1/10/2004

O Principio do Pato

Talleyrand -- para os que porventura possam não saber ou não se recordar -- foi um homem de estado e diplomata francês que viveu entre 1754 e 1838. Uma vida longa num período tão conturbado, que englobou o reinado de Luis XVI, a vivência da Revolução Francesa, Napoleão Bonaparte e Luis Filipe, permitiu a Talleyrand ser bispo, embaixador, ministro e conselheiro político. Possivelmente, de toda a sua extensa e acidentada vivência nada nos foi legado de tão popularizado como a sua lapidar frase: "A palavra foi dada ao homem para dissimular o pensamento."

Muitos homens honestos e de boa fé contestarão, relativamente a si próprios, esta conhecida máxima, pois para eles é a sinceridade que conta. Admitirão, porém, que muito do que se diz está frequentemente a quilómetros de distância do que se pensa.

Marshall McLuhan, o teorizador dos conceitos da comunicação televisiva, afirmou, muito mais recentemente do que Talleyrand, que o homem mediaticamente bem sucedido é aquele que consegue fazer passar aos espectadores como sincera uma mensagem em que ele próprio não acredita.

Somos assim. Revemo-nos perfeitos em Deus e depois, admitindo as nossas fraquezas e justificando-as com uma razão plausível -- geralmente de carácter pessoal, raramente objectiva -- desviamo-nos, sem problemas, da perfeição que encontramos no Deus criador.

O prestidigitador é, assumidamente, um homem que faz truques para ludibriar (e divertir) a assistência. O seu braço direito conduz o olhar dos espectadores, enquanto o braço esquerdo manobra. É uma situação que lembra um dito irónico do princípio do século: "quando um ministro faz um discurso, nunca se deve seguir o braço direito com que ele gesticula, mas sempre o esquerdo, com que ele se abotoa".

Uma vez ilustrada com vários exemplos esta ideia de desfasamento frequente entre a realidade e a palavra, passemos ao "princípio do pato", muito dos nossos dias.

O leitor já terá decerto participado em colóquios, simpósios, seminários, congressos e parafernália quejanda. Se não participou, terá tido mesmo assim ocasião de os ver referidos na imprensa escrita, na televisão ou na rádio. Não lhe terá escapado a tónica usada e abusada sobre a palavra qualidade. Da qualidade de vida à qualidade da construção, passando pela qualidade do turismo, da paisagem, da educação e tantos outros itens.

Atento, o leitor queda-se a olhar para aquele edifício ali, que vai ter vinte fogos, construído no lugar de duas antigas moradias. Oitenta pessoas irão viver na área de terreno outrora ocupada apenas por oito. O leitor contempla as estatísticas de turismo, que lhe falam de muitos visitantes mais que, no entanto, ficam menos tempo e gastam menos dinheiro. O leitor observa a paisagem antes recoberta de frondosos e simpáticos pinheiros, hoje substituídos, após um incêndio ocasional, por uma massa muito maior de inóspitos eucaliptos. O leitor ouve palavras bonitas sobre educação e depois vê salas de aula frequentemente superlotadas, a quantidade dos alunos a prevalecer sobre a qualidade do ensino.

O enigma está resolvido. Já tínhamos o princípio de Peter, que se tornou famoso, sobre os senhores competentes que, ao serem promovidos, se tornam menos competentes. Agora passamos a ter o princípio do pato: qualidade = quantidade.

De facto, quase sempre o apregoado conceito de qualidade acaba por se converter no de quantidade -- com o desígnio encapotado de aumentar os lucros ou reduzir os custos. Note-se que as palavras “qualidade” e “quantidade” têm sufixos iguais ("dade"); e, muito importante, têm também inicialmente as mesmas três letras: "qua". Se uma se conjuga com a outra, passamos a ter qua qua, como o pato faz.

O princípio do pato está enunciado, em parte para que você, leitor, na próxima vez que ouvir alguém insinuando-se com a balela da qualidade se resguarde, reflicta e ... seja menos pato.

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