3/19/2013

Dois casos


           Este mês de Março de 2013 teve, até ao dia em que escrevo estas linhas, dois factos muito salientes. O primeiro foi a eleição de um novo Papa da religião cristã e católica. O segundo consistiu na recente intervenção da Europa da finança em Chipre através da banca. Embora não exista qualquer relação directa entre estes dois factos, eles acabam, em minha opinião, por estar ligados. São, porém, de sinais opostos. Para lá de reais, ambos são simbólicos e estão associados à noção de poder. Como se pode supor, existe maior espiritualidade na eleição do Papa e maior materialidade – se é que há alguma espiritualidade – no caso da intervenção financeira de Chipre.
            Brevemente, comecemos por analisar a questão do Vaticano, que é interessante e também algo intrigante, já que existem segredos e meios-segredos relativamente à Igreja Católica. É hoje praticamente impossível chegar a uma conclusão definitiva. O anterior Papa, Bento XVI, alemão de nascimento, renunciou em Fevereiro ao seu cargo, após alguns anos de papado. Alegou cansaço físico e mental, do qual resultaria a sua incapacidade para desempenhar cabalmente a missão. É fácil de admitir, pelo aspecto actual do ex-Papa Ratzinger, que o motivo que ele alega é real. O peso que recai sobre os ombros do mais alto representante da Igreja Católica é grande. Por outro lado, existem razões sérias para acreditar que motivos de saúde estiveram longe de ser os únicos que levaram o Papa a renunciar ao seu cargo. Questões graves, como o escândalo da pedofilia por parte de membros do clero, desinteligências com a Cúria e problemas nunca cristalinamente esclarecidos relativamente a assuntos financeiros da Igreja podem certamente ter fatigado Bento XVI e contribuído para a sua renúncia.
            No conclave do qual saiu um Papa para substituir Bento XVI foi eleito um cardeal argentino, Jorge Mario Bergoglio, jesuíta de formação, que adoptou para si um nome que nunca nenhum Papa antes tivera: Francisco. Na história da religião católica há dois Franciscos célebres – Francisco de Assis e Francisco Xavier - , pelo que quando o cardeal argentino adoptou aquele nome os católicos se interrogaram: quererá ele dizer S. Francisco Xavier, jesuíta como ele, ou S. Francisco de Assis, defensor da paz e dos pobres? O novo papa esclareceu imediatamente a questão, sem renegar o jeito apostólico de S. Francisco Xavier: a sua escolha recaía sobre Francisco de Assis.
            Aqui virá eventualmente a propósito uma história anedótica que caracteriza bem a diferença que existe entre um jesuíta e um franciscano. É uma história extremista, como é habitual sempre que se pretende vincar pólos opostos. É possível, como este Papa pretende demonstrar, conjugar as duas facetas. Mas vamos entretanto à história:

Entre as múltiplas ordens religiosas existentes destacam-se os Jesuítas (da Companhia de Jesus), famosos não só pela sua intelectualidade e pelo seu saber, mas também pela sua arrogância e sobranceria. Trabalham geralmente ao lado das elites. Por seu lado, os Franciscanos sobressaem pela sua humildade, que os leva a tratar os seus semelhantes por "irmãos" e “irmãs”, e a andar frequentemente descalços ou com umas simples sandálias nos pés.
            Um dia, um jesuíta quis embaraçar um frade franciscano e colocou-lhe uma pergunta de difícil ou mesmo impossível resposta:
            - Irmão, sabes por acaso quais foram as primeiras palavras que Jesus Cristo disse?
            O franciscano admitiu humildemente que não sabia, mas pediu oito dias para tentar obter a resposta. Ao fim do período de tempo que lhe concedera, o jesuíta não lhe perdoou e voltou à carga:
            - Então, irmão, já sabes por acaso quais foram as primeiras palavras que Jesus disse?
            - "Sim", volveu o franciscano. "Creio que já sei."
            - "Ah sim? Então diz lá!", ripostou-lhe algo incrédulo e irónico o jesuíta.
            - Foi num dia em que Nossa Senhora não estava na gruta. Tinha ido lavar umas roupitas a um ribeiro. Aí, o menino Jesus, sozinho na gruta, terá dito as suas primeiras palavras.
            - Que foram?
            - Bem, eu disse que ele estava sozinho mas de facto não estava. De um lado tinha um burro, do outro uma vaca. Foi então que o Menino se voltou para o lado da vaca e depois para o lado do burro, e balbuciou a sua primeira frase.
            - "Qual?", interrompeu o jesuíta, ansiosamente.
            - Ele abriu os bracitos e perguntou: "Então é esta a Companhia de Jesus?"

