11/16/2005

Quem só olha para a Ota, não vê a batota

Se Portugal tem cerca de 15 milhões de fogos para 10,5 milhões de pessoas; se muitos desses fogos estão devolutos (embora se continue a construir abundantemente); se os preços da habitação não baixam apesar do excesso de oferta -- tudo se deve certamente ao facto de o sector da construção civil ser não só muito forte em Portugal como até desmesurado para o país que temos. Ora, quem é forte constitui, obviamente, um grupo de pressão que lhe permite exercer melhor o seu poder. A necessidade de uma ininterrupta série de obras públicas, por um lado, e de novos terrenos para negócios ligados ao sector imobiliário, por outro, são factores que se auto-justificam, segundo os interessados, para manter activo um sector que, dirão, emprega milhares e milhares de trabalhadores (os eternos desvelos sociais do patronato).
Creio que a questão do aeroporto da Ota se enquadra perfeitamente no panorama acima esboçado. A Ota significa, para o sector, o jogar em dois ou três tabuleiros ao mesmo tempo, ganhando em todos. Curiosamente, tanto a TAP como a Portugália, as duas linhas aéreas que mais utilizam os aeroportos em Portugal, já se manifestaram contra o abandono do actual aeroporto da Portela. Uma parte substancial da opinião pública está contra despesismos estatais, numa época de contenção, e não entende a razão do projecto. O Euro-2004, que registou uma afluência de aviões muito superior ao normal, provou à evidência que a Portela está pronta a resistir por muitos e bons anos a partidas e chegadas. Por outro lado, o facto de uma cidade como Lisboa possuir um aeroporto perto do centro representa um trunfo em termos de qualidade. A presente localização é decerto muito mais cómoda para os passageiros do que uma outra que os obrigue a percorrer cerca de 80 quilómetros (ida e volta) em estradas com trânsito intenso.
À luz destes factos, que são dificilmente contestáveis, é legítimo perguntar-se por que razão se insiste tanto na Ota ou, já agora, noutro local qualquer, que pode até localizar-se do outro lado do Tejo? Basicamente porque o sector da construção civil, ele próprio grande financiador dos partidos políticos segundo consta, se encontra neste momento ávido de obras públicas vultosas como esta do novo aeroporto, que necessariamente implicará ainda a construção de novos acessos. Mas, mais importante que tudo, o sector cobiça há muito os valiosíssimos terrenos hoje ocupados pelo aeroporto da Portela.
Lembremo-nos da campanha que, há anos, foi lançada contra o Hospital Júlio de Matos, que ocupa uma vasta área na zona da Avenida do Brasil. Foi repetidamente afirmado por comentaristas, que pareciam estar fazer o jogo do lobby, que uma unidade do tipo do Júlio de Matos possuía uma dimensão que não fazia qualquer sentido nestes novos tempos. O tratamento de doentes mentais fazia-se modernamente em unidades de pequena dimensão, espalhadas por vários locais. A proximidade do aeroporto, dizia-se ainda como argumento, não permitia que os doentes descansassem verdadeiramente. Tanta preocupação com os pacientes fazia enternecer a alma mais empedernida. Na realidade, porém, os amplos espaços do Júlio de Matos eram apenas alvo de elevada cobiça para construção de mais umas torres de luxo. Quanto dinheiro não se poderia fazer ali? Loucos eram os que estavam no hospital, não os cabeças do sector!
Hoje em dia, mantém-se o mesmo argumento do barulho das aeronaves. E em prol das indefesas populações das proximidades que, por acaso, nunca fizeram abaixo-assinados contra esse facto. Sintomaticamente, as novas construções nas imediações do aeroporto prosseguem, apesar do "ruído ensurdecedor" provocado pelos aviões que as sobrevoam. Está a fazer-se, por assim dizer, o cerco ao aeroporto. A área das Galinheiras, a seguir à Ameixoeira, está a ser objecto de um enorme projecto urbanístico. Mais uma vez, surge como interessante que o local fique situado nas proximidades do aeroporto. Arranja-se assim mais um argumento futuro para a poluição sonora causada pelas aeronaves, como se estas tivessem começado a sobrevoar aqueles locais depois de as construções terem sido feitas!
A Ota surge aos meus olhos como um caso típico de exercício de poder por parte de um núcleo que é amplamente sustentado pela banca e por sociedades financeiras. Trata-se de um sector insensível a outros argumentos que não sejam o do lucro, fácil e contínuo. Barulho mais ensurdecedor que o dos aviões é o produzido pelos estafados argumentos da construção civil. Poderei estar enganado, mas estou sinceramente convencido de que a Ota é apenas mais um caso de pura batota. Para culminar, veja-se o caso da linha do Metro prevista para o aeroporto da Portela. Faz algum sentido que, numa altura em que se pensa desactivar o aeroporto, se gastem rios de dinheiro na construção dessa nova linha? Porém, se for para valorizar o imobiliário que vai ser construído na zona, então já fará todo o sentido.

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