Expliquem-me por que razão os muçulmanos que na Arábia Saudita atacam estrangeiros ligados a interesses petrolíferos são rotulados de terroristas enquanto os americanos que matam ou deixam mutilados dezenas de civis e destroem inúmeras casas no Iraque são apenas intervenientes em meras ocorrências de guerra -- aliás não declarada pelo país atacado. Expliquem-me por que motivo os bombistas-suicida palestinianos são terroristas e os pilotos de aviões israelitas que disparam indiscriminadamente sobre a população da faixa de Gaza são vistos como cumprindo apenas o seu dever.
"Não sou ateniense nem grego, sou cidadão do mundo", dizia Sócrates. Isso ainda quererá dizer alguma coisa, ou será que no mundo só os nossos são os bons e todos os outros são os maus?
5/31/2004
5/30/2004
Bolos e Tolos
Muitos dos estrangeiros que vêm a Portugal e vêem registado nos menus dos restaurantes o pudim Molotof acham o nome engraçado. "Terá a ver com os cocktails Molotov que os rebeldes dos países de leste atiravam para dentro dos tanques russos?"
"É um pudim muito bom, doce, bastante popular em Portugal, mas não tem nada a ver com isso", explica solícito o empregado do restaurante.
Na realidade ele está enganado e são os turistas que estão certos na sua hipótese. O pudim Molotof entrou em Portugal no ano do 25 de Abril. Sob a influência das coisas russas, o nome original do pudim, que era Malakof, foi transformado num outro bem mais revolucionário. Neste sentido, ele é o doce mais explosivo que temos em Portugal.
A terminologia da guloseima esconde por vezes histórias curiosas. Um grande número de doces hoje característicos dos países católicos provieram dos conventos, onde as pobres monjas, proibidas de fazer sexo pelos seus votos de castidade, se desforravam nos bolos e em tudo o que possuísse mel ou açúcar como ingredientes. Os monges e os frades, pelo seu lado, confeccionavam óptimos licores, de onde sobressai em Portugal o popular licor de ginja -- a ginjinha. A que reproduz a da Abadia de Alcobaça é a mais famosa exactamente por esse motivo.
Os pastéis de Belém foram o produto de uma receita que os monges do Mosteiro dos Jerónimos, com sérias dificuldades materiais no século XIX, inventaram para poderem realizar algum dinheiro. A Casa dos Pastéis de Belém, perto do Mosteiro, considera-se a fiel depositária da monástica receita.
Tenho para mim que uns outros bolinhos famosos neste país também têm a sua ligação a uma história, desta vez real, i.e. ligada à realeza. Sucede que, no Portugal da segunda metade do século XVII, o rei Afonso VI teve alguns problemas com a bela princesa prima de Luís XIV com quem casara. Afectado anteriormente por uma meningite que o tinha incapacitado sexualmente, o pobre rei viu a sua amada mulher pedir a anulação do casamento para que pudesse desposar um outro homem: nem mais nem menos do que Pedro, o irmão do seu marido. Diz a lenda que, para o sossegar na imensa dor que o fez desgastar durante nove longos anos o mosaico do quarto-prisão no Palácio de Sintra, a sua ex-mulher, Rainha Maria Francisca de Sabóia, terá criado uns saborosos bolos a ele dedicados. O nome ? Palitos de la Reine.
A associação da família real portuguesa a bolos não se fina aqui. Na realidade, um bolo ainda popular nos dias de hoje está ligado a uma outra rainha portuguesa do mesmo século XVII. A pobre Catarina de Bragança, filha do mui ilustre Rei D. João IV e irmã do mencionado Afonso VI acima mencionado, serviu a causa portuguesa ao desposar o rei de Inglaterra, país que iria garantir protecção militar a Portugal depois da restauração da independência de 1640. Ao casar com Carlos II de Inglaterra, que lhe fez a vida negra com as muitas amantes por quem a trocou em parte por ela própria não poder ter filhos, Catarina penou muito por aquelas terras. Terras onde, aliás, terá introduzido o chá, as torradas e o tabaco. Na Inglaterra, chamam-lhe por este motivo a rainha dos três t's: Tea, tobacco, and toast. Tudo coisas agradáveis de meter na boca.
Ora quando o rei seu marido morreu, exausto de tanta patifaria sexual e fartas comezainas, a pobre Catarina regressou a Lisboa. Na sua bagagem, trazia largas quantidades de coisas inglesas, como catálogos de mobiliário e receitas. Justamente em homenagem a esta sua rainha, os portugueses criaram um bolo que, sendo no seu nome a corruptela da palavra inglesa cake, usa a massa inglesa e tem, muito apropriadamente, uma coroa real a toda a volta: o queque.
"É um pudim muito bom, doce, bastante popular em Portugal, mas não tem nada a ver com isso", explica solícito o empregado do restaurante.
Na realidade ele está enganado e são os turistas que estão certos na sua hipótese. O pudim Molotof entrou em Portugal no ano do 25 de Abril. Sob a influência das coisas russas, o nome original do pudim, que era Malakof, foi transformado num outro bem mais revolucionário. Neste sentido, ele é o doce mais explosivo que temos em Portugal.
A terminologia da guloseima esconde por vezes histórias curiosas. Um grande número de doces hoje característicos dos países católicos provieram dos conventos, onde as pobres monjas, proibidas de fazer sexo pelos seus votos de castidade, se desforravam nos bolos e em tudo o que possuísse mel ou açúcar como ingredientes. Os monges e os frades, pelo seu lado, confeccionavam óptimos licores, de onde sobressai em Portugal o popular licor de ginja -- a ginjinha. A que reproduz a da Abadia de Alcobaça é a mais famosa exactamente por esse motivo.
Os pastéis de Belém foram o produto de uma receita que os monges do Mosteiro dos Jerónimos, com sérias dificuldades materiais no século XIX, inventaram para poderem realizar algum dinheiro. A Casa dos Pastéis de Belém, perto do Mosteiro, considera-se a fiel depositária da monástica receita.
Tenho para mim que uns outros bolinhos famosos neste país também têm a sua ligação a uma história, desta vez real, i.e. ligada à realeza. Sucede que, no Portugal da segunda metade do século XVII, o rei Afonso VI teve alguns problemas com a bela princesa prima de Luís XIV com quem casara. Afectado anteriormente por uma meningite que o tinha incapacitado sexualmente, o pobre rei viu a sua amada mulher pedir a anulação do casamento para que pudesse desposar um outro homem: nem mais nem menos do que Pedro, o irmão do seu marido. Diz a lenda que, para o sossegar na imensa dor que o fez desgastar durante nove longos anos o mosaico do quarto-prisão no Palácio de Sintra, a sua ex-mulher, Rainha Maria Francisca de Sabóia, terá criado uns saborosos bolos a ele dedicados. O nome ? Palitos de la Reine.
A associação da família real portuguesa a bolos não se fina aqui. Na realidade, um bolo ainda popular nos dias de hoje está ligado a uma outra rainha portuguesa do mesmo século XVII. A pobre Catarina de Bragança, filha do mui ilustre Rei D. João IV e irmã do mencionado Afonso VI acima mencionado, serviu a causa portuguesa ao desposar o rei de Inglaterra, país que iria garantir protecção militar a Portugal depois da restauração da independência de 1640. Ao casar com Carlos II de Inglaterra, que lhe fez a vida negra com as muitas amantes por quem a trocou em parte por ela própria não poder ter filhos, Catarina penou muito por aquelas terras. Terras onde, aliás, terá introduzido o chá, as torradas e o tabaco. Na Inglaterra, chamam-lhe por este motivo a rainha dos três t's: Tea, tobacco, and toast. Tudo coisas agradáveis de meter na boca.
