Em Espanha, os últimos dias da semana que incluíu o 11 de Março tiveram tudo para ficar memoráveis. Por más e por boas razões. Daquilo que se previa serem apenas mais umas eleições renhidas entre os dois maiores partidos políticos do país emergiu um drama tipicamente espanhol mas também dos tempos modernos, com sangue, lágrimas, raiva e desejo de justiça. As bombas assassinas que fizeram duzentos mortos e estropiaram mais de mil pessoas fizeram saltar para as ruas da capital milhão e meio de cidadãos, numa manifestação inédita pela sua dimensão. Foi uma extraordinária lição de solidariedade, de pesar pelas vítimas e de punho erguido para a luta. Quem participou na manifestação ou a acompanhou apenas através dos écrans não pode deixar de ter ficado impressionado ante aquela vontade enorme expressa pelo povo, com uma garra e uma sede de justiça e verdade difíceis de ultrapassar.
A cerca de 72 horas da realização das eleições, analistas políticos perguntavam-se a quem o ataque terrorista iria beneficiar. Todos concordavam que a afluência às urnas iria aumentar, mas para que lado penderia o acréscimo? Para o partido do governo, que gostaria de continuar os oito anos que já levava de governação, ou para o lado da oposição? O Primeiro Ministro tinha sido fortemente contestado durante o seu último mandato, principalmente por dois motivos: a decisão de alinhar com os Estados Unidos na guerra contra o Iraque e o fiasco na resolução do caso do petroleiro Prestige, ao largo da costa da Galiza. O alinhamento com os Estados Unidos provocara grandiosas manifestações nas maiores cidades espanholas.
A quem se deveria atribuir o atentado terrorista do dia 11? Aos membros da ETA, sugeriu o governo, embora possuísse pistas que indicavam na direcção de um eventual grupo islâmico em retaliação pelo seguidismo espanhol relativamente aos Estados Unidos. Em Espanha, os jornais, a televisão e a rádio – com uma única excepção -- indiciavam a ETA como a pista correcta. Terão sido feitos contactos governamentais para os serviços consulares no estrangeiro acentuando a mesma versão. Foram garantidamente contactados alguns directores de jornais pelo próprio Primeiro-Ministro asseverando que os separatistas bascos eram a pista certa.
Entretanto, serviços noticiosos de outros países, incluindo Portugal, não deixavam de mencionar a vertente islâmica como estando na origem dos ataques bombistas. Aos poucos – mas com impressionante cadência – instalou-se entre muitos espanhóis a hipótese de que o governo estaria a mentir a fim de não ser penalizado pela sua intervenção no Iraque. Mas como foi possível a muitos cidadãos espanhóis captarem uma verdade diferente da governamental?
A derrota do governo nas eleições representou sumariamente a existência de duas componentes: uma, a principal, o espírito democrático demonstrado pelo povo espanhol. A outra, apenas instrumental mas decisiva, foi a tecnologia dos nossos tempos. Graças a contactos estabelecidos entre cidadãos por meio de telemóveis, à tecnologia dos e-mails e da TV por cabo, aquilo que o governo pretendia desesperadamente ocultar até ao momento da deposição dos votos acabou por ser desmascarado.
Como disse o sociólogo catalão Manuel Castells na sua memorável conferência na Gulbenkian no passado mês de Fevereiro, os governos odeiam a Internet. E odeiam da mesma forma os SMS, os e-mails, os blogs e as emissões estrangeiras por cabo. A razão é simples: não conseguem controlá-los. E assim, apesar de, na altura em que na véspera das eleições se realizavam vibrantes manifestações de rua contra a mentira espalhada pelo governo, a TV espanhola ignorar o facto, havia outras cadeias televisivas e uma estação de rádio que registavam tudo. Mensagens de telemóvel terão chovido por toda a Espanha, assim como mensagens por correio electrónico. A disseminação da informação através de meios tecnológicos constituíu uma verdadeira arma democrática. Manuel Castells, que defende que a grande novidade dos nossos tempos consiste na existência de uma “sociedade em rede”, não esperaria a ocorrência de um testemunho assim tão evidente da sua tese, e logo no seu próprio país.
Umas eleições são como que um casamento do povo com os seus futuros governantes. E um casamento faz-se na base da confiança. Quem forma aliança com outrem que não lhe merece crédito e lhe mente descaradamente? Aquela parte do povo espanhol que logrou ser informada a tempo reagiu. De forma útil, os seus votos passaram para a oposição.
Todo este desenlace, com a modernidade que as tecnologias lhe emprestam, lembra um certeiro axioma dos “anarcas”: “O pior que se pode dizer de um chefe é a verdade!”
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