Um
velho amigo meu, americano, trouxe-me recentemente um livro que comprou no
aeroporto de Nova Iorque. Uma vez que vinha passar uns dias a Lisboa, cidade
onde já vivera e trabalhara há uns bons anos, nada de mais natural do que
tivesse sido atraído pelo título da obra: LISBON
- War in the shadows of the great city of light, 1939-1945. O autor, Neill
Lochery, é um escritor de origem judaica. Conhece bem a cidade de Lisboa, onde se
fixou durante algum tempo para colher elementos para este livro deveras
interessante sobre o período da periclitante neutralidade portuguesa mantida durante a
2ª Guerra Mundial.
É bem
conhecida a história da existência de numerosos espiões germânicos e britânicos
na cidade e arredores – nomeadamente no Estoril e em Cascais. Entre esses
espiões conta-se o famoso escritor Ian Fleming, que terá criado o não menos célebre
007, James Bond, inspirado em Popov, espião russo que conheceu no Casino
Estoril de então. Ian Fleming não foi o único escritor que, entre nós,
trabalhou em serviços de espionagem para o seu país. Graham Greene, para citar
apenas mais um caso, também teve uma estadia em Lisboa durante esse período. No
livro acima referido, cuja tradução aconselho vivamente na medida em que alcançará
decerto óptimas vendas, a simples menção de jogos de azar disputados em salas
privadas do Casino entre judeus e membros da Gestapo é algo menos conhecido e,
sem dúvida, hilariante.
Também
Salazar jogava o seu jogo, no qual se mostrou aliás um exímio intérprete. Conseguir
encontrar, num processo por demais dinâmico como é o de um conflito bélico à
escala mundial, um equilibrado meio-termo entre britânicos e alemães de modo a
não se comprometer nem com uns nem com outros, e ainda lograr entretanto auferir ganhos económicos e financeiros com essa convivência dupla foi realmente
obra! A isso se deve em grande parte o facto de Portugal ter mantido, durante os seis longos anos
entre 1939 e 1945, a sua independência política e não ter sido invadido, conjuntamente com a Espanha, pelas tropas beligerantes.
Devo
dizer que o encontrar neste livro frequentes jogos duplos praticados por
personagens diferentes me encantou. Estar bem com Deus e com o Diabo é sempre
uma faceta curiosa. Por exemplo, na zona do Cais do Sodré, de há muitas décadas
famosa pelos seus bares e clubes nocturnos, várias prostitutas foram de início contactadas
pelos alemães para lhes fornecerem informações colhidas aos marujos britânicos que
aportavam a Lisboa e que com elas se embebedavam para saudar a vinda a terra.
Que tipo de informações? As óbvias: que movimentos se esperavam de barcos, para
onde e de onde; que tipo de barcos. Depressa os ingleses perceberam o risco
dessas informações e, por seu lado, começaram também a pagar a prostitutas,
muitas vezes às mesmas, para que fornecessem aos alemães falsas informações.
Imagine-se a cena!
O jogo
duplo não era pertença exclusiva das meretrizes do Cais do Sodré. Por exemplo,
alguns funcionários superiores da polícia secreta portuguesa, que então usava a
sigla PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), não se faziam rogados
naqueles tempos difíceis de racionamento e embolsavam à socapa pagamentos por
informações prestadas frequentemente tanto ao lado do Eixo como ao dos Aliados.
Como complemento aos seus relativamente fracos vencimentos, claro!. Comer em dois
carrinhos sempre foi bom.
Mas o
caso mais interessante que li na obra que acima refiro foi sem dúvida o de
Juan Pujol. Espanhol de nascimento, era um homem que tinha tanto de espírito de
iniciativa e perseverança como de falta de integridade. Em resultado da guerra
civil espanhola (1936-39), Pujol tinha desenvolvido um ódio declarado tanto ao
fascismo como ao comunismo. Ofereceu-se em Madrid aos britânicos. Queria
trabalhar para eles. Não o aceitaram. Tentou então os alemães, que o ouviram,
tal como os britânicos o tinham escutado. Ofereceu-se para trabalhar como
espião para eles tanto em Lisboa como na Inglaterra. Depois de terem estudado
as suas propostas, acabaram também por não as aceitar.
Pujol
não desistiu. Como os alemães lhe tivessem dito que se ele conseguisse
trabalhar em Inglaterra, então a coisa mudaria de figura, veio até Lisboa e
conseguiu aqui arranjar um passaporte falso como membro da delegação espanhola
na cidade. Voltou para Madrid, onde apresentou os seus documentos aos alemães.
Depois de efectuarem controlos de segurança de vária ordem, os serviços alemães
entregaram-lhe o equivalente a 3 mil dólares, que ele escondeu num preservativo
e trouxe para Lisboa. Entretanto, recebera uma formação especial dada pelos
serviços secretos alemães sobre como escrever com tinta invisível.
Apesar
de os germânicos o mandarem para Inglaterra, Pujol ficou-se por Lisboa. Com
base apenas nesta cidade, ludibriava os alemães tentando tudo para parecer que de
facto se encontrava em Londres. Os relatórios que elaborava baseavam-se nas
conversas que ia tendo com vários refugiados nos cafés da Baixa, especialmente
no Chave D’Ouro. Nas livrarias do Chiado ia lendo ou comprando livros sobre
Londres para tornar mais verosímeis os seus relatos.
Entretanto
inventava falsas orgias em bordéis e referia-as como sendo passadas em Londres,
contendo informações erróneas sobre movimentos de tropas. A certa altura, os
ingleses descobriram a marosca através da decifração que lograram fazer de mensagens
trocadas entre serviços das tropas de Hitler. Contrataram-no então, finalmente,
para trabalhar para eles como agente duplo. Para os alemães, Pujol tinha-se entretanto
tornado um dos seus agentes mais bem-sucedidos, com uma rede de 27 sub-agentes,
nenhum dos quais na realidade existia. Ele agia absolutamente sozinho.
O
nosso homem manteve-se operacional durante cerca de três anos. Os seus
relatórios eram sempre coloridos e brilhantes, recheados de episódios vivíssimos.
O seu êxito foi tão inegável que, no final, se tornou um dos raríssimos agentes a serem condecorados por ambos os lados durante a 2ª Grande Guerra. Em Julho de 1944 foi
informado de que Hitler o condecorara com a Cruz de Ferro pelo seu contributo
para a causa alemã. Em Dezembro do mesmo ano, Pujol recebeu uma medalha de
mérito por parte da Grã-Bretanha.
Um livro a não perder! Talvez eu volte ao
blogue com o assunto de pelo menos mais um capítulo geralmente pouco conhecido entre nós. Além
do mais, o que me agrada mais na obra de Neill Lochery é o facto de todas as
suas numerosíssimas fontes estarem registadas – os documentos datados dos anos
da 2ª Guerra Mundial, incluindo os diários de Salazar, já estão abertos ao
público há vários anos.
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