7/24/2012


Educadores natos



Humanidade

O Homem, disse o Diabo,
É bom para os seus semelhantes;
Não se quer emendar, mas antes
Quer emendar os outros.

Piet Hein (Gruks, 1966)

          Creio que dentro de muitos de nós – não direi “toda a gente” para não exagerar - existe um educador e/ou um polícia. É relativamente fácil descortinar este facto quando, por exemplo, se viaja de automóvel e ao nosso lado vai alguém que critica mais ou menos severamente a maneira de conduzir de um automobilista que segue no carro à nossa frente: “Já viste a manobra que aquele indivíduo fez? Ultrapassou com traço contínuo!”, ou “Para que é que ele tocou o cláxon? Não sabe que à noite é proibido usar a buzina? Indivíduos como este deveriam ter de tirar a carta outra vez, voltar a fazer o examezinho da praxe e depois se veria se passavam ou não”, ou ainda “Já viram a mecha com que aquele indivíduo vai? Ninguém respeita os limites de velocidade neste país! Estão as placas bem visíveis na estrada, mas tudo para eles é igual! Era bem feito que aparecesse um polícia ali à frente e o multasse por excesso de velocidade!”

Esta maneira de comentar as alegadas faltas dos outros pressupõe, como é óbvio, que quem assim comenta nunca procederia do mesmo modo. Em vez de poço de víboras que os outros são, verdadeiros inimigos da sociedade, o comentador é um sabichão das dúzias. Na realidade, ele pode ser também um poço, mas de sabedoria e virtude. Se alguém lhe chamar a atenção, o comentador reage de pronto: “Você prefere a incompetência à competência? Você não vê que condutores na estrada como estes são verdadeiros assassinos?”

Serão? Vamos imaginar que o mesmíssimo comentador segue no carro de um velho amigo dos tempos do liceu. Este seu amigo possui uma bela máquina, potente, que dá segurança nas ultrapassagens. Pois a amizade fará com que o indivíduo aplauda o seu amigo pela maneira como ultrapassou “este carro da lama; automobilistas que conduzem a quarenta à hora deviam ser proibidos de andar na estrada!” e mesmo ignore a velocidade que o carro do seu amigo atingiu para que a ultrapassagem fosse segura.

Não é coisa diferente o que frequentemente sucede nos transportes colectivos. Os “comentadores de serviço” preferem neste caso sentar-se nos lugares da frente, de molde a poderem falar com o motorista, ou então seguem de pé perto do homem que vai ao volante: “Ena pá, olha a maneira como arrumam os carros nesta rua! Um autocarro mal pode passar!” Aguarda desde logo um sinal de aprovação do motorista. Se este responde, está perdido: até sair do autocarro, o indivíduo não o vai largar. Vai falar com ele todo o tempo, com isso distraindo-o eventualmente na sua condução. Nisto não pensa ele, no entanto. Ter um indivíduo destes a sarnar um motorista é mais perigoso do que ter o motorista a utilizar um telemóvel enquanto conduz. Se por acaso ocorre um raspão numa viatura estacionada, o comentador põe-se logo do lado do chófer do autocarro:  “O gajo é que teve a culpa: não devia ter deixado o carro parado com a traseira fora do passeio.” Daí passa para a generalidade: “Agora nos exames de condução nem ensinam como se deve arrumar um carro!” E depois ataca mais uma vez o automobilista que estacionou o carro indevidamente: “Mas isto, a bem dizer, nem é preciso ensinar. Deve estar na cabeça de cada um. Já ninguém respeita os outros, depois trama-se!”

Entretanto, quem conhece o trânsito na Turquia ou na Índia chega facilmente à conclusão de que guiar em Portugal até é muito fácil. Os condutores são no geral educados e guiam razoavelmente. Mas como não são muitos os que vão a esses países, “em Portugal guia-se cada vez pior”. A seu favor nesta afirmação, os opinadores contam com o testemunho do vice-presidente do Automóvel Clube da Suécia, que há largos anos veio passar férias a Portugal e foi questionado sobre o que achava da maneira de conduzir dos portugueses. A resposta veio imediata: “Francamente, parece-me que conduzem como ladrões de automóveis.” A comparação com a condução calma na Suécia é evidente.