Ora quando o rei seu marido morreu, exausto de tanta patifaria sexual e fartas comezainas, a pobre Catarina regressou a Lisboa. Na sua bagagem, trazia largas quantidades de coisas inglesas, como catálogos de mobiliário e receitas. Justamente em homenagem a esta sua rainha, os portugueses criaram um bolo que, sendo no seu nome a corruptela da palavra inglesa cake, usa a massa inglesa e tem, muito apropriadamente, uma coroa real a toda a volta: o queque.
5/29/2004
5/24/2004
Azul e rosa
A maior parte das pessoas continuam a admitir que a sociedade em que vivemos é tipicamente machista. Sê-lo-á ainda, porventura, mas é um facto que muito da hegemonia masculina já se perdeu. Antigamente era muito mais declarada.
Esta história remonta ao tempo das cruzadas, há cerca de 900 anos. Nessa altura, os cruzados europeus pretendiam retirar das mãos dos infiéis o Santo Sepulcro de Jesus Cristo, na Terra Santa. Para o efeito, organizaram várias expedições em nome da cruz onde Cristo dera a sua vida para salvar o mundo. Essas expedições, em que tomaram parte alguns monarcas como o famoso inglês Ricardo, Coração de Leão, foram denominadas ?cruzadas? e tiveram um forte impacto pelo contacto efectuado entre a Europa e o Médio Oriente.
Na Europa, se a figura de Cristo era importante nesse tempo, a de sua mãe ganhou uma notoriedade excepcional -- certamente não tanto como mulher mas sim como geradora e mãe de Jesus. O número de catedrais construídas em nome de Nossa Senhora, também chamada de Santa Maria, foi enorme por toda a Europa. A maior parte delas existem ainda hoje. Chamamos-lhe com alguma propriedade "os arranha-céus do passado", com as suas torres altíssimas, num estilo que depois foi apelidado de gótico. Notre-Dame de Paris e Santa Maria de Lisboa (a Sé) são apenas duas dessas catedrais. A nova arquitectura só foi possível graças aos conhecimentos de matemática e geometria que os europeus adquiriram das civilizações muçulmanas do Médio Oriente.
Nesses majestosos edifícios, que permitiam paredes mais finas do que as românicas e consentiam a abertura de largas janelas, inviáveis na técnica anterior, sobressaíam os vitrais, em que naturalmente a figura de Nossa Senhora era frequentemente representada. A cor que lhe atribuiam era invariavelmente a do céu: o azul. O famoso "azul de Chartres" é inultrapassável.
Foi então que ocorreu aos mentores das cruzadas honrar com a cor de Nossa Senhora os rapazes que nasciam: eles seriam os futuros braços que iriam defender para todo o sempre o Santo Sepulcro. Daí nasce a tradição de vestir os rapazes de azul, que se mantém até aos dias de hoje.
Perguntar-se-á: e qual foi a cor que deram às raparigas? Numa sociedade predominantemente masculina, não houve então qualquer preocupação em conferir uma cor específica às raparigas. Só muito mais tarde, no século XIX, na implementação dos três princípios básicos da Revolução Francesa -- Liberdade, Igualdade e Fraternidade -- é que a igualdade entre os dois sexos foi pela primeira vez alvo de manifestações públicas. E se os rapazes tinham a cor azul quando nasciam, que cor se deveria dar às raparigas? Escolheu-se uma cor nobre, a dos palácios reais e da nobreza da altura: o rosa. E assim ficou até hoje. Cor-de-rosa para as raparigas, azulinho para os rapazes.
Esta história remonta ao tempo das cruzadas, há cerca de 900 anos. Nessa altura, os cruzados europeus pretendiam retirar das mãos dos infiéis o Santo Sepulcro de Jesus Cristo, na Terra Santa. Para o efeito, organizaram várias expedições em nome da cruz onde Cristo dera a sua vida para salvar o mundo. Essas expedições, em que tomaram parte alguns monarcas como o famoso inglês Ricardo, Coração de Leão, foram denominadas ?cruzadas? e tiveram um forte impacto pelo contacto efectuado entre a Europa e o Médio Oriente.
Na Europa, se a figura de Cristo era importante nesse tempo, a de sua mãe ganhou uma notoriedade excepcional -- certamente não tanto como mulher mas sim como geradora e mãe de Jesus. O número de catedrais construídas em nome de Nossa Senhora, também chamada de Santa Maria, foi enorme por toda a Europa. A maior parte delas existem ainda hoje. Chamamos-lhe com alguma propriedade "os arranha-céus do passado", com as suas torres altíssimas, num estilo que depois foi apelidado de gótico. Notre-Dame de Paris e Santa Maria de Lisboa (a Sé) são apenas duas dessas catedrais. A nova arquitectura só foi possível graças aos conhecimentos de matemática e geometria que os europeus adquiriram das civilizações muçulmanas do Médio Oriente.
Nesses majestosos edifícios, que permitiam paredes mais finas do que as românicas e consentiam a abertura de largas janelas, inviáveis na técnica anterior, sobressaíam os vitrais, em que naturalmente a figura de Nossa Senhora era frequentemente representada. A cor que lhe atribuiam era invariavelmente a do céu: o azul. O famoso "azul de Chartres" é inultrapassável.
Foi então que ocorreu aos mentores das cruzadas honrar com a cor de Nossa Senhora os rapazes que nasciam: eles seriam os futuros braços que iriam defender para todo o sempre o Santo Sepulcro. Daí nasce a tradição de vestir os rapazes de azul, que se mantém até aos dias de hoje.
Perguntar-se-á: e qual foi a cor que deram às raparigas? Numa sociedade predominantemente masculina, não houve então qualquer preocupação em conferir uma cor específica às raparigas. Só muito mais tarde, no século XIX, na implementação dos três princípios básicos da Revolução Francesa -- Liberdade, Igualdade e Fraternidade -- é que a igualdade entre os dois sexos foi pela primeira vez alvo de manifestações públicas. E se os rapazes tinham a cor azul quando nasciam, que cor se deveria dar às raparigas? Escolheu-se uma cor nobre, a dos palácios reais e da nobreza da altura: o rosa. E assim ficou até hoje. Cor-de-rosa para as raparigas, azulinho para os rapazes.
5/23/2004
Falas de bichos
Os portugueses são muitas vezes apodados de melancólicos, tristes e sentimentais, e existirá porventura uma certa razão para este tipo de rotulagem. A roupa que o português médio usa não é também muito garrida, embora tenha havido nas últimas décadas uma considerável evolução neste domínio. Contudo, algo que os estrangeiros que nos visitam não podem negar é que um dos símbolos mais marcantes do país possui cores bem vivas: o galo de Barcelos. É só olhar e ver!
O que os visitantes não suspeitam é que o galo português canta de maneira bem diferente dos galos dos seus países. Ainda me terão de explicar bem um dia por que motivo o galarote lusitano se espevita todo com um cócórócócó, assim mesmo com os ós todos bem abertos, e o galo húngaro, por exemplo, se fecha num kukuriku. O galo francês fica a meio-termo: côcôricô. O inglês, como é hábito, diverge de todos e assalta-nos com um shakesperiano cock-a-doodle-do!