            Conquanto Shakespeare nos tenha lembrado que um nome pode não querer dizer muito – uma rosa cheiraria por acaso menos doce se tivesse um outro nome? – o facto é que a escolha de Francisco de Assis, sendo propositada, é cheia de significado. E na actual situação ainda ganha um significado acrescido.
            O mundo mudou muito nestas últimas décadas. A globalização alterou o comércio a nível mundial. A desregulação financeira, que vem beneficiando grandes companhias e instituições financeiras muito mais do que todos aqueles que se arrastam pela mediania e mesmo pela pobreza, trouxe consigo uma distribuição menos equitativa da riqueza. Escandalosa, por vezes. Os estados debatem-se com falta de meios, em grande parte devido ao facto de que os seus maiores contribuintes habituais procuram livremente zonas onde sejam menos onerados com impostos, posicionamento que faz recair sobre os restantes cidadãos uma carga fiscal muitíssimo maior. No caso europeu, a criação da União e a consequente introdução de uma moeda comum – o euro – tem feito salientar o notório desequilíbrio que existe no seio das economias dos países que aderiram à moeda única. Por outro lado, a deslocalização de grandes companhias multinacionais em busca de maiores lucros através do pagamento de salários mais baixos, que se encontram em países com maior quantidade de mão-de-obra, provoca elevadas taxas de desemprego no Ocidente, o que leva os estados a terem de socorrer os milhares ou milhões de desempregados para que a paz social continue a reinar no território sob a sua jurisdição. Com isso diminui, obviamente, o rendimento da colecta de impostos estatal. A situação parece, nalguns casos, estar num verdadeiro beco sem saída.
            De uma maneira genérica, pode dizer-se que o mundo financeiro tomou conta da política latu sensu. Existe uma exploração desenfreada, que causa um enorme desconforto em muitas sociedades e faz aumentar exponencialmente o número de pobres em vários países. Muitos valores, como a solidariedade – o amor ao próximo -, a honestidade, o direito ao trabalho, a tendência para a igualdade e tantos outros, têm vindo a desaparecer a nível institucional e a ser substituídos pela ganância do lucro por parte dos mais poderosos e pela precariedade no trabalho a que os mais fracos ficam sujeitos. Karl Marx – não confundir com os marxistas – mostrou ter razão ao afirmar que o dinheiro constitui o motor principal na movimentação das sociedades. Inadvertidamente, é o próprio movimento neoliberal que acaba por vir confirmar essa tese de Marx.
            Em certa medida à semelhança do Papa que, em tempos da Reforma no século XVI, viu surgir os Jesuítas como seu espiritual braço armado contra a desagregação da Igreja Católica em face do movimento protestante, o capital possui o seu financeiro braço armado nos bancos. Para os actuais defensores do euro, da União Europeia e do desenvolvimento do capital, a banca constitui algo tão importante que, aparentemente pelo menos, cuidam mais dela que dos estados soberanos propriamente ditos. Em Chipre, num movimento de surpresa mas não inédito – ocorreu também na Argentina há cerca de uma dezena de anos – os emprestadores só autorizaram um empréstimo vultoso para o pequeno país mediante uma condição chocante: os bancos em que os habitantes do país têm os seus depósitos deveriam reter, como se de um imposto se tratasse, quase 10 por cento das contas acima de 100.000 euros e um pouco mais do que seis por cento em todas as contas abaixo desse montante. A ideia subjacente, já ventilada noutros países, entre os quais Portugal, é a de que o povo gastou demais e portanto tem de pagar esse excesso. É um processo cruel, de verdadeira agiotagem, porque as grandes despesas do país são mais o resultado de compras vultosas feitas aos países mais ricos, como a Alemanha, e que se traduziram em material de guerra sofisticado e dispendioso, automóveis topo de série, toda uma vasta gama de artigos e, naturalmente, habitações novas que os bancos conseguiram, muitas vezes com dinheiro emprestado, financiar, desde os terrenos para a sua construção até à venda de apartamentos.
            Ora, a diferença entre este consumo propositadamente elevado, seguindo o princípio clássico do emprestador “quanto mais pedes emprestado, mais te enterras” – e o ideal franciscano é abissal. Nem todo o mundo é cristão, como se sabe, e mesmo no mundo cristão nem todos são católicos. Ao escolher o nome de Francisco de Assis, é mais do que natural que o novo Papa se tenha lembrado não só do Francisco que se despojou de toda a eventual riqueza que a sua família lhe proporcionava, como também de gestos importantes, como o que S. Francisco de Assis fez quando foi ao Egipto para se encontrar com o sultão Al-Kamil, numa saudável tentativa de compreender o outro numa altura em que os cruzados se preparavam para atacar.
S. Francisco foi também o homem que incentivou Clara (Santa Clara) e as suas companheiras a seguir o seu estilo de vida mendicante. Revelando a sua solidariedade para com o próximo, S. Francisco tratava por “irmão” todas as criaturas e coisas. Defendeu princípios nobres, como os da fraternidade, da paz universal, do ecumenismo e da abertura às mulheres, seguindo o exemplo de Santa Clara. Aliás, S. Francisco não só conferiu uma sadia abertura às mulheres; fê-lo também com os laicos, de onde adveio a Ordem Terceira de S. Francisco. O santo esteve sempre ao lado do povo, algo que este novo Papa aprendeu a fazer na sua Argentina natal. Estar ao lado do povo significa nos tempos actuais lutar contra as poderosas estruturas de exploração e opressão do homem, incluindo naturalmente uma das mais notórias formas de explorar pessoas: a precarização. O ideário franciscano, que consigna o amor pelos pobres e por tudo o que é frágil, é fortíssimo hoje em dia na sua dimensão política. Além do mais, S. Francisco foi um incansável defensor da natureza e transmitiu-nos a ideia de que não podemos explorar tudo. E, certamente, que não devemos pensar apenas em estratégias de curto prazo: o seu pensamento é de horizontes largos, tanto em termos de espaço como de tempo.
            Não podemos colocar o Papa como salvador do mundo, que ele obviamente não é, nem nunca poderá ser. Mas através de uma luta forte e aguerrida defendendo inteligentemente os ideais franciscanos, pode simultaneamente fazer muito pelo ressarcimento da Igreja católica e combater o cruel poder financeiro que produz pobreza por toda a parte, como se em sistema de vasos comunicantes. Uma reforma da Igreja e uma maior atenção para os problemas sociais podem alertar o povo contra os seus exploradores e dar esperança a muitos que presentemente descrêem de tudo ou de quase tudo.

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