12/03/2003

Eufemismos e estrangeirismos

O termo “eufemismo” sempre se empregou no sentido de palavra ou expressão simpática e educada que usamos quando nos referimos a algo que outras pessoas possam considerar desagradável ou constrangedor. Esta definição é um pouco redutora, porém. Ao pudor de designarmos roupas ou temas relacionados com determinadas partes do corpo, a uma certa vergonha da revelação de lucro que pode significar exploração de pessoas e alguma desonestidade, junta-se, mais acentuadamente nos últimos tempos, a necessidade de prover uma imagem de novidade ou de algo que acentue a diferença relativamente a outrem. Para expressar estas noções, que já são apanágio de uma sociedade mais aberta mas longe de ser transparente, recorre-se facilmente a palavras não nacionais, o que se costuma apodar de estrangeirismos. Com a sociedade global que os meios de comunicação social tanto apregoam, existe a preocupação de diluir o conceito de nação em espaços mais amplos, permitindo que a introdução de novos vocábulos provenientes de línguas dominantes passe a ser considerada natural e lógica. É nessa linha que procurarei fornecer exemplos provando que alguns estrangeirismos mais não são do que palavras englobáveis na categoria de eufemismos modernos..

Creio que muitas pessoas que fizeram os seus estudos secundários ouviram narrar o seu primeiro exemplo de eufemismo através da história dos nossos navegadores pioneiros que, estonteados pela fúria das águas na confluência Atlântico-Índico na ponta meridional de África, baptizaram primeiro o local de “Cabo das Tormentas” para, mais tarde, reconhecendo que ele lhes abria o caminho marítimo para a desejada Índia, o rebaptizarem de “Cabo da Boa Esperança”, nome que se manteve até aos dias de hoje. Das Tormentas à Esperança vai um caminho tão longo como o que separa a dor do prazer; não foi pelo facto de o cabo ser crismado de forma diferente que as águas alterosas se amansaram, mas pensar em termos de esperança é muito mais consolador do que encher o espírito de imagens de tempestades e momentos difíceis. O eufemismo serve para casos como este: não muda a substância, adoça a forma.

Hoje em dia, com a tentativa de homogeneização mundial e a concomitante superficialidade das coisas que são niveladas umas pelas outras, a forma ganha muito mais importância em numerosos casos do que o sentido que ela encerra. Da mesma maneira que, no domínio do marketing, se arranjam novos nomes para designar produtos sem substancial alteração relativamente a outros anteriores, a necessidade de “desinstalar” que a sociedade moderna baseada no capital possui leva a que palavras consagradas sejam desinstaladas para serem substituídas por outras significando o mesmo mas soando quiçá de forma mais agradável ao ouvido. Por seu lado, os políticos tendem igualmente a servir-se de conceitos alegadamente novos para, afinal, realizarem apenas coisas que já levaram outros a dizer que “nada há de novo debaixo do sol”.

Quando Benjamin Franklin diz, numa carta a um amigo, “a morte e os impostos são as únicas certezas que podemos ter neste mundo”, ele está precisamente a usar palavras incómodas – infelizmente inevitáveis – que são por esse motivo objecto de numerosos eufemismos. Deixando a morte de lado para olharmos apenas para os impostos, constatamos que os governantes preferem usar eufemismos à palavra exacta. Assim, o termo “contribuições” – de cunho positivo – substitui frequentemente os odiados “impostos”. A “contribuição autárquica” é um dos vários exemplos que possuímos, dando a ideia de que estamos a contribuir de livre vontade. Existe, porém, uma forma mais moderna de evitar o desagradável impacto da palavra “imposto”: o uso de abreviaturas. Assim se passou a dizer, mais alegre e despreocupadamente, IRS, IRC, IVA, IA e coisas quejandas. É o marketing linguístico a funcionar.

Há décadas que alguns americanos começaram a notar que a comunidade hispânica estava a expandir-se excessivamente na costa ocidental dos Estados Unidos. A maior cidade da zona, Los Angeles, possuía não só um nome hispânico como estava inundada de mexicanos, porto-riquenhos e outros latino-americanos. A solução encontrada para algo que, do ponto de vista da dominante sociedade “WASP” (White Anglo-Saxon Protestant), começava a ser desconfortável foi designar a cidade apenas pelas suas iniciais, lidas à maneira anglófona: L.A. (Presentemente pensa-se mesmo em dividir a grande metrópole em duas cidades distintas, o que só confirma o objectivo da criação eufemística.)