Como é evidente, os animais não fazem objectivamente sons diferentes num país ou noutro, mas o ouvido humano e a associação dos sons a palavras existentes na língua condicionam a forma como o bicho-homem reproduz o som emitido pelos outros bichinhos do universo.
O perú é outro dos casos. Um perú de boa cepa lusa cantará sempre da mesma forma: glu-glu! Do outro lado do Canal da Mancha os perús têm um som mais aberto: gobble-gobble. Já tentei a experiência com perús portugueses; cantei-lhes gobble-gobble e eles retorquiram-me imediatamente com o seu incontornável glu-glu. Donde se prova que mesmo neste reino há capacidade de entendimento entre as duas populações.
E os cães portugueses? À boa maneira do som nasalado dos sinos lusitanos com o seu tlin, tlão, os cães ladram ão-ão, mas só se forem grandes; béu-béu se forem pequenos. Não se espere imitação por parte dos congéneres britânicos -- imitação é apenas própria dos macacos. Assim, o cãozarrão inglês ou americano limitar-se-á a ladrar arf! arf!, sem qualquer conotação nasal, e o cãozito pequenote reduzir-se-á ao seu wau! wau!
Os exemplos não faltam: o carneirinho português entrega-se, deliciado, ao seu mé!... mé! ..., enquanto o britânico lança um angustiado bah! A vaca e o boi portugueses voltam à nasalação que já encontrámos atrás: mãããããã! O gato é que soa muito igual de ambos os lados do Canal: mewau (miau). Mesmo assim, entre nós reage ao chamamento de bch, bch, bch, que gatos britânicos habituados ao pussy pussy! no mínimo estranhariam.
O que os visitantes não suspeitam é que o galo português canta de maneira bem diferente dos galos dos seus países. Ainda me terão de explicar bem um dia por que motivo o galarote lusitano se espevita todo com um cócórócócó, assim mesmo com os ós todos bem abertos, e o galo húngaro, por exemplo, se fecha num kukuriku. O galo francês fica a meio-termo: côcôricô. O inglês, como é hábito, diverge de todos e assalta-nos com um shakesperiano cock-a-doodle-do!
Como é evidente, os animais não fazem objectivamente sons diferentes num país ou noutro, mas o ouvido humano e a associação dos sons a palavras existentes na língua condicionam a forma como o bicho-homem reproduz o som emitido pelos outros bichinhos do universo.
O perú é outro dos casos. Um perú de boa cepa lusa cantará sempre da mesma forma: glu-glu! Do outro lado do Canal da Mancha os perús têm um som mais aberto: gobble-gobble. Já tentei a experiência com perús portugueses; cantei-lhes gobble-gobble e eles retorquiram-me imediatamente com o seu incontornável glu-glu. Donde se prova que mesmo neste reino há capacidade de entendimento entre as duas populações.
E os cães portugueses? À boa maneira do som nasalado dos sinos lusitanos com o seu tlin, tlão, os cães ladram ão-ão, mas só se forem grandes; béu-béu se forem pequenos. Não se espere imitação por parte dos congéneres britânicos -- imitação é apenas própria dos macacos. Assim, o cãozarrão inglês ou americano limitar-se-á a ladrar arf! arf!, sem qualquer conotação nasal, e o cãozito pequenote reduzir-se-á ao seu wau! wau!
Os exemplos não faltam: o carneirinho português entrega-se, deliciado, ao seu mé!... mé! ..., enquanto o britânico lança um angustiado bah! A vaca e o boi portugueses voltam à nasalação que já encontrámos atrás: mãããããã! O gato é que soa muito igual de ambos os lados do Canal: mewau (miau). Mesmo assim, entre nós reage ao chamamento de bch, bch, bch, que gatos britânicos habituados ao pussy pussy! no mínimo estranhariam.
5/20/2004
Voltou hoje à Assembleia da República, para votação, a regulamentação do Código do Trabalho . Nos media torna a falar-se do episódio da falta de quorum ocorrido na semana passada. O presidente do grupo parlamentar do PSD toma medidas para que a situação não se repita. Entrevistam, mesmo, alguns dos deputados faltosos. E o que se ouve? Que tinham razões para ter faltado. Um porque tinha gravação de uma entrevista na SIC (nem era um directo, note-se!), outros porque tinham que participar em reuniões do partido, pelos vistos mais importantes, marcadas em dia e hora a que deveriam estar na Assembleia.
Na semana passada um outro deputado desta nossa Nação, dizia, muito simplesmente, aos microfones, para quem o quis ouvir, que não estava nada preocupado com a ida ao final da Liga dos Campeões: se não quisessem justificar-lhe a falta como serviço de representação da nação, não havia problema, pois não tendo ainda esgotado o plafond para faltas em trabalho exterior, ou mesmo por doença, poderia justificá-la com uma destas razões.
Se bem entendi o que ouvi (e às vezes tenho dúvidas?), fazer a gravação de uma entrevista, ter reuniões do partido (apesar do partido saber que se ia votar, naquele dia, àquela hora, uma importantíssima lei), ir ao futebol (em representação do país, naturalmente) são razões aceitáveis para que um deputado falte ao seu trabalho e, se preciso for, alegue que faltou por doença, mesmo que as televisões o tenham mostrado na bancada de um estádio. Razões que provavelmente já entraram no domínio da banalidade, uma vez que não se levantaram vozes de protesto.
Pergunto-me, e pergunto: quantas mais razões de tamanho peso terão os nossos deputados para faltar à missão de nos representar? É assim que é utilizado o voto que teimo em deixar religiosamente nas urnas, cada vez que mo pedem?
Não vou deixar de votar. Mas faço questão de exigir mais rigor a quem usa o meu voto.
Na semana passada um outro deputado desta nossa Nação, dizia, muito simplesmente, aos microfones, para quem o quis ouvir, que não estava nada preocupado com a ida ao final da Liga dos Campeões: se não quisessem justificar-lhe a falta como serviço de representação da nação, não havia problema, pois não tendo ainda esgotado o plafond para faltas em trabalho exterior, ou mesmo por doença, poderia justificá-la com uma destas razões.
Se bem entendi o que ouvi (e às vezes tenho dúvidas?), fazer a gravação de uma entrevista, ter reuniões do partido (apesar do partido saber que se ia votar, naquele dia, àquela hora, uma importantíssima lei), ir ao futebol (em representação do país, naturalmente) são razões aceitáveis para que um deputado falte ao seu trabalho e, se preciso for, alegue que faltou por doença, mesmo que as televisões o tenham mostrado na bancada de um estádio. Razões que provavelmente já entraram no domínio da banalidade, uma vez que não se levantaram vozes de protesto.
Pergunto-me, e pergunto: quantas mais razões de tamanho peso terão os nossos deputados para faltar à missão de nos representar? É assim que é utilizado o voto que teimo em deixar religiosamente nas urnas, cada vez que mo pedem?
Não vou deixar de votar. Mas faço questão de exigir mais rigor a quem usa o meu voto.
5/19/2004
Duas religiões, duas culturas
Um dos meus grandes choques culturais deu-se em Rabat. De visita a Marrocos com a família, depararam-se-me as espectaculares ruínas da mesquita que foi outrora a maior do mundo islâmico, com as suas 365 colunas e o seu imponente minarete. A mesquita fora construída à beira do Atlântico, onde a terra acaba e o mar começa, lá no Algarve=Ocidente marroquino. Ela marcava a última fronteira a oeste de uma religião que se tinha expandido extraordinariamente desde a sua génese no Médio Oriente no século VII da era cristã.
