma abertura cada vez maior, de um número de coutadas progressivamente mais reduzido. Quanto mais aberta e competitiva a sociedade for, tanto melhor. Com a rule of law a imperar.
Estranhamente, poderá julgar-se, vem agora a sexta personagem: o actual Presidente da República. Perguntar-se-á: onde está a comparação, por exemplo, com o homem revolucionário e lutador que foi Mário Soares? Não há comparação, de facto, nem é isso que se pretende. Nem estão nele representadas muitas das características dos outros personagens. Os tempos são outros. Cavaco Silva será, admito, aquele que destes seis menos mostra a influência que o estrangeiro terá tido sobre si. Mesmo assim, escolhi-o para a galeria para mostrar - eu, que nem o apoiei para a Presidência - que fez muito bem em ter-se doutorado no estrangeiro. Não escolheu doutorar-se entre os seus amigos e antigos colegas. Fugiu à endogamia tão típica da sociedade portuguesa. O tempo que passou em Inglaterra foi-lhe benéfico, embora ele não seja, por feitio, uma pessoa aberta e comunicativa. Creio que o facto de ter vivido em York e de ter necessariamente contactado a sociedade inglesa, muito diferente da algarvia de Boliqueime, lhe emprestou algumas qualidades que agora sobressaem no seu mandato como Presidente. Quero, principalmente, realçar um ponto que considero bastante significativo: o seu posicionamento contra o facto de muitas empresas portuguesas tenderem a encostar-se ao Estado. Pugna por um maior empreendedorismo e por uma sociedade civil com mais espírito de independência e iniciativa. A materializar este seu desejo, sempre que vai em visita oficial ao estrangeiro leva na sua comitiva líderes de empresas como a Y-Dreams (António Câmara), para dar uma imagem da modernidade do país e da inovação empresarial. Pessoalmente, Cavaco Silva tem-me surpreendido positivamente na sua acção. Factos como o que atrás aponto são algo que associo mais à sociedade aberta portuguesa, que defendo, do que ao conservadorismo de determinados grupos que, infelizmente, ainda existem em grande número.
Muito mais haveria a dizer sobre este tópico, mas alongar-me seria pouco consentâneo com o espaço que um blog concede e com a paciência dos eventuais leitores. Deixemos a continuação para uma outra oportunidade. Espero, entretanto, ter ajudado as seis personagens acima, "políticos conhecidos", a encontrarem algo extra de comum entre si. Quot erat demonstrandum.

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