Em roupas relacionadas com partes mais íntimas do corpo, os eufemismos, que são ocasionalmente estrangeirismos como acima se refere, substituem frequentemente as palavras mais tradicionais. “Roupa interior feminina” há muito que tem um sinónimo mais delicado em lingerie. Há todo uma conotação de moda francesa na palavra que a expressão portuguesa não contém; pragmaticamente, isso ajuda as vendas. Desde há muitos anos que a peça de vestuário usada para conter seios femininos se chama “soutien”, num encurtamento português de “soutien-gorge”. Quem imaginaria usar palavras como “colete de seios”, “pára-seios”, ou algo do género? Estou crente de que a Igreja viu com bom olhos a introdução de soutien, apesar de ser palavra estrangeira. Para homens, repare-se na crueza do vocábulo “cuecas”, a que as duas letras iniciais dão um toque de ingenuidade camponesa de que o marketing citadino não se compadece. “Cueiros” para crianças ainda escapa, mas é evidente que “cuecas” se tornou palavra demasiado saloia, pelo que foi substituída de forma p.c. (politicamente correcta) por slips ou por boxers. Dever-se-á classificar estas palavras como estrangeirismos ou apenas como exemplos pragmáticos de bom-gosto e bom-tom, a que se associa uma correcta técnica de vendas? Os collants femininos entram no mesmo grupo, tal como os tops e os bodies.

Pessoalmente, não creio que a entrada e adaptação ao português de novos vocábulos de origem estrangeira seja grave. Constituindo o país uma sociedade aberta, seria de estranhar até que esses vocábulos se quedassem pela porta e não a franqueassem. Por outro lado, numa sociedade que tende mais a homogeneizar-se do que a diferenciar-se, considero perfeitamente natural que o ser humano goste de se sentir um pouco diferente para não ficar esmagado pela multidão constituída por todos os outros. Este será um dos motivos que leva a juventude e alguns grupos tecnocratas a usarem uma linguagem própria, avançada e diferenciante. Pelo seu lado, os jornalistas da imprensa, rádio e televisão, como veiculadores de muitas das novas tendências, usam profusamente novos vocábulos para criarem inovação e efeito de choque. Na mesma linha estão os publicitários, que têm de ser suficientemente criativos para por vezes embrulhar apenas coisas velhas em novos panos.

No mundo empresarial, as firmas querem naturalmente aparecer na linha de vanguarda, pelo que é frequente que funções antigas e actividades novas sejam deixadas com nomes estrangeiros para lhes dar cunho de novidade ou apenas por uma questão de conveniência; há casos em que é melhor manter um certo secretismo, que a palavra estrangeira transmite melhor. É assim que “insider trading”, actividade ilegal de compra ou venda de títulos por acesso privilegiado a informação, se mantém em inglês; “spread” – basicamente a diferença entre a taxa de juro passiva e a activa, o lucro do banco nos empréstimos – idem; os “lobbies” continuam a ser preferidos aos “grupos de pressão”, que são demasiado explícitos. Como estes há dezenas de termos que os técnicos preferem não traduzir por razões de conveniência. (Esta questão lembra-me a controvérsia que se gerou no seio do Vaticano quando o serviço religioso perdeu muito da sua áurea de mistério ao passar do latim para a língua dos diversos países.)

A necessidade de pôr o dinheiro a circular para adquirir coisas novas faz com que tudo o que é velho perca interesse. E os velhos mesmos, os indivíduos? Bem, muitos deles são os que conseguiram acumular dinheiro ao longo das suas vidas. E continuam activos como votantes. Não podem, portanto, ser maltratados. Para começar, não existem como “velhos”. Há idosos, sexagenários, septuagenários, etc., mas não “velhos”. Formam a terceira idade ou, mais ao jeito do marketing, são os portadores de cartões sénior. A adaptação do “senior” anglo-americano foi muito fácil, pois confere um ar de respeitabilidade e baseia-se em étimo latino. Surgiram já há anos as “contas sénior”, o “turismo sénior” e outras senioridades convenientes.