O choque cultural que recebi deu-se ao ser informado que aquela fabulosa mesquita, decerto grande orgulho de todo o Islão, tinha sido destruída pelo tremor de terra de 1 de Novembro de 1755. Na minha educação, falaram-me repetidamente desse terramoto e referiram-me com ênfase a enorme destruição que ele causou na capital do país, Lisboa.
Múltiplas histórias circunstanciadas que vêm registadas em livros descrevem a terrível catástrofe que desabou sobre a cidade de Lisboa, o tsunami que a acompanhou e o desfile de caos e de miséria que ambos deixaram no seu rasto. Lamenta-se os mosteiros, os conventos, as igrejas e os palácios destruídos. Fala-se de vales abertos na cidade, estima-se o número dos mortos e dos feridos. Especula-se sobre as razões que terão levado a mão de Deus a abater-se sobre uma cidade aparentemente tão pia.
E, no meio de tudo, nem uma palavra sobre a Grande Mesquita de Rabat. Era o mouro. Para os cristãos, os outros não contam, ou contam muito pouco. Em Lisboa, nem uma mesquita moura sobreviveu até aos dias de hoje. E várias havia, naturalmente. A Sé da cidade, por exemplo, foi construída no local da Grande Mesquita. O Colégio dos Jesuítas no local de uma outra mesquita.
Esta posição dos cristãos, contrária à sua doutrina escrita, contrasta com muito da prática islâmica. Não posso deixar de pensar numa das maravilhas do mundo que é a Hagia Sofia, em Istambul. Construída pelos cristãos do Império Romano do Oriente no século VI, essa grande beleza arquitectónica conseguiu resistir até hoje, apesar de ter sido englobada no mundo islâmico com a queda de Constantinopla. Que lição! Que enorme diferença entre esse comportamento e o dos cristãos! Neste últimos, que esmagador abismo entre as palavras e os actos!
O choque cultural que recebi deu-se ao ser informado que aquela fabulosa mesquita, decerto grande orgulho de todo o Islão, tinha sido destruída pelo tremor de terra de 1 de Novembro de 1755. Na minha educação, falaram-me repetidamente desse terramoto e referiram-me com ênfase a enorme destruição que ele causou na capital do país, Lisboa.
Múltiplas histórias circunstanciadas que vêm registadas em livros descrevem a terrível catástrofe que desabou sobre a cidade de Lisboa, o tsunami que a acompanhou e o desfile de caos e de miséria que ambos deixaram no seu rasto. Lamenta-se os mosteiros, os conventos, as igrejas e os palácios destruídos. Fala-se de vales abertos na cidade, estima-se o número dos mortos e dos feridos. Especula-se sobre as razões que terão levado a mão de Deus a abater-se sobre uma cidade aparentemente tão pia.
E, no meio de tudo, nem uma palavra sobre a Grande Mesquita de Rabat. Era o mouro. Para os cristãos, os outros não contam, ou contam muito pouco. Em Lisboa, nem uma mesquita moura sobreviveu até aos dias de hoje. E várias havia, naturalmente. A Sé da cidade, por exemplo, foi construída no local da Grande Mesquita. O Colégio dos Jesuítas no local de uma outra mesquita.
Esta posição dos cristãos, contrária à sua doutrina escrita, contrasta com muito da prática islâmica. Não posso deixar de pensar numa das maravilhas do mundo que é a Hagia Sofia, em Istambul. Construída pelos cristãos do Império Romano do Oriente no século VI, essa grande beleza arquitectónica conseguiu resistir até hoje, apesar de ter sido englobada no mundo islâmico com a queda de Constantinopla. Que lição! Que enorme diferença entre esse comportamento e o dos cristãos! Neste últimos, que esmagador abismo entre as palavras e os actos!
5/13/2004
5/09/2004
Interrogatórios
Somos informados que métodos de tortura afins dos utilizados pela extinta PIDE são usados em Guantanamo e no Iraque pelos campeões da democracia: os Estados Unidos. A sigla PIDE terá ganho novo significado: Práticas Internacionais de Democracia Evoluída.
Pergunte-se aos muitos torturados pela antiga polícia política portuguesa se concordam.
Pergunte-se aos muitos torturados pela antiga polícia política portuguesa se concordam.
Gestores
Os grandes ordenados dos gestores públicos representam a paga dos seus conhecimentos técnicos, a que acresce o elevado preço por que vendem a sua consciência ética.
5/08/2004
Guerra e paz
De há uns anos para cá vejo muito pouca televisão. Mesmo o telejornal da noite é ouvido entre a necessidade de estar informada e a vontade de desligar. Porém, o que vi há umas semanas, aquando da morte do segundo líder do palestiniano Hamas, incomodou-me sobremaneira; foi como que a gota de água que fez transbordar o copo da minha indiferença face à banalização da violência entre os Homens.
Refiro-me às imagens do cortejo fúnebre do líder palestiniano, tapado com a bandeira verde e branca, rosto descoberto, acompanhado por uma multidão de palestinianos ululante. Impressionante manifestação de desespero, de ódio visceral, de força! A ânsia com que todos, crianças incluídas, tentavam fazer uma festa no rosto do seu herói morto mostra bem que Israel pode esgotar o seu arsenal bélico, que só vai acabar com o Hamas quando acabar com o último palestiniano.
Dizer que o conflito israelo-palestiniano é velho de séculos, eventualmente insolúvel, que o povo israelita tem sobrevivido sempre à custa de luta, que enquanto tiver o apoio americano nada muda, é dizer lugares-comuns, infelizmente. Importa-me, isso sim, perguntar aonde leva tamanha irracionalidade. Que se espera obter semeando, de ambos os lados, tanto ódio? Até quando se vai continuar a ver quem mais mata?
Imediatamente a seguir ao atentado de 11 de Março em Madrid, o Dr. Soares disse que era preciso negoaciar. Na opinião pública caiu o Carmo e a Trindade: negociar com terroristas nunca!
Orgulho vão, velha sobranceria ocidental, a nossa! Que eu saiba, só existem duas saídas para acabar com uma contenda: ou um contendor elimina o outro, ou há negociação. Olhando para os exemplos que a História nos dá, para tantos tratados de paz que foram firmados (e sem alguns dos quais possivelmente não estaríamos hoje aqui), parece-me legítimo concluir que negociação não é necessariamente sinónimo de cedência a chantagens, posição de fraqueza ou subalternidade.
Onde houver conflito há que negociar, sim, e já, porque não há outra saída. Ou estamos todos à espera a ver uma parte acabar com a outra?
Refiro-me às imagens do cortejo fúnebre do líder palestiniano, tapado com a bandeira verde e branca, rosto descoberto, acompanhado por uma multidão de palestinianos ululante. Impressionante manifestação de desespero, de ódio visceral, de força! A ânsia com que todos, crianças incluídas, tentavam fazer uma festa no rosto do seu herói morto mostra bem que Israel pode esgotar o seu arsenal bélico, que só vai acabar com o Hamas quando acabar com o último palestiniano.
