12/21/2008

Hemodiálise urbana

A escalada da idade faz muitas vezes as pessoas alterarem o seu modo de olhar as coisas. Não necessariamente para melhor, diga-se, até porque os olhos ficam geralmente mais fracos e o número de circuitos cerebrais tende a diminuir.
Desde miúdo que adoro andar a pé por várias partes da cidade onde vivi a esmagadora maioria dos anos da minha vida. A pé vê-se muito mais do que de qualquer outra forma. Deparamos com figuras e falas de pessoas que nos fazem cogitar e nos desviam a atenção de um eventual cansaço das pernas. A pé, vê-se a cidade viva, vizinhas a tagarelarem à janela ou à porta de casa, a mulher que protesta contra os malvados pombos que lhe sujaram a roupa estendida, o homem que lava o seu carrito para entreter o tempo, o outro que se mete na viatura sem sair do local habitual de estacionamento apenas para pôr o motor a trabalhar não vá a bateria ir-se abaixo, um terceiro que fica, igualmente com o carro parado, sentado ao volante lendo um jornal gratuito que apanhou algures. E, depois, há as vielas estreitinhas que são as grandes amigas dos ébrios pelo apoio que lhes dão com as suas paredes, a cãzoada que às vezes arma uma zaragata tremenda, o eléctrico que nos passa a rasar o corpo, os pingos do aparelhos de ar condicionado ou as gotas de água das floreiras recentemente regadas que nos caem na cabeça ou na roupa. Há de tudo, uma cidade viva, com pedintes e casacos de pele, viaturas topo de gama a circular e chaços que já deviam há muito estar na sucata e continuam a ocupar espaço nas ruas.
Esta tem sido a minha cidade desde sempre. Mas, entretanto, algo mudou muito para mim. A Baixa costumava ser noutros tempos o meu ponto de encontro com amigos, com quem dava dois dedos de conversa ou estabelecia uma bela cavaqueira que poderia durar até às tantas. Ríamos, discutíamos, voltávamos a rir, terminávamos com óptima disposição. Jogar uma bilharada era perfeitamente normal para desopilar. Aparecia entretanto mais um amigo que se juntava ao grupo. Era completamente impossível ir até à Baixa sem encontrar alguém conhecido, até porque sabíamos o local de pouso habitual de muitos de nós.
Posteriormente, com o correr do tempo e as horas de trabalho a ocuparem-nos muito do nosso antigo lazer, com a constituição da família e a atenção que é necessário e um prazer dar-lhe, a separação começou a ocorrer. De forma gradual, mas contínua. Ocupações variadas dos membros do nosso vasto grupo, deslocações de alguns para fora de Lisboa, de outros para fora do país e ainda, com o andar dos anos, do falecimento de outros fizeram com que a cidade surgisse completamente diferente a meus olhos, apesar de ter as mesmas colinas e o seu amigo e esplendoroso Tejo a embelezá-la.
Hoje em dia, o que mais me surpreende e impressiona é o facto de, logo depois de sair do bairro onde moro, no qual naturalmente conheço muita gente, poder ir de metro ou outro transporte público até qualquer ponto da cidade na quase-certeza de que não verei nem serei visto por ninguém que eu verdadeiramente conheça. Só ocasionalmente depararei com um antigo colega num centro comercial, um antigo aluno que me vem cumprimentar, um amigo de sempre que calhou estar naquele sítio àquela hora. São centenas ou milhares as pessoas por quem passo. Sinto-me, desse ponto de vista, como se estivesse no estrangeiro, em Londres, Berlim ou Viena. É verdade que os amigos ainda vivos-e-em-boa-forma estão apenas a um toque de telefone, são encontráveis numa reunião, numa festa e, hélas!, num funeral. Mas já não andam por aí. No seu todo, parece-me que a cidade sofreu uma mudança quase total do sangue que circula nas suas artérias. Apetece-me dizer que se trata de uma hemodiálise urbana.
Ora, esta ocorreu de certo, como aliás sempre ocorre em todo o lado. É o renovar das gerações. Em Lisboa, com a entrada de muitos imigrantes que antigamente não eram habituais, a mudança da população é possivelmente ainda mais nítida do que nalgumas outras cidades. Porém, não é essa a diferença que me impressiona mas sim o vazio que acima mencionei.
Dir-me-ão, e eu não deixo de parcialmente concordar, que isto nada tem de especial. Qualquer pessoa com algumas luzes de estatística dirá que a teoria das probabilidades explica isso tudo muito bem. Assim como me dirá que, no meu caso pessoal, encontrar pessoas conhecidas em livrarias ou em determinados espectáculos é bem mais provável do que na rua. Do que não restam dúvidas é de que a diferença é muito notória. A sensação acaba por não ser necessariamente desagradável, mas é certamente estranha.
Entretanto, nunca recebi tanta correspondência de amigos e simples conhecidos pelos meios tecnológicos habituais como agora. Sinal dos tempos.

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