10/06/2008

A liberdade segundo Nolasco

O Nolasco, de quem uma vez vos narrei aqui um episódio que considerei algo rocambolesco, é, presentemente, o maior chato que conheço. O Asdrúbal era certamente ainda mais chato, mas, infelizmente para ele, já não é pessoa que eu possa voltar a encontrar aqui na rua. Mas quanto ao Nolasco, o melhor é fugir! A rua não é larga e, penso eu nas vezes que o vejo à distância, porque não há-de haver um terceiro passeio de um lado que não dê nas vistas? Como normalmente não uso telemóvel, a situação é embaraçosa. Nunca posso ter aquela chamadinha salvadora. Assim, só mesmo se um familiar meu aparecer na rua é que logro alcançar a salvação; mesmo assim, provisória ou apenas abreviante. Lembro-me da ocasião em que a minha mulher me encontrou, postado em frente dele com o ar mais seráfico que conseguia, e se esforçou por estender-me uma mãozinha. Ficou ela presa também, ainda que de facto não por muito tempo.
Desta vez o Nolasco deteve-me na rua, com o seu tradicional sorriso radiante de predador que encontrou a presa e, não me lembro já bem porquê, veio-me com uma história nova: tinha pertencido à PIDE. "Suponho que já lhe disse isto." Não, nunca me tinha referido o caso. E também não usou o acrónimo habitual da instituição, antes o nome completo: "Polícia Internacional de Defesa do Estado". Tacteando o caminho a princípio, aventurou-se depois mais na sua divagação, contou a vez em que, postado perante um tribunal no pós-25 de Abril, respondeu com firmeza e garantiu que nunca tinha feito mal a ninguém, ele só tinha protegido a Nação (insistiu que era com letra maiúscula) como bom português, era um administrativo, tinha lá estado "só três anos" e depois pedira a exoneração do cargo. A qual saiu oficialmente no Diário da República. "Pode imaginar o significado de sair da Polícia naquela altura!" Calculo, disse eu. "Sempre fui um amante da liberdade," prosseguiu o Nolasco. E, perante os meus insistentes protestos de que se estava a fazer tarde e eu tinha coisas para tratar - o que até era menos verdade naquela manhã de sábado - disse-me que só me queria mostrar como ele definia a liberdade. Contou-me então a história de uma vez que, junto à sua terra, nos solitários campos da Lousã, tinha ficado surpreendido com o piu-piu de um passarinho. Não parava o piu-piu da avezinha. Deparou com uma cobra que estava em plena acção de encantamento da ave. Angustiado, porque o passarito ia acabar nas goelas da bicha, o Nolasco agarrou então numa pedra "não para matar a cobra mas só para a espantar". O encantamento desapareceu, o passarito deixou finalmente o seu aflitivo piu-piu e voou para bem longe. Em liberdade total. Aí estava definida a liberdade para o Nolasco, contente com a sua acção para toda a vida.
Então, e a liberdade das pessoas? perguntei-lhe eu. "Depois de trabalhar algum tempo na António Maria Cardoso, sem gostar muito porque alguns dos meus colegas viam-me com maus olhos devido ao meu superior comportamento moral, pedi a minha transferência para Coimbra, já mais perto da Lousã." Então, e a liberdade das pessoas? insisti. Não o incomodava tratar de processos que punham indivíduos dentro por um mero delito de opinião? "Os mais ricos até gostavam muito de mim. Sabe porquê? Eu ajudava-os. Não conseguia vê-los prejudicados." Compreendi que muito provavelmente tinha havido ali mais uma fatia de rendimento a juntar-se à outra economia de estar mais próximo da terra natal. "Sempre fui um amante da liberdade, mas a Nação estava à frente." Mesmo se a nação fosse definida de uma certa maneira e não abrangesse todos os cidadãos? "A Nação é sempre a Nação", atirou-me ele. E, de rajada, após uma brevíssima busca das palavras certas entretanto já um pouco esquecidas, jogou-me à cara a habitual definição de nação tal como era feita pelo regime salazarista.
"Tenho muito orgulho em ter pertencido à Polícia Internacional, sabe? E porque não havia de ter? Agora não continua a haver a Interpol?" Claro que sim, respondi-lhe. Retirei com cuidado a mão com que ele estava a agarrar-me o braço na sua veemente ânsia de contar a sua história. Numa próxima vez a gente conversa mais um bocado, disse-lhe. O Nolasco sorriu. Tenho a certeza de que não me vai perdoar a próxima!

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