Dizer que o conflito israelo-palestiniano é velho de séculos, eventualmente insolúvel, que o povo israelita tem sobrevivido sempre à custa de luta, que enquanto tiver o apoio americano nada muda, é dizer lugares-comuns, infelizmente. Importa-me, isso sim, perguntar aonde leva tamanha irracionalidade. Que se espera obter semeando, de ambos os lados, tanto ódio? Até quando se vai continuar a ver quem mais mata?
Imediatamente a seguir ao atentado de 11 de Março em Madrid, o Dr. Soares disse que era preciso negoaciar. Na opinião pública caiu o Carmo e a Trindade: negociar com terroristas nunca!
Orgulho vão, velha sobranceria ocidental, a nossa! Que eu saiba, só existem duas saídas para acabar com uma contenda: ou um contendor elimina o outro, ou há negociação. Olhando para os exemplos que a História nos dá, para tantos tratados de paz que foram firmados (e sem alguns dos quais possivelmente não estaríamos hoje aqui), parece-me legítimo concluir que negociação não é necessariamente sinónimo de cedência a chantagens, posição de fraqueza ou subalternidade.
Onde houver conflito há que negociar, sim, e já, porque não há outra saída. Ou estamos todos à espera a ver uma parte acabar com a outra?
5/06/2004
5/03/2004
Investimento Estrangeiro e Deslocalização de Empresas
Sob o ponto de vista económico e financeiro, o mundo tem mudado substancialmente nos últimos anos. Muito embora empresas multinacionais existam já há mais tempo, foi principalmente desde o desmantelamento da União Soviética em 1991 que se acentuaram os investimentos feitos por empresas de nações ricas em países mais pobres, onde a mão-de-obra é mais barata, a protecção social aos trabalhadores menor e as leis laborais são mais flexíveis. Numa palavra, poderá dizer-se, com a naturalidade que uma visão estritamente economicista dos negócios deixa pressupor, que as empresas procuram locais onde os seus custos de produção ou laboração sejam menores para assim verem aumentados os seus lucros.
E como reagem os governos dos países onde é efectuado esse investimento provindo do estrangeiro? Como seria de prever, os governos sopesam os prós e os contras, mas na esmagadora maioria dos casos mostram-se abertos a esse tipo de investimento por várias razões, de entre as quais sobressaem as seguintes:
1. Ao criarem postos de trabalho, as empresas estrangeiras estão a proporcionar maior poder de compra aos nacionais que nelas trabalham. Este facto traduz-se na possibilidade acrescida de esses nacionais satisfazerem alguns dos seus anseios de melhoria material e social, o que é importante para a reeleição dos governantes.
2. Mais pessoas a laborarem significa para os governos a existência de maior receita tanto em impostos directos sobre o rendimento como em impostos indirectos sobre as aquisições que elas efectuam.
3. Um número maior de pessoas a laborar traduz-se, pelo menos em princípio, em maiores descontos para a Segurança Social, o que contribui para o bem comum.
4. Em termos de imagem, os países ganham maior prestígio através da confiança internacional que o capital estrangeiro demonstra ao efectuar investimentos no seu território.
E, perguntar-se-á, não existe o reverso da medalha? Todos sabemos que não há almoços grátis, portanto ...
Algo paradoxalmente, essas mesmas empresas multinacionais que criam postos de trabalho são em larga medida responsáveis pela actual situação de desemprego em vários países, entre os quais Portugal, mas também a Alemanha e igualmente os Estados Unidos. O caso de Portugal, diga-se, não é muito semelhante ao dos Estados Unidos ou ao da Alemanha, sendo mais similar ao da Grécia ou da Espanha.
Presentemente, a empresa alemã Siemens, que é o terceiro maior grupo industrial europeu, pensa em deslocalizar várias das suas fábricas e também alguns dos seus serviços. Em todo o mundo, a Siemens emprega um total de 417 mil trabalhadores. A fim de aumentar a sua produtividade, a companhia pretende reduzir operações naqueles locais em que cerca de 40 por cento dos seus trabalhadores representam pouco mais de 20 por cento do volume total de negócios. Por exemplo, no sector dos telefones móveis a Siemens está a encarar a possibilidade de se mudar para a Hungria – onde os custos de trabalho são 30 por cento inferiores aos da Alemanha --, enquanto no que respeita aos telefones fixos o alvo em mira da sua deslocalização é a China. Estas medidas podem representar no imediato a perda de 2500 empregos na Alemanha, mas não é impossível que esse número acabe por ascender a 10 mil.
A Siemens não está sozinha nesta sua intenção. De facto, se o seu Conselho de Administração decidiu tomar estas medidas é porque muitas outras empresas germânicas e de outros países o fizeram anteriormente, pelo que os seus produtos estão a ficar menos competitivos. De acordo com um estudo recente, cerca de 10 mil empresas alemãs tencionam transferir a sua produção para o estrangeiro até 2006, o que implicará a perda de aproximadamente 50 mil postos de trabalho na própria Alemanha. No geral, as grandes empresas encaminham-se para a China, enquanto as de dimensão mais reduzida encaram como mais provável a mudança para a Europa de Leste, nomeadamente para os países que vão ser alvo do próximo alargamento da União Europeia.
E porquê concretamente estes países? Às razões apontadas atrás, de redução de custos, soma-se uma outra de não pequena monta. Os países menos desenvolvidos da União Europeia – receptores de investimento estrangeiro -- são elegíveis para a canalização de fundos da U.E. destinados a permitir uma recuperação de regiões mais atrasadas que conduza a um maior nivelamento futuro das respectivas economias. Daqui resulta que várias multinacionais instaladas até agora em países incluídos no primeiro alargamento, como Portugal, estão a abandonar esses territórios e a deslocar-se para os novos países onde, a juntar a um mais baixo custo da mão-de-obra e dos encargos sociais, vão auferir de um significativo bónus inicial, que lhes permitirá reduzir substancialmente os riscos do negócio. Os subsídios que auferem podem ser muito chorudos. Num exemplo frisante e relativo a uma empresa que felizmente ainda não abandonou Portugal – a Auto-Europa --, esses subsídios ascenderam a qualquer coisa como 120 milhões de contos na altura em que foram conferidos. E já foram entretanto reforçados.
Uma parte dos grandes problemas de emprego existentes actualmente resultam basicamente do facto de, na economia, as empresas estarem a mandarem mais do que os Estados na medida em que só assinam contratos que lhes dão vantagens por assim dizer leoninas. Nenhuma empresa, americana, japonesa ou alemã assinará um contrato com o Estado português em que preveja a continuidade de laboração de uma fábrica até, digamos, 2050 -- aceitando penalizações fortes em caso de incumprimento -- como contrapartida pelas benesses do subsídio inicial e de outras facilidades fiscais que lhe possam ser concedidas. A vantagem é sempre delas. Por isso, quando o negócio passa a ser mais rentável numa outra região do mundo, essas empresas equacionam a questão e é para lá que partem – deixando inúmeros problemas humanos e sociais atrás de si. Mas pode pedir-se ao capital económico para ser humano?
Esta forma de procedimento acaba por ser, em muitos aspectos, semelhante à adoptada desde sempre por países colonialistas. Tipicamente, e Portugal foi um bom exemplo disso num passado não muito longínquo, as nações que possuem colónias exploram estas últimas através de trocas desiguais. Em primeiro lugar, frise-se que as produções nas colónias não são orientadas primariamente para fomentar o desenvolvimento das colónias em si, mas para alimentarem indústrias da “metrópole”—e só secundariamente é que levam ao desenvolvimento de algumas indústrias locais. Lembremo-nos de produtos tais como o tabaco, o açúcar, o petróleo, o café, o chá, o cacau, o sisal, etc. Em segundo lugar, trata-se de produtos de cuja manufactura e colocação no mercado é a pátria-mãe que colhe os maiores benefícios e não a colónia propriamente dita – embora esta receba uma parte (pouco significativa no cômputo geral) dos salários que são pagos aos trabalhadores.