Na Alemanha, há um grande número de automobilistas que são simultaneamente educadores e polícias. Na cidade de Berlim, por exemplo, com as suas longas e largas avenidas, só se atravessa quando o sinal está verde para os peões. Pode estar a choviscar ou mesmo a chover forte que o alemão não atravessa. Muitos dos estrangeiros, porém, têm uma mentalidade diferente. Se, mesmo ao longe, o automobilista alemão os vê a atravessar com o sinal que para si está verde acelera o mais que pode para lhes dar um correctivo imediato. Confesso que não sei, num caso destes, se o automobilista é considerado culpado, mas estou em crer que não. Afinal, quem infringiu a lei foi o peão e não o condutor da viatura. A não ser que este vá com excesso de velocidade.

Mas deixemos Berlim, onde um português pode estar neste momento prestes a bater o record mundial dos 30 metros ao atravessar uma avenida o mais rapidamente que consegue para não ser atropelado por um daqueles alemães-que-não-perdoam.

Voltemos a Lisboa: “As pessoas hoje não se sabem comportar. Quem é que dá o lugar a esta senhora que traz o bebé ao colo?” pergunta a mulher que vai de pé no autocarro à cunha. É uma senhora já com alguma idade que se levanta. Um cavalheiro levanta-se do seu lugar e diz em voz alta: “Ó minha senhora, sente-se, sente-se, que já não é nova! Eu vou já sair. Dou o lugar àquela senhora com o bebé!” Conseguiu dois em um: para lá de deixar subentendido que a senhora que se tinha levantado era já velhota, ficou com os louros de oferecer o seu lugar. Grande homem!

          A questão do dar ou não dar o lugar persiste, porém, e a conversa estende-se lá para trás: “Vá lá, que mesmo assim houve alguém que se levantou. No outro dia uma senhora com mais de 80 anos foi de pé o tempo todo agarrada a um varão. Eu estava mesmo a ver quando o autocarro dava um solavanco maior e a senhora não se aguentava e caía!” “E você ia sentada?” perguntou-lhe outra passageira. “Fui a primeira a entrar no autocarro. Claro que ia sentada!” “Mas não deu o seu lugar à senhora de 80 anos!” “Nem tinha que dar. Esses lugares são lá mais para a frente. Estão reservados. Eu vinha desde o terminal!” “Ah, já percebi!” “Já percebeu o quê?!” “Já percebi que você é só garganta!” “Garganta é você! Donde é que me conhece? Andou comigo na escola? Nunca a vi lá! Se calhar nem à escola foi!” “Ó sua lambisgoia, veja lá com quem é que se está a meter! Ora esta! Vem uma pessoa sossegada para o autocarro e logo aparecem pessoas desta laia. Era só o que me faltava! Acabou a conversa!” “Acabou a conversa, nada! Então agora a senhora é que manda “Alto e pára o baile”? Só pára quando eu quiser. Por acaso vou sair na próxima, mas não me esqueço de si, sua velhaca!” O autocarro pára e a mulher sai. A passageira alvejada comenta para quem a quer ouvir: “Agora os autocarros estão cheios desta gentinha. Ofendem os outros e depois vão-se embora. Ai que saudades que eu tenho dos tempos da outra senhora. Havia outra educação, não se chamavam nomes.” Saem mais passageiros. A senhora fica a falar sozinha. Ninguém lhe responde. Por hoje o teatro acabou. Amanhã há mais.

7/23/2012

Curto vs. longo prazo


          Se me perguntarem qual é o adjectivo que melhor caracteriza o tempo actual, concretamente neste país em que vivemos, direi que esse adjectivo é “precário”. Dependendo do ponto de vista mas sempre com a mesma conotação, admito que “instável” poderá ser escolhido alternativamente.

É bem conhecida a oposição entre as perspectivas de curto prazo e as de longo prazo. Quem pensa em termos de curto prazo prefere negociatas a negócios, privilegia a ocasião à estratégia à la longue, cultiva uma imagem de rapidez de decisão e odeia a hesitação (“decidir, mesmo que eventualmente não muito bem, é sempre melhor do que não decidir”). Quem pensa assim, toma como sua uma cartilha de mudança constante, adora o poder e surfa a onda que “está a dar”. Tem fraca cultura histórica, na qual aliás não vê grande utilidade, porque o mundo está a alterar-se profundamente, pelo que o mundo dos nossos dias é de tal forma novo e diferente dos anteriores que a propalada experiência das pessoas mais velhas não tem validade maior do que a de um pente para carecas.

