4/16/2008

Acordo ortográfico: uma falsa necessidade e uma aberração

Já chegaram às livrarias dois dicionários que cumprem o anunciado acordo ortográfico. Foram produzidos pela Texto Editora e terão levado à modificação da grafia de cerca de dois por cento das palavras portuguesas. Segundo a coordenadora editorial, estes volumes são o produto do trabalho de uma grande equipa durante cerca de ano e meio. Imagine-se esta equipa a trabalhar durante tanto tempo antes de ser tomada uma decisão que está muito longe de reunir consenso entre os portugueses. É preciso ter lata! Política (ditatorial) do facto consumado!
Neste blogue já expressei a minha opinião sobre o "acordo" pelo menos duas vezes. Vou, portanto, apenas resumir o ponto principal da minha argumentação. A língua é um fenómeno social. Como tal, está directamente relacionada com a sociedade que a utiliza. Dado que as sociedades lusófonas - tanto em África como no Brasil e em outras partes do mundo - têm evoluído de forma diferente da portuguesa, é natural que várias facetas do idioma, incluindo a ortografia, se tenham adaptado às respectivas sociedades. Não constitui hoje qualquer problema para um lisboeta ou um paulista ler textos redigidos em língua portuguesa produzidos em Angola, Moçambique, Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe. Pretender unificar artificialmente aquilo que é naturalmente diferente constitui um forcing atroz promovido por políticos e pessoas com interesses vários, divorciados da maioria do povo português, a quem não ocorreria semelhante coisa. Este eventual acordo, que rejeito totalmente, não faz qualquer sentido, é contra natura e soa mais como um eventual capricho de meia-dúzia de linguistas e de alguns políticos do que como vontade popular da Nação. Urge pôr cobro a esta inútil tentativa de alteração da ortografia do português, que não resolve problema nenhum! Muito pelo contrário, cria problemas! A ortografia, sendo embora importante, está longe de representar o todo de uma língua. Então esquece-se o vocabulário e a sintaxe?
Parece que agora a moda é dizer que um documento a assinar em português nas Nações Unidas teria que ser uniforme. Porquê, se o não tem sido até aqui? Porquê se não sucede assim com outros países? Se for em português do Brasil, não tem qualquer importância para nós. Desde que o representante do Estado português concorde, qual é o problema? O problema, esse sim, reside na forma prepotente como se pretende que os portugueses passem a grafar as suas palavras de maneira assaz diferente daquela que sempre aprenderam, apenas para falsamente unificar algo que é naturalmente diferente e que assim se deve manter!
Como já tenho dito, não sou contra alterações dentro da própria língua sempre que isso se deva à natural evolução do idioma. Mas serão sempre alterações dentro do contexto da sociedade nacional. Se essas mudanças vão ser influenciadas por sociedades estranhas à nossa, que sentido faz? A língua não é moeda de troca, está profundamente enraizada nas pessoas. É bom que os políticos não se esqueçam disso!

P.S. Vi na segunda-feira passada uma parte do programa "Prós e Contras" sobre esta questão e, confesso, para mim o mistério adensa-se. Que forças estão por detrás desta barbaridade? Alguns dos argumentos aduzidos são tão ridículos que não posso deixar de os achar estranhíssimos. Ouvi dizer, por exemplo, que os alunos estrangeiros que aprendem a língua portuguesa no seu país - umas centenas, quando muito pouquíssimos milhares - ficam confundidos, porque podem ter uma ortografia de manhã, por um docente português, e outra à tarde, por um docente brasileiro. Que fraquíssimo argumento para obrigar mais de dez milhões de portugueses a alterarem a sua maneira de escrever 2000 a 3000 palavras da sua própria língua! Por um lado, diferenças na ortografia não são nada de grave e, o que é mais, repito o que todos sabemos: que a ortografia é apenas uma parte da língua. Entre o português do Brasil e o português de Portugal existem diferenças muito mais significativas. E então seria esse reduzidíssimo número de aprendentes de português lá fora que iria fazer mudar todos os portugueses do país e das várias comunidades espalhadas pelo mundo?!!
Um outro argumento que ouvi é o de que para os muitos iletrados do Brasil e de Portugal aprender a escrever de maneira simplificada seria muito mais fácil. Então, em vez de dar boa educação a quem não sabe, resolvendo substancialmente o problema dos iletrados, pretende-se obrigar todos os que sabem a mudar! Daria para rir, se não fosse triste!
Ainda um outro argumento que ouvi, da parte de uma escritora que até aprecio, foi o de que estamos a sofrer uma enorme influência da língua inglesa, da qual importamos palavras - a pessoa em questão falou em bullying, mas depois não conseguiu encontrar uma palavra portuguesa que quisesse dizer o mesmo - e que essa influência só estancaria se tivéssemos a mesma ortografia do Brasil. Ora, as palavras estrangeiras entram no nosso país por uma influência cultural: quem inova em informática, em sociologia ou em ciência tende, de uma maneira geral, a exportar novos vocábulos; quem adopta tende a importá-los, pelo menos numa primeira fase. Querem agora dizer-nos que é por causa da nossa ortografia que isso sucede? Pois, mudando 2000 e tal palavras, toda a importação de vocábulos estrangeiros pararia também?!
Depois, falsamente, ouvi dizer que a língua inglesa tinha a mesma grafia em todo o lado! Qualquer aluno de inglês até acha curioso que o centre inglês seja center na América, que o programme britânico seja program nos Estados Unidos e que a colour europeia seja grafada como color do outro lado do Atlântico. Qual é o problema? Há, naturalmente, que explicar aos alunos que ambas as grafias são certas, cada uma no seu sítio. Como professor de inglês, eu nunca corrigiria um aluno que escrevesse program, a não ser que ele escrevesse algo como my favourite program, porque aí estaria a quebrar o princípio da consistência (favourite adopta a ortografia britânica, enquanto program adopta a americana). Quanto ao resto…
Pessoalmente, há algo que não perdoo nesta arengada de reforma ortográfica de um país à custa da evolução linguística em antigas colónias: que seja negligenciada a importantíssima distinção entre formas populares (usadas todos os dias) e formas eruditas (usadas com maior parcimónia) na eliminação de consoantes aparentemente mudas - mas funcionais. Eu posso não pronunciar o -p- em óptimo (forma popular), mas pronuncio-o em optimizar e em optimização (formas mais eruditas).
Por outro lado, a língua mantém traços do antigo, da mesma maneira que um velho mantém a memória da sua infância. Sucede em todos os idiomas. Repare-se, por exemplo, que em francês o acento circunflexo poderia desaparecer em hôpital, em âne, em fête e em tantas outras palavras. No entanto, ele está lá para mostrar que antigamente existia um -s-, na palavra, que aliás se manteve em português nos vocábulos correspondentes hospital, asno e festa. Em inglês, often é na generalidade pronunciado sem que se oiça o -t-, mas há pessoas que o pronunciam claramente. E o -t- mantém-se. Retirá-lo descaracterizaria bastante a língua, tal como retirar o -l- em should, would, talk, walk, etc. Portanto, nestes casos o -l- mantém-se.
De facto, para mim tudo isto é, para além de uma grande aberração, um enorme mistério.

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