5/28/2012

Um livro que recomendo

Um velho amigo meu, americano, trouxe-me recentemente um livro que comprou no aeroporto de Nova Iorque. Uma vez que vinha passar uns dias a Lisboa, cidade onde já vivera e trabalhara há uns bons anos, nada de mais natural do que tivesse sido atraído pelo título da obra: LISBON - War in the shadows of the great city of light, 1939-1945. O autor, Neill Lochery, é um escritor de origem judaica. Conhece bem a cidade de Lisboa, onde se fixou durante algum tempo para colher elementos para este livro deveras interessante sobre o período da periclitante neutralidade portuguesa mantida durante a 2ª Guerra Mundial.
         É bem conhecida a história da existência de numerosos espiões germânicos e britânicos na cidade e arredores – nomeadamente no Estoril e em Cascais. Entre esses espiões conta-se o famoso escritor Ian Fleming, que terá criado o não menos célebre 007, James Bond, inspirado em Popov, espião russo que conheceu no Casino Estoril de então. Ian Fleming não foi o único escritor que, entre nós, trabalhou em serviços de espionagem para o seu país. Graham Greene, para citar apenas mais um caso, também teve uma estadia em Lisboa durante esse período. No livro acima referido, cuja tradução aconselho vivamente na medida em que alcançará decerto óptimas vendas, a simples menção de jogos de azar disputados em salas privadas do Casino entre judeus e membros da Gestapo é algo menos conhecido e, sem dúvida, hilariante.
         Também Salazar jogava o seu jogo, no qual se mostrou aliás um exímio intérprete. Conseguir encontrar, num processo por demais dinâmico como é o de um conflito bélico à escala mundial, um equilibrado meio-termo entre britânicos e alemães de modo a não se comprometer nem com uns nem com outros, e ainda lograr entretanto auferir  ganhos económicos e financeiros com essa convivência dupla foi realmente obra! A isso se deve em grande parte o facto de Portugal ter mantido, durante os seis longos anos entre 1939 e 1945, a sua independência política e não ter sido invadido, conjuntamente com a Espanha, pelas tropas beligerantes.  
         Devo dizer que o encontrar neste livro frequentes jogos duplos praticados por personagens diferentes me encantou. Estar bem com Deus e com o Diabo é sempre uma faceta curiosa. Por exemplo, na zona do Cais do Sodré, de há muitas décadas famosa pelos seus bares e clubes nocturnos, várias prostitutas foram de início contactadas pelos alemães para lhes fornecerem informações colhidas aos marujos britânicos que aportavam a Lisboa e que com elas se embebedavam para saudar a vinda a terra. Que tipo de informações? As óbvias: que movimentos se esperavam de barcos, para onde e de onde; que tipo de barcos. Depressa os ingleses perceberam o risco dessas informações e, por seu lado, começaram também a pagar a prostitutas, muitas vezes às mesmas, para que fornecessem aos alemães falsas informações. Imagine-se a cena!
         O jogo duplo não era pertença exclusiva das meretrizes do Cais do Sodré. Por exemplo, alguns funcionários superiores da polícia secreta portuguesa, que então usava a sigla PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), não se faziam rogados naqueles tempos difíceis de racionamento e embolsavam à socapa pagamentos por informações prestadas frequentemente tanto ao lado do Eixo como ao dos Aliados. Como complemento aos seus relativamente fracos vencimentos, claro!. Comer em dois carrinhos sempre foi bom.
         Mas o caso mais interessante que li na obra que acima refiro foi sem dúvida o de Juan Pujol. Espanhol de nascimento, era um homem que tinha tanto de espírito de iniciativa e perseverança como de falta de integridade. Em resultado da guerra civil espanhola (1936-39), Pujol tinha desenvolvido um ódio declarado tanto ao fascismo como ao comunismo. Ofereceu-se em Madrid aos britânicos. Queria trabalhar para eles. Não o aceitaram. Tentou então os alemães, que o ouviram, tal como os britânicos o tinham escutado. Ofereceu-se para trabalhar como espião para eles tanto em Lisboa como na Inglaterra. Depois de terem estudado as suas propostas, acabaram também por não as aceitar.  
         Pujol não desistiu. Como os alemães lhe tivessem dito que se ele conseguisse trabalhar em Inglaterra, então a coisa mudaria de figura, veio até Lisboa e conseguiu aqui arranjar um passaporte falso como membro da delegação espanhola na cidade. Voltou para Madrid, onde apresentou os seus documentos aos alemães. Depois de efectuarem controlos de segurança de vária ordem, os serviços alemães entregaram-lhe o equivalente a 3 mil dólares, que ele escondeu num preservativo e trouxe para Lisboa. Entretanto, recebera uma formação especial dada pelos serviços secretos alemães sobre como escrever com tinta invisível.
         Apesar de os germânicos o mandarem para Inglaterra, Pujol ficou-se por Lisboa. Com base apenas nesta cidade, ludibriava os alemães tentando tudo para parecer que de facto se encontrava em Londres. Os relatórios que elaborava baseavam-se nas conversas que ia tendo com vários refugiados nos cafés da Baixa, especialmente no Chave D’Ouro. Nas livrarias do Chiado ia lendo ou comprando livros sobre Londres para tornar mais verosímeis os seus relatos.  
         Entretanto inventava falsas orgias em bordéis e referia-as como sendo passadas em Londres, contendo informações erróneas sobre movimentos de tropas. A certa altura, os ingleses descobriram a marosca através da decifração que lograram fazer de mensagens trocadas entre serviços das tropas de Hitler. Contrataram-no então, finalmente, para trabalhar para eles como agente duplo. Para os alemães, Pujol tinha-se entretanto tornado um dos seus agentes mais bem-sucedidos, com uma rede de 27 sub-agentes, nenhum dos quais na realidade existia. Ele agia absolutamente sozinho.
         O nosso homem manteve-se operacional durante cerca de três anos. Os seus relatórios eram sempre coloridos e brilhantes, recheados de episódios vivíssimos. O seu êxito foi tão inegável que, no final, se tornou um dos raríssimos agentes a serem condecorados por ambos os lados durante a 2ª Grande Guerra. Em Julho de 1944 foi informado de que Hitler o condecorara com a Cruz de Ferro pelo seu contributo para a causa alemã. Em Dezembro do mesmo ano, Pujol recebeu uma medalha de mérito por parte da Grã-Bretanha.
           Um livro a não perder! Talvez eu volte ao blogue com o assunto de pelo menos mais um capítulo geralmente pouco conhecido entre nós. Além do mais, o que me agrada mais na obra de Neill Lochery é o facto de todas as suas numerosíssimas fontes estarem registadas – os documentos datados dos anos da 2ª Guerra Mundial, incluindo os diários de Salazar, já estão abertos ao público há vários anos.

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