Esta é uma forma de olhar o mundo com insistência no “já!” e no “agora!”, tendo possivelmente em mente a reflexão keynesiana de que a longo prazo estamos todos mortos. A vida é para se viver. Instante a instante. Carpe diem! Quem não gosta, que se adapte! Se não o fizer, tanto pior para ele!

Estamos num mundo de desregulação, ou de liberalização, como lhe queiramos chamar. Quem tem unhas é que toca guitarra. Se uns têm mais poder e são ricos é, quase com certeza, porque se adaptaram melhor à mudança. Constituem em certa medida um paralelo ao grupo dos dirigentes da sociedade romana. Fareed Zakaria lembra-nos, em O Futuro da Liberdade, que “enquanto a Grécia deu ao mundo a filosofia, a literatura, a poesia e a arte, Roma deu-nos os pressupostos do governo limitado e o Estado de Direito. O ponto mais frágil da lei de Roma residia no facto de, na prática, não se aplicar à classe dirigente.” Ora, este último ponto é assaz relevante para os tempos de hoje. A desigualdade que resulta da competição ou concorrência liberalizada justificar-se-á inteiramente. Essa desigualdade é apenas o produto de uma melhor adaptação aos tempos, tal como as espécies estudadas por Darwin mostraram que os animais que sobrevivem são aqueles que melhor se adaptam ao ambiente que os rodeia.

Os aspectos éticos que subjazem a comportamentos que seriam antigamente criticáveis, como a colocação de enormes lucros em centros offshore para evitar pagar vultosas parcelas de capital ao Estado, são atirados para debaixo do tapete. Os fracos que os invocam e censuram não têm, infelizmente para eles, unhas para o fazer. É tudo um problema de aptidão e de selecção de pessoas. A oligarquia justifica-se a si mesma. Há fracos e fortes na sociedade. Segundo a cartilha, é justo que sejam os fortes, para bem de todos, a definir as leis.

E que leis? Qual o lugar a atribuir à maioria dos mais fracos? Primeiro, terão que aprender a não “dormir na forma”. Assim produzirão mais. A produção está na base de tudo. Só manduca quem trabuca. Viver à custa dos outros amolece as pessoas. Há, por isso, que lhes criar instabilidade. Não deixar que ganhem raízes. Cada um deverá mostrar o que vale, dia após dia. A produção irá com certeza aumentar. As desigualdades poderão manter-se e até alargar-se, mas esse até acaba por ser um bom sinal. Quem parte e reparte, e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte. Aqui a classe dirigente não é tola. De facto, são uns verdadeiros artistas.

Se entre o forte e o fraco a liberdade oprime e só a lei liberta, importa controlar a lei. Fechar o circuito. Controlar tudo. Quem, entre os juízes, tiver pruridos éticos, deverá ser liminarmente afastado mais tarde ou mais cedo. Preferivelmente, mais cedo. Criar instabilidade entre os juízes é também uma política correcta.

O ideal para um patrão, que é quem manda, consiste na possibilidade de, com responsabilidades mínimas da sua parte, dispor das pessoas que com ele colaboram. Assim, idealmente, uma firma terá um pequeno núcleo duro de empregados fiéis, mas todos os restantes serão angariados segundo as necessidades da firma. A lei deverá permitir-lhe dispensar os empregados que ele achar conveniente e, eventualmente, readmiti-los mais tarde com um salário mais baixo. Se cada um souber que o seu lugar não está garantido, todos trabalharão com muito mais afinco para impressionar bem e manter o posto de trabalho. A precariedade laboral tem as suas vantagens. É possível que daí resulte que um casal de trabalhadores não se sinta com estabilidade suficiente para casar, comprar uma casa – imóvel – e ter filhos, mas isso é um problema de cada um. Se existir uma volumosa bolsa de desempregados, haverá sempre possibilidade de recrutar as pessoas certas a preços competitivos. E, se provar mal, o defeito é dele. Rua!

Há uns largos anos já, criou-se, salvo erro nos Estados Unidos, o just in time, por vezes abreviados para jit. Do ponto de vista da gestão, o just in time justifica-se perfeitamente. Tomemos o caso de uma farmácia, que tem necessidade de possuir um largo stock de medicamentos para atender as sempre inesperadas levas de pessoas que surgem com as mais diversas receitas. Para ter esse largo stock de medicamentos, a farmácia teria de dispor de um espaço enorme e de um substancial fundo de maneio. Tudo se resolve, porém, se usarmos o just in time. Graças a este sistema, o proprietário da farmácia terá no seu estabelecimento apenas umas tantas unidades dos medicamentos mais comummente receitados. Um telefonema ou um e-mail para uma central de compras à qual a farmácia está agregada pode resolver-lhe o problema passadas umas horas, ou eventualmente até menos. Com isto, a existência de um vultoso fundo de maneio torna-se desnecessária e, no estabelecimento, passa a existir mais espaço, por exemplo para vender produtos cosméticos que conferem uma óptima margem de lucro ao proprietário.