Mutatis mutandis, as empresas multinacionais actuam com estratégia colonialista relativamente aos países onde se instalam. Assim, muitos dos produtos fabricados num determinado país podem destinar-se prioritariamente à exportação e não ao consumo local; noutros casos, alguns dos produtos são apenas componentes de um todo que é montado num outro país.
Apesar das desvantagens, o que se constata é que, havendo um número significativo de países que aderem ao sistema, os restantes vêem-se igualmente forçados a aderirem. Por este motivo, ainda recentemente a Ministra portuguesa dos Negócios Estrangeiros esteve no Japão a oferecer os préstimos portugueses para instalação em Portugal de empresas nipónicas. Entre as empresas surge a mesma competitividade que entre os países. É muito natural que a Siemens – até pela conotação importante que representa o rótulo de marca “Made in Germany” – preferisse não se deslocar para outros países. Contudo, o facto de a grande rival finlandesa Nokia ter feito há algum tempo um contrato com o Estado chinês obriga a Siemens a encarar essa perspectiva como correcta do ponto de vista de competitividade e como forma de dar satisfação aos accionistas da empresa, espalhados por todo o mundo.
Deste cenário novo em termos de dimensão do número de empresas deslocalizadas estão presentemente a emergir questões adicionais:
1. Os países ricos estão a ver-se descapitalizados.
2. Os empregos estão a adquirir um grau de incerteza excessiva.
3. Os direitos dos trabalhadores estão a sofrer fortíssimas pressões.
4. Os sistemas de segurança social estão a desmoronar-se.
Nos Estados Unidos aponta-se o facto de pelo menos dois milhões de empregos estarem a ser perdidos no país devido ao fenómeno da deslocalização. Esta deslocalização de empresas americanas vai desde o México, país que lhe é vizinho na sua fronteira sul, até ao Brasil, à China e à Índia. Tanto a Índia como as Filipinas ou a Malásia oferecem uma considerável vantagem linguística – bom domínio do inglês – e custos acentuadamente mais baixos do que os dos Estados Unidos.
O que começa a ser novo é que são os trabalhadores dos países altamente desenvolvidos a protestarem mais veementemente contra o fecho de empresas nos seus próprios países para darem lugar a outras em locais distantes, onde eles trabalhadores não têm obviamente lugar.
O que começa a ser novo é que a vantagem de os trabalhadores auferirem ordenados elevados começa a ser desfavorável para a competitividade das empresas em que eles laboram. Por este motivo básico, as empresas mudam para países com custos muito mais baixos de produção, como atrás foi dito. É este facto que leva a que os sindicatos de países como a Alemanha e os Estados Unidos se ergam contra a chamada globalização que, no seu entender, não passa de uma nova forma de exercer colonialismo económico – prejudicando-os seriamente.
O que começa a ser novo é que, em face dos débeis direitos laborais de muitos dos países onde as grandes e médias empresas se re-estabelecem, os direitos dos trabalhadores dos países da casa-mãe são postos em cheque, existindo uma pressão constante para a sua diminuição – eufemisticamente denominada de flexibilização laboral.
O que começa a ser novo é que o assunto seja preocupante também para os governantes dos países ricos, que mudam o seu anterior discurso da globalização para um outro enterrado já há uns anos: o do nacionalismo. Não é patriótico, dizem os governantes, que as grandes empresas transfiram tantos serviços ou locais de produção para o estrangeiro, reduzindo assim a colecta de impostos de que o Estado carece para financiar as suas actividades.
O que começa a ser novo é que do bem-estar para todos, que tem sido a política da Europa do pós-guerra desde Ludwig Erhardt, se passe – em face das menores receitas estaduais -- para políticas mais restritivas que diminuem claramente as pensões sociais dos reformados e as benesses que eles sempre perspectivaram ao longo da sua vida de contribuintes.
Este é um clima não de guerra fria, como tivemos durante tantos anos, não de guerra declarada entre países, mas de confronto económico entre empresas e Estados, com repercussões que atingem gravemente direitos dos trabalhadores que se supunham adquiridos e situações que se acreditava serem estáveis. Cada vez mais se entra num clima de incerteza, que marginaliza socialmente os mais fracos e os menos aptos. É o darwinismo social, aflorado por Herbert Spencer na segunda metade do século XIX, que agora entra com toda a força. Quando se abre a caixa de Pandora da liberalização e da globalização, nunca se sabe que ventos se irá espalhar. Estamos a viver uma situação inédita, que poderá agravar-se bastante se não forem feitas análises objectivas nem tomadas medidas concertadas entre os países mais desenvolvidos.
E como reagem os governos dos países onde é efectuado esse investimento provindo do estrangeiro? Como seria de prever, os governos sopesam os prós e os contras, mas na esmagadora maioria dos casos mostram-se abertos a esse tipo de investimento por várias razões, de entre as quais sobressaem as seguintes:
1. Ao criarem postos de trabalho, as empresas estrangeiras estão a proporcionar maior poder de compra aos nacionais que nelas trabalham. Este facto traduz-se na possibilidade acrescida de esses nacionais satisfazerem alguns dos seus anseios de melhoria material e social, o que é importante para a reeleição dos governantes.
2. Mais pessoas a laborarem significa para os governos a existência de maior receita tanto em impostos directos sobre o rendimento como em impostos indirectos sobre as aquisições que elas efectuam.
3. Um número maior de pessoas a laborar traduz-se, pelo menos em princípio, em maiores descontos para a Segurança Social, o que contribui para o bem comum.
4. Em termos de imagem, os países ganham maior prestígio através da confiança internacional que o capital estrangeiro demonstra ao efectuar investimentos no seu território.
E, perguntar-se-á, não existe o reverso da medalha? Todos sabemos que não há almoços grátis, portanto ...
Algo paradoxalmente, essas mesmas empresas multinacionais que criam postos de trabalho são em larga medida responsáveis pela actual situação de desemprego em vários países, entre os quais Portugal, mas também a Alemanha e igualmente os Estados Unidos. O caso de Portugal, diga-se, não é muito semelhante ao dos Estados Unidos ou ao da Alemanha, sendo mais similar ao da Grécia ou da Espanha.
Presentemente, a empresa alemã Siemens, que é o terceiro maior grupo industrial europeu, pensa em deslocalizar várias das suas fábricas e também alguns dos seus serviços. Em todo o mundo, a Siemens emprega um total de 417 mil trabalhadores. A fim de aumentar a sua produtividade, a companhia pretende reduzir operações naqueles locais em que cerca de 40 por cento dos seus trabalhadores representam pouco mais de 20 por cento do volume total de negócios. Por exemplo, no sector dos telefones móveis a Siemens está a encarar a possibilidade de se mudar para a Hungria – onde os custos de trabalho são 30 por cento inferiores aos da Alemanha --, enquanto no que respeita aos telefones fixos o alvo em mira da sua deslocalização é a China. Estas medidas podem representar no imediato a perda de 2500 empregos na Alemanha, mas não é impossível que esse número acabe por ascender a 10 mil.