Não foram só os velhos, como menos protegidos de uma maneira geral, que foram abrangidos por novos termos. Os cegos desapareceram para dar lugar aos “invisuais”. Os “aleijados” passaram a “deficientes físicos”. Dentro da mesma linha, os países pobres foram agrupados no “3º Mundo” ou no grupo dos “países em vias de desenvolvimento” (os americanos chamam-lhes “LDCs”, less developed countries). Um grupo frequentemente muito atacado era o dos maricas, que aliás recebia nomes mais populares como se vê na clássica definição de Braga, “a cidade dos três p’s: padres, putas e paneleiros”. Hoje não há disso. O termo “homossexual” é vulgar, mas o pudor maior surge através do uso de “gay”. A referência à “comunidade gay” transformou-se em lugar comum. Um “bar gay” ou uma agência de viagens especializadas em “turismo gay”, também.

Os políticos são peritos em mudar os nomes às coisas, introduzindo-lhes apenas um pequeno retoque de novidade, quantas vezes para pior. Mas têm que fazer isso, tal como qualquer Presidente que se preze tem de mudar pelo menos a cor das alcatifas do palácio que vai habitar. A juntar a muitos outros que seria ocioso mencionar aqui, citem-se dois dos exemplos mais célebres em Portugal: primeiro, as colónias portuguesas que atacadas em meados do século passado com uma chuva de impropérios invejosos de nações estrangeiras, passaram de um golpe a “províncias ultramarinas” (praticamente só se manteve com o mesmo nome a “Companhia Industrial de Portugal e Colónias”); segundo, o Ministério da Guerra, que na mesma altura para não parecer tão bélico passou a denominar-se “Ministério da Defesa” (anacronicamente, todos os veículos do Ministério mantiveram a sua matrícula MG, pois como abreviatura passava mais despercebida.)

Aqueles que consideram excessiva a introdução de palavras inglesas do glossário informático no nosso vocabulário – “software” “clicar”, “printar”, etc. – lembrar-se-ão que quando o futebol foi introduzido em Portugal aí há uns cem anos a maior parte dos termos também eram em inglês, porque o futebol era coisa nova tal como os computadores estão a ser hoje em dia. Alguns desses termos futebolísticos sobreviveram mas na sua maioria foram engolidos por palavras nacionais com o decorrer dos anos. Os “corners” de antigamente são hoje os “cantos”; os “penalties” ainda se mantêm mas com tendência crescente a passarem a “grandes penalidades”, os “backs” antigos desapareceram, “back centro” é coisa que já ninguém diz, “keeper” (como abreviatura de goalkeeper) tem a sua substituição por “guarda-redes” mais do que consolidada, os “offsides” deram lugar aos “foras de jogo”, etc. Com os termos do domínio da informática que para aí andam vai suceder o mesmo, mais tarde ou mais cedo.

Vocábulos mais obscuros e difíceis de erradicar serão termos como “offshore” ; esses só dificilmente mudarão de nome no mundo dos investimentos a não ser para receberem uma designação igualmente misteriosa mas imbuída de um carácter mais celestial: “paraísos fiscais.”

E por estes paraísos me fico. Deixo o resto para os meus colegas bloguistas completarem ou comentarem.

P. S. O que deve incomodar os defensores e cultivadores da língua portuguesa são, quero crer, outras coisas bem mais importantes, como a existência de um número excessivamente elevado de analfabetos neste país, o uso frequentemente inapropriado de termos e os múltiplos erros de concordância gramatical. Acima de tudo, deveria incomodar-nos que estes últimos possam ter por autores muitos estudantes universitários. Como a sociedade se rege pelo princípio da cascata, de cima para baixo, esse é um exemplo pernicioso.

Entretanto, “cliquemos” à vontade no rato do computador, deliciemo-nos na leitura de um “email” enviado por um amigo, recostemo-nos num confortável “maple”, leiamos um bom livro à luz quente de um “abat-jour”, “zapemos” para um programa de televisão melhor se for caso disso, riamo-nos perante mais um “flop” de um político, e mandemos todo o resto às urtigas.

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