E se, em vez de medicamentos, uma firma pudesse aplicar este sistema a muitos dos seus empregados? Colocá-los-ia em stand-by, pagando-lhes um mínimo nos dias em que não fossem necessários, e compensando-os depois com um largo número de horas de trabalho, as que fossem precisas, para resolver casos de urgência ou os chamados “picos” laborais. Não haveria estritamente nenhum vínculo laboral, mas o empregado-precário saberia que poderia eventualmente contar com a firma sempre que houvesse laboração que o exigisse. Just in time.

As novas leis laborais portuguesas caminham neste sentido. A parte leonina cabe cada vez mais ao patronato, que beneficia dos enxames de pessoas em busca de trabalho, quase que a qualquer preço.

Mas não são só as leis laborais que se modificam, como se poderia prever. As mudanças vão igualmente incidir sobre a componente mais essencial ao homem: a habitação. A liberalização das rendas de casa antigas, i.e., os contratos anteriores a 1990, será a próxima grande bomba social a deflagrar. Não só muita gente será despejada por impossibilidade de cumprimento de rendas especulativas, como também a nova lei, aprovada na Assembleia da República apenas pelos partidos que detêm o poder, trará a sua componente forte de precariedade: os novos contratos terão, por norma, a extensão de… dois anos. Mais instabilidade. De dois em dois anos, os senhorios disporão da possibilidade de não renovar os respectivos contratos. O que isto significa em termos de instabilidade é indizível. Compram-se móveis para uma casa, onde ficam bem, que podem não caber na outra para onde as pessoas se vejam obrigadas a mudar. Criam-se hábitos de vizinhança, que podem perder-se totalmente passado o biénio. A regra é: não deixar criar raízes. A instabilidade é uma virtude, a estabilidade um vício. Daí que também o Estado não deva continuar a garantir postos de trabalho a ninguém, salvo a um núcleo duro essencial para dar continuidade a determinadas secções e departamentos.

Esta precariedade lembra-me, e de que maneira, o que vi na Índia. E se não vi noutros países do sudeste asiático foi porque não fui lá. Aí também é possível obrigar um homem a fazer “uma directa” de trabalho, sem se deitar, para ter de manhã pronta uma encomenda para o cliente que parte cedo no dia seguinte. Just in time!

 Esta instabilidade e  a não-criação de raízes passam também para o mundo da natureza florestal. De onde vem mais rapidamente dinheiro: do pinheiro ou do eucalipto? Em termos de rapidez – o tal “já!” e “agora!” – o eucalipto vence sem qualquer dúvida o pinheiro. Ou o sobreiro. Pois o que está na forja (em fase adiantada)? Lembrando o conhecido aforismo que nos diz que “A ignorância e a criatividade, quando no poder, constituem uma mistura explosiva”, a nova legislação prevista vai permitir que áreas inferiores a cinco hectares, mas na prática até dez hectares, incluindo áreas de regadio, sejam facilmente convertidas em eucaliptais. Os lobbies das celuloses rejubilam. O país já está a arder. Preparam-se novas terras para que os eucaliptos possam medrar. Um eucaliptal não é uma floresta, constituída como toda a floresta por ervas, arbustos e árvores. Um eucaliptal tem eucaliptos. Unicamente. Esgota facilmente de toda a água a terra onde é plantado. É essa água, juntamente com o sol e com o solo, que alimenta a árvore e a faz crescer  rapidamente.

Disse há dias na televisão uma habitante da serra algarvia que viu muitos dos seus tradicionais sobreiros serem devorados por chamas assassinas: “Estou triste. Fiquei sem nada. Nem uma árvore tenho para deixar aos meus filhos!”

Este pensamento de deixar árvores para os filhos é exactamente o oposto da política actual. Lucros rápidos, exportações a crescerem e o país a deteriorar-se cada vez mais, comprometendo seriamente o seu futuro. Nem os pinheiros, nem os sobreiros devem poder criar raízes. Instabilidade lucrativa. Criatividade destruidora. O capitalismo no seu melhor!