A Siemens não está sozinha nesta sua intenção. De facto, se o seu Conselho de Administração decidiu tomar estas medidas é porque muitas outras empresas germânicas e de outros países o fizeram anteriormente, pelo que os seus produtos estão a ficar menos competitivos. De acordo com um estudo recente, cerca de 10 mil empresas alemãs tencionam transferir a sua produção para o estrangeiro até 2006, o que implicará a perda de aproximadamente 50 mil postos de trabalho na própria Alemanha. No geral, as grandes empresas encaminham-se para a China, enquanto as de dimensão mais reduzida encaram como mais provável a mudança para a Europa de Leste, nomeadamente para os países que vão ser alvo do próximo alargamento da União Europeia.
E porquê concretamente estes países? Às razões apontadas atrás, de redução de custos, soma-se uma outra de não pequena monta. Os países menos desenvolvidos da União Europeia – receptores de investimento estrangeiro -- são elegíveis para a canalização de fundos da U.E. destinados a permitir uma recuperação de regiões mais atrasadas que conduza a um maior nivelamento futuro das respectivas economias. Daqui resulta que várias multinacionais instaladas até agora em países incluídos no primeiro alargamento, como Portugal, estão a abandonar esses territórios e a deslocar-se para os novos países onde, a juntar a um mais baixo custo da mão-de-obra e dos encargos sociais, vão auferir de um significativo bónus inicial, que lhes permitirá reduzir substancialmente os riscos do negócio. Os subsídios que auferem podem ser muito chorudos. Num exemplo frisante e relativo a uma empresa que felizmente ainda não abandonou Portugal – a Auto-Europa --, esses subsídios ascenderam a qualquer coisa como 120 milhões de contos na altura em que foram conferidos. E já foram entretanto reforçados.
Uma parte dos grandes problemas de emprego existentes actualmente resultam basicamente do facto de, na economia, as empresas estarem a mandarem mais do que os Estados na medida em que só assinam contratos que lhes dão vantagens por assim dizer leoninas. Nenhuma empresa, americana, japonesa ou alemã assinará um contrato com o Estado português em que preveja a continuidade de laboração de uma fábrica até, digamos, 2050 -- aceitando penalizações fortes em caso de incumprimento -- como contrapartida pelas benesses do subsídio inicial e de outras facilidades fiscais que lhe possam ser concedidas. A vantagem é sempre delas. Por isso, quando o negócio passa a ser mais rentável numa outra região do mundo, essas empresas equacionam a questão e é para lá que partem – deixando inúmeros problemas humanos e sociais atrás de si. Mas pode pedir-se ao capital económico para ser humano?
Esta forma de procedimento acaba por ser, em muitos aspectos, semelhante à adoptada desde sempre por países colonialistas. Tipicamente, e Portugal foi um bom exemplo disso num passado não muito longínquo, as nações que possuem colónias exploram estas últimas através de trocas desiguais. Em primeiro lugar, frise-se que as produções nas colónias não são orientadas primariamente para fomentar o desenvolvimento das colónias em si, mas para alimentarem indústrias da “metrópole”—e só secundariamente é que levam ao desenvolvimento de algumas indústrias locais. Lembremo-nos de produtos tais como o tabaco, o açúcar, o petróleo, o café, o chá, o cacau, o sisal, etc. Em segundo lugar, trata-se de produtos de cuja manufactura e colocação no mercado é a pátria-mãe que colhe os maiores benefícios e não a colónia propriamente dita – embora esta receba uma parte (pouco significativa no cômputo geral) dos salários que são pagos aos trabalhadores.
Mutatis mutandis, as empresas multinacionais actuam com estratégia colonialista relativamente aos países onde se instalam. Assim, muitos dos produtos fabricados num determinado país podem destinar-se prioritariamente à exportação e não ao consumo local; noutros casos, alguns dos produtos são apenas componentes de um todo que é montado num outro país.
Apesar das desvantagens, o que se constata é que, havendo um número significativo de países que aderem ao sistema, os restantes vêem-se igualmente forçados a aderirem. Por este motivo, ainda recentemente a Ministra portuguesa dos Negócios Estrangeiros esteve no Japão a oferecer os préstimos portugueses para instalação em Portugal de empresas nipónicas. Entre as empresas surge a mesma competitividade que entre os países. É muito natural que a Siemens – até pela conotação importante que representa o rótulo de marca “Made in Germany” – preferisse não se deslocar para outros países. Contudo, o facto de a grande rival finlandesa Nokia ter feito há algum tempo um contrato com o Estado chinês obriga a Siemens a encarar essa perspectiva como correcta do ponto de vista de competitividade e como forma de dar satisfação aos accionistas da empresa, espalhados por todo o mundo.
Deste cenário novo em termos de dimensão do número de empresas deslocalizadas estão presentemente a emergir questões adicionais:
1. Os países ricos estão a ver-se descapitalizados.
2. Os empregos estão a adquirir um grau de incerteza excessiva.
3. Os direitos dos trabalhadores estão a sofrer fortíssimas pressões.
4. Os sistemas de segurança social estão a desmoronar-se.
Nos Estados Unidos aponta-se o facto de pelo menos dois milhões de empregos estarem a ser perdidos no país devido ao fenómeno da deslocalização. Esta deslocalização de empresas americanas vai desde o México, país que lhe é vizinho na sua fronteira sul, até ao Brasil, à China e à Índia. Tanto a Índia como as Filipinas ou a Malásia oferecem uma considerável vantagem linguística – bom domínio do inglês – e custos acentuadamente mais baixos do que os dos Estados Unidos.
O que começa a ser novo é que são os trabalhadores dos países altamente desenvolvidos a protestarem mais veementemente contra o fecho de empresas nos seus próprios países para darem lugar a outras em locais distantes, onde eles trabalhadores não têm obviamente lugar.
O que começa a ser novo é que a vantagem de os trabalhadores auferirem ordenados elevados começa a ser desfavorável para a competitividade das empresas em que eles laboram. Por este motivo básico, as empresas mudam para países com custos muito mais baixos de produção, como atrás foi dito. É este facto que leva a que os sindicatos de países como a Alemanha e os Estados Unidos se ergam contra a chamada globalização que, no seu entender, não passa de uma nova forma de exercer colonialismo económico – prejudicando-os seriamente.
O que começa a ser novo é que, em face dos débeis direitos laborais de muitos dos países onde as grandes e médias empresas se re-estabelecem, os direitos dos trabalhadores dos países da casa-mãe são postos em cheque, existindo uma pressão constante para a sua diminuição – eufemisticamente denominada de flexibilização laboral.
O que começa a ser novo é que o assunto seja preocupante também para os governantes dos países ricos, que mudam o seu anterior discurso da globalização para um outro enterrado já há uns anos: o do nacionalismo. Não é patriótico, dizem os governantes, que as grandes empresas transfiram tantos serviços ou locais de produção para o estrangeiro, reduzindo assim a colecta de impostos de que o Estado carece para financiar as suas actividades.
O que começa a ser novo é que do bem-estar para todos, que tem sido a política da Europa do pós-guerra desde Ludwig Erhardt, se passe – em face das menores receitas estaduais -- para políticas mais restritivas que diminuem claramente as pensões sociais dos reformados e as benesses que eles sempre perspectivaram ao longo da sua vida de contribuintes.
