10/14/2003

Não dão ponto sem nó

Foi muito recentemente empossado um novo membro do governo –o Secretário de Estado das Florestas – lugar que ainda não existia nesta nossa Califórnia da Europa. Porquê falar no assunto? Haverá por acaso quem discorde, face à patente inoperância na vaga de incêndios do passado verão, de que temos necessidade de um serviço coordenado que imponha ordem no florestamento do país, lance princípios aceitáveis de ordenamento florestal e transforme aquilo que foi uma verdadeira ameaça numa gloriosa oportunidade? Decerto que só espíritos muito avessos a concordarem com o que quer que seja se pronunciarão contra a medida. De facto, a criação de uma Secretaria de Estado das Florestas é, em princípio, uma boa solução para o caos reinante.

Em princípio apenas, infelizmente. Porque a ideia de “transformar a ameaça numa oportunidade” não é neste caso uma simples figura de retórica. Trata-se, em boa verdade, de aproveitar a oportunidade para eucaliptizar o país ainda mais. O ponto que foi dado para criar a Secretaria de Estado não ficaria rematado com um nó oportunista se para Secretário de Estado não tivesse sido nomeado um engenheiro agrónomo competente, como a imprensa refere, mas ferrenho eucaliptista. É natural que assim seja: a pessoa em questão está há muitos anos ligada, directa ou indirectamente, à Portucel. Lembra amargamente os casos de ligação do Ministro da Saúde ao grupo Mello e de outros ministros à Banca.

Ora, se há coisas de que Portugal não precisa mais é de plantações de eucaliptos. Dados estatísticos que comparam a evolução das áreas arborizadas com espécies tradicionais, nomeadamente de pinheiro, carvalho e sobreiro com as que possuem eucaliptos mostram um despudorado aumento desta última de há mais de duas décadas para cá. Coincidentemente, o desenvolvimento das fábricas de celulose, sempre ávidas de matéria prima de que o eucalipto é uma importante fonte, acompanha essa evolução. A segunda metade dos anos 70 do século passado marcou o início de um significativo investimento em eucaliptais, o qual se vem prolongando até aos dias de hoje. Já muito foi escrito sobre o assunto, com os Relações Públicas das grandes empresas a tentarem sempre rebater os argumentos que lhes são adversos. Mas haverá argumentos que possam resistir àquilo que é evidente? A desertificação das terras, por exemplo. Quem fica ao pé de eucaliptais a vê-los crescer? À semelhança do que sucede com edifícios urbanos altos que competem uns com os outros em altura – causando ao nível do chão os congestionamentos que se conhecem --, também os eucaliptos competem entre si pelo sol e vão, simultaneamente, desqualificando a terra que lhes serve de sustento. Nenhum animal selvagem pára num eucaliptal: nada ali existe para seu alimento. Quais abutres vegetais, os eucaliptos vão comento tudo à sua volta.

Na realidade, os eucaliptos não formam florestas. Uma floresta tem sempre três elementos: vegetação rasteira, arbustos e árvores. O eucaliptal só tem árvores. Por essa razão só se pode falar de “plantações” de eucaliptos. São árvores de crescimento rápido, como convém ao sistema de capitalismo desenfreado que se está verdadeiramente marimbando para o ambiente. Os terrenos aparecem ao fim de alguns anos esventrados da água que outrora lhes deu riqueza. Formam encostas escalavradas, manchas aberrantes em paisagens que se quereriam verdes, com produção assegurada por muitos anos. O eucalipto é originário da Austrália, onde foi usado para secar pântanos – algo que ele faz muito bem. Destruindo o ambiente, porém, secando poços e “bebendo água em todas as fontes”. Mas que interessa? Anote-se que para 2004 o governo reduziu o orçamento do Ministério do Ambiente em 18 por cento – e isto depois de todos aqueles mediáticos fogos! Governar não para as gerações, mas sim para as eleições – é isso que verdadeiramente conta. Entretanto, dissimular-se-á a questão proclamando nos media com o rosto mais sério do mundo que se faz exactamente o contrário. Já Talleyrand gostava de dizer que “as palavras servem para dissimular o pensamento”. Falar-se-á do eucalipto como essencial para o crescimento do PIB. Desse mesmo PIB de que já alguém disse, correctamente e parodiando o adágio, que “nem só de PIB vive o homem”.

Vamos, pois, esperar mais uma investida consciente nesta Eucaliptolândia. Nos incríveis incêndios de Agosto e Setembro, arderam imensos pinhais, como é habitual; mas arderam também eucaliptos. O problema é que estavam demasiado junto aos pinhais, sem ordenamento. Se estiverem isolados, devidamente separados, não serão os eucaliptais a ser alvo de incêndio, salvo notória distracção. O leitor já reparou nos grandes tufos de eucaliptos que aqui e ali vão flanqueando as auto-estradas? Nesses não houve, naturalmente, incêndios. Também quando os pinhais já forem claramente minoritários, os incêndios diminuirão.

Por este conjunto de motivos tão óbvios, nomear um eucaliptista para a nova Secretaria de Estado é rematar bem o ponto, mas apenas sob a óptica dos grandes interesses. É por isso que os portugueses a casos destes chamam, de maneira irónica e certeira, “não dar ponto sem nó”.

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