Este mês de Março de 2013 teve, até ao dia em que
escrevo estas linhas, dois factos muito salientes. O primeiro foi a eleição de
um novo Papa da religião cristã e católica. O segundo consistiu na recente
intervenção da Europa da finança em Chipre através da banca. Embora não exista
qualquer relação directa entre estes dois factos, eles acabam, em minha
opinião, por estar ligados. São, porém, de sinais opostos. Para lá de reais,
ambos são simbólicos e estão associados à noção de poder. Como se pode supor,
existe maior espiritualidade na eleição do Papa e maior materialidade – se é
que há alguma espiritualidade – no caso da intervenção financeira de Chipre.
Brevemente,
comecemos por analisar a questão do Vaticano, que é interessante e também algo
intrigante, já que existem segredos e meios-segredos relativamente à Igreja
Católica. É hoje praticamente impossível chegar a uma conclusão definitiva. O
anterior Papa, Bento XVI, alemão de nascimento, renunciou em Fevereiro ao seu
cargo, após alguns anos de papado. Alegou cansaço físico e mental, do qual
resultaria a sua incapacidade para desempenhar cabalmente a missão. É fácil de
admitir, pelo aspecto actual do ex-Papa Ratzinger, que o motivo que ele alega é
real. O peso que recai sobre os ombros do mais alto representante da Igreja
Católica é grande. Por outro lado, existem razões sérias para acreditar que
motivos de saúde estiveram longe de ser os únicos que levaram o Papa a
renunciar ao seu cargo. Questões graves, como o escândalo da pedofilia por
parte de membros do clero, desinteligências com a Cúria e problemas nunca
cristalinamente esclarecidos relativamente a assuntos financeiros da Igreja
podem certamente ter fatigado Bento XVI e contribuído para a sua renúncia.
No
conclave do qual saiu um Papa para substituir Bento XVI foi eleito um cardeal
argentino, Jorge Mario Bergoglio, jesuíta de formação, que adoptou para si um
nome que nunca nenhum Papa antes tivera: Francisco. Na história da religião
católica há dois Franciscos célebres – Francisco de Assis e Francisco Xavier -
, pelo que quando o cardeal argentino adoptou aquele nome os católicos se
interrogaram: quererá ele dizer S. Francisco Xavier, jesuíta como ele, ou S.
Francisco de Assis, defensor da paz e dos pobres? O novo papa esclareceu
imediatamente a questão, sem renegar o jeito apostólico de S. Francisco Xavier:
a sua escolha recaía sobre Francisco de Assis.
Aqui
virá eventualmente a propósito uma história anedótica que caracteriza bem a
diferença que existe entre um jesuíta e um franciscano. É uma história
extremista, como é habitual sempre que se pretende vincar pólos opostos. É possível, como este Papa pretende demonstrar, conjugar
as duas facetas. Mas vamos entretanto à história:
Entre
as múltiplas ordens religiosas existentes destacam-se os Jesuítas (da Companhia
de Jesus), famosos não só pela sua intelectualidade e pelo seu saber, mas
também pela sua arrogância e sobranceria. Trabalham geralmente ao lado das
elites. Por seu lado, os Franciscanos sobressaem pela sua humildade, que os
leva a tratar os seus semelhantes por "irmãos" e “irmãs”, e a andar
frequentemente descalços ou com umas simples sandálias nos pés.
Um dia, um jesuíta quis embaraçar um frade franciscano e
colocou-lhe uma pergunta de difícil ou mesmo impossível resposta:
- Irmão, sabes por acaso quais foram as primeiras
palavras que Jesus Cristo disse?
O franciscano admitiu humildemente que não sabia, mas
pediu oito dias para tentar obter a resposta. Ao fim do período de tempo que
lhe concedera, o jesuíta não lhe perdoou e voltou à carga:
- Então, irmão, já sabes por acaso quais foram as
primeiras palavras que Jesus disse?
- "Sim", volveu o franciscano. "Creio que
já sei."
- "Ah sim? Então diz lá!", ripostou-lhe algo
incrédulo e irónico o jesuíta.
- Foi num dia em que Nossa Senhora
não estava na gruta. Tinha ido lavar umas roupitas a um ribeiro. Aí, o menino
Jesus, sozinho na gruta, terá dito as suas primeiras palavras.
- Que foram?
- Bem, eu disse que ele estava sozinho mas de facto não
estava. De um lado tinha um burro, do outro uma vaca. Foi então que o Menino se
voltou para o lado da vaca e depois para o lado do burro, e balbuciou a sua
primeira frase.
- "Qual?", interrompeu o jesuíta, ansiosamente.
- Ele abriu os bracitos e perguntou: "Então é esta a
Companhia de Jesus?"
Conquanto
Shakespeare nos tenha lembrado que um nome pode não querer dizer muito – uma
rosa cheiraria por acaso menos doce se tivesse um outro nome? – o facto é que a
escolha de Francisco de Assis, sendo propositada, é cheia de significado. E na actual
situação ainda ganha um significado acrescido.
O
mundo mudou muito nestas últimas décadas. A globalização alterou o comércio a
nível mundial. A desregulação financeira, que vem beneficiando grandes
companhias e instituições financeiras muito mais do que todos aqueles que se
arrastam pela mediania e mesmo pela pobreza, trouxe consigo uma distribuição
menos equitativa da riqueza. Escandalosa, por vezes. Os estados debatem-se com
falta de meios, em grande parte devido ao facto de que os seus maiores
contribuintes habituais procuram livremente zonas onde sejam menos onerados com
impostos, posicionamento que faz recair sobre os restantes cidadãos uma carga
fiscal muitíssimo maior. No caso europeu, a criação da União e a consequente introdução
de uma moeda comum – o euro – tem feito salientar o notório desequilíbrio que
existe no seio das economias dos países que aderiram à moeda única. Por outro
lado, a deslocalização de grandes companhias multinacionais em busca de maiores
lucros através do pagamento de salários mais baixos, que se encontram em países
com maior quantidade de mão-de-obra, provoca elevadas taxas de desemprego no
Ocidente, o que leva os estados a terem de socorrer os milhares ou milhões de
desempregados para que a paz social continue a reinar no território sob a sua
jurisdição. Com isso diminui, obviamente, o rendimento da colecta de impostos
estatal. A situação parece, nalguns casos, estar num verdadeiro beco sem saída.
De
uma maneira genérica, pode dizer-se que o mundo financeiro tomou conta da
política latu sensu. Existe uma exploração
desenfreada, que causa um enorme desconforto em muitas sociedades e faz
aumentar exponencialmente o número de pobres em vários países. Muitos valores,
como a solidariedade – o amor ao próximo -, a honestidade, o direito ao
trabalho, a tendência para a igualdade e tantos outros, têm vindo a desaparecer
a nível institucional e a ser substituídos pela ganância do lucro por parte dos
mais poderosos e pela precariedade no trabalho a que os mais fracos ficam
sujeitos. Karl Marx – não confundir com os marxistas – mostrou ter razão ao
afirmar que o dinheiro constitui o motor principal na movimentação das
sociedades. Inadvertidamente, é o próprio movimento neoliberal que acaba por
vir confirmar essa tese de Marx.
Em
certa medida à semelhança do Papa que, em tempos da Reforma no século XVI, viu
surgir os Jesuítas como seu espiritual braço armado contra a desagregação da
Igreja Católica em face do movimento protestante, o capital possui o seu financeiro
braço armado nos bancos. Para os actuais defensores do euro, da União Europeia
e do desenvolvimento do capital, a banca constitui algo tão importante que,
aparentemente pelo menos, cuidam mais dela que dos estados soberanos
propriamente ditos. Em Chipre, num movimento de surpresa mas não inédito –
ocorreu também na Argentina há cerca de uma dezena de anos – os emprestadores só
autorizaram um empréstimo vultoso para o pequeno país mediante uma condição
chocante: os bancos em que os habitantes do país têm os seus depósitos deveriam
reter, como se de um imposto se tratasse, quase 10 por cento das contas acima
de 100.000 euros e um pouco mais do que seis por cento em todas as contas
abaixo desse montante. A ideia subjacente, já ventilada noutros países, entre
os quais Portugal, é a de que o povo gastou demais e portanto tem de pagar esse
excesso. É um processo cruel, de verdadeira agiotagem, porque as grandes
despesas do país são mais o resultado de compras vultosas feitas aos países
mais ricos, como a Alemanha, e que se traduziram em material de guerra
sofisticado e dispendioso, automóveis topo de série, toda uma vasta gama de
artigos e, naturalmente, habitações novas que os bancos conseguiram, muitas
vezes com dinheiro emprestado, financiar, desde os terrenos para a sua
construção até à venda de apartamentos.
Ora,
a diferença entre este consumo propositadamente elevado, seguindo o princípio
clássico do emprestador “quanto mais pedes emprestado, mais te enterras” – e o
ideal franciscano é abissal. Nem todo o mundo é cristão, como se sabe, e mesmo
no mundo cristão nem todos são católicos. Ao escolher o nome de Francisco de
Assis, é mais do que natural que o novo Papa se tenha lembrado não só do
Francisco que se despojou de toda a eventual riqueza que a sua família lhe
proporcionava, como também de gestos importantes, como o que S. Francisco de
Assis fez quando foi ao Egipto para se encontrar com o sultão Al-Kamil, numa
saudável tentativa de compreender o outro numa altura em que os cruzados se
preparavam para atacar.
S. Francisco
foi também o homem que incentivou Clara (Santa Clara) e as suas companheiras a
seguir o seu estilo de vida mendicante. Revelando a sua solidariedade para com
o próximo, S. Francisco tratava por “irmão” todas as criaturas e coisas. Defendeu
princípios nobres, como os da fraternidade, da paz universal, do ecumenismo e da
abertura às mulheres, seguindo o exemplo de Santa Clara. Aliás, S. Francisco
não só conferiu uma sadia abertura às mulheres; fê-lo também com os laicos, de
onde adveio a Ordem Terceira de S. Francisco. O santo esteve sempre ao lado do
povo, algo que este novo Papa aprendeu a fazer na sua Argentina natal. Estar ao
lado do povo significa nos tempos actuais lutar contra as poderosas estruturas
de exploração e opressão do homem, incluindo naturalmente uma das mais notórias
formas de explorar pessoas: a precarização. O ideário franciscano, que consigna
o amor pelos pobres e por tudo o que é frágil, é fortíssimo hoje em dia na sua
dimensão política. Além do mais, S. Francisco foi um incansável defensor da
natureza e transmitiu-nos a ideia de que não podemos explorar tudo. E,
certamente, que não devemos pensar apenas em estratégias de curto prazo: o seu
pensamento é de horizontes largos, tanto em termos de espaço como de tempo.
Não podemos colocar o
Papa como salvador do mundo, que ele obviamente não é, nem nunca poderá ser.
Mas através de uma luta forte e aguerrida defendendo inteligentemente os ideais
franciscanos, pode simultaneamente fazer muito pelo ressarcimento da Igreja
católica e combater o cruel poder financeiro que produz pobreza por toda a
parte, como se em sistema de vasos comunicantes. Uma reforma da Igreja e uma
maior atenção para os problemas sociais podem alertar o povo contra os seus
exploradores e dar esperança a muitos que presentemente descrêem de tudo ou de quase
tudo.
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