Este é um clima não de guerra fria, como tivemos durante tantos anos, não de guerra declarada entre países, mas de confronto económico entre empresas e Estados, com repercussões que atingem gravemente direitos dos trabalhadores que se supunham adquiridos e situações que se acreditava serem estáveis. Cada vez mais se entra num clima de incerteza, que marginaliza socialmente os mais fracos e os menos aptos. É o darwinismo social, aflorado por Herbert Spencer na segunda metade do século XIX, que agora entra com toda a força. Quando se abre a caixa de Pandora da liberalização e da globalização, nunca se sabe que ventos se irá espalhar. Estamos a viver uma situação inédita, que poderá agravar-se bastante se não forem feitas análises objectivas nem tomadas medidas concertadas entre os países mais desenvolvidos.
5/01/2004
Privilégios
Nunca vivi no campo. Nunca vivi numa cidade de província. Talvez por isso tenha a nostalgia da vida saudável ao ar livre, em contacto estrito com a natureza, e do natural e gratuito suplemento de vitamina D de que os camponeses beneficiam. Fujo o mais que posso de ambientes fechados, odeio centros comerciais, onde não há nada de natural, nem luz, nem canto de pássaros, nem árvores.
Certamente por isso, a minha visão do paraíso terrestre é, invariavelmente, um qualquer lugar isolado, de preferência favorecido em beleza natural, muitos livros e muita música.
Não há muito tempo dei uma escapadela de Lisboa, em busca de um desses paraísos. Muito bem instalada na minha solidão havia dias, soube de um concerto que ia acontecer nessa noite, no âmbito de umas jornadas de debate sobre agricultura. Nem pensei duas vezes: a música e a oportunidade de conhecer a capela do convento da pequena terra beirã em que me encontrava fizeram-me pegar no carro, abandonado no parque de estacionamento desde a chegada.
Não, não é sobre a qualidade da música ali feita que me quero pronunciar, embora sobre isso a reflexão possível vá chegar exactamente ao meu alvo: depois de ter acesso a tudo o que de bom se faz a nível mundial e passa por Lisboa, depois de ouvir vezes sem conta as melhores gravações das melhores obras, mesmo que se não possa ou não queira ser intolerantes, o nosso ouvido torna-se tirano: exige o melhor!
Afinal nós, lisboetas, somos uns privilegiados e não temos muita consciência disso. Concluí eu, que costumo achar privilegiado quem respira bom ar, não tem filas de automóveis para chegar ao trabalho, pode ir almoçar a casa, quem sabe até debaixo da árvore secular lá do quintal...
O tema do concerto era a música popular portuguesa ligada às tradições religiosas do natal, da páscoa e ao culto mariano. Intercalada por uma ou outra pequena peça para órgão.
Com pompa e circunstância, a assistência teve direito a apresentação dos artistas e explicação das obras apresentadas, feitas por uma dinâmica senhora, depreendo que pessoa das chamadas “forças vivas” locais.
E aqui, santa paciência, tenho eu que “bater” sem complacências. Sob o pretexto de que a cultura não ocupa lugar, como foi dito, foi um desfilar de “erudição”, misto de biografia detalhada de compositores e teoria musical, vocabulário rebuscado, longas transcrições de textos de Lopes Graça e Giaccometi, e... muita asneira à mistura. Desde erros gramaticais, a palavras usadas completamente a despropósito, a um pobre Pergolese rebaptizado de Pergossoli!
Adoraria ter sabido o que pensou daquele discurso a senhora ao meu lado, que olhou para o programa que lhe puseram nas mãos calosas, lhe deu várias voltas para cima, para baixo, (letras e mais letras, figuras nenhumas!...) e o pousou sem perceber sequer em que sentido é que se lia... Adoraria saber o que captou de todas aquelas palavras. Ela, “a privilegiada” que, a julgar pelo tom da pele, vive ao ar livre, tem uma vida provavelmente mais saudável do que a minha...e não sabe ler.
Senti vergonha de ter presenciado aquela cena, no meu país, no século XXI. Tive vontade de lhe pedir desculpa pelo que ela não percebeu do discurso. Pelo que não foi capaz de ler no programa. E por me esquecer tão frequentemente da sorte que tive em ter tido acesso a bens culturais tão elementares quanto a escolaridade básica. Estaria eu hoje a dar voltas ao programa, sem saber o que fazer com ele, se acaso tivesse nascido num meio rural do chamado “país profundo”?
É fácil invejar a vida saudável, o chilreio dos pássaros, o sol, o rio a correr ali ao lado, quando se tem tudo e um carro à nossa espera na garagem.
Certamente por isso, a minha visão do paraíso terrestre é, invariavelmente, um qualquer lugar isolado, de preferência favorecido em beleza natural, muitos livros e muita música.
Não há muito tempo dei uma escapadela de Lisboa, em busca de um desses paraísos. Muito bem instalada na minha solidão havia dias, soube de um concerto que ia acontecer nessa noite, no âmbito de umas jornadas de debate sobre agricultura. Nem pensei duas vezes: a música e a oportunidade de conhecer a capela do convento da pequena terra beirã em que me encontrava fizeram-me pegar no carro, abandonado no parque de estacionamento desde a chegada.
Não, não é sobre a qualidade da música ali feita que me quero pronunciar, embora sobre isso a reflexão possível vá chegar exactamente ao meu alvo: depois de ter acesso a tudo o que de bom se faz a nível mundial e passa por Lisboa, depois de ouvir vezes sem conta as melhores gravações das melhores obras, mesmo que se não possa ou não queira ser intolerantes, o nosso ouvido torna-se tirano: exige o melhor!
Afinal nós, lisboetas, somos uns privilegiados e não temos muita consciência disso. Concluí eu, que costumo achar privilegiado quem respira bom ar, não tem filas de automóveis para chegar ao trabalho, pode ir almoçar a casa, quem sabe até debaixo da árvore secular lá do quintal...
O tema do concerto era a música popular portuguesa ligada às tradições religiosas do natal, da páscoa e ao culto mariano. Intercalada por uma ou outra pequena peça para órgão.
Com pompa e circunstância, a assistência teve direito a apresentação dos artistas e explicação das obras apresentadas, feitas por uma dinâmica senhora, depreendo que pessoa das chamadas “forças vivas” locais.
E aqui, santa paciência, tenho eu que “bater” sem complacências. Sob o pretexto de que a cultura não ocupa lugar, como foi dito, foi um desfilar de “erudição”, misto de biografia detalhada de compositores e teoria musical, vocabulário rebuscado, longas transcrições de textos de Lopes Graça e Giaccometi, e... muita asneira à mistura. Desde erros gramaticais, a palavras usadas completamente a despropósito, a um pobre Pergolese rebaptizado de Pergossoli!
Adoraria ter sabido o que pensou daquele discurso a senhora ao meu lado, que olhou para o programa que lhe puseram nas mãos calosas, lhe deu várias voltas para cima, para baixo, (letras e mais letras, figuras nenhumas!...) e o pousou sem perceber sequer em que sentido é que se lia... Adoraria saber o que captou de todas aquelas palavras. Ela, “a privilegiada” que, a julgar pelo tom da pele, vive ao ar livre, tem uma vida provavelmente mais saudável do que a minha...e não sabe ler.
Senti vergonha de ter presenciado aquela cena, no meu país, no século XXI. Tive vontade de lhe pedir desculpa pelo que ela não percebeu do discurso. Pelo que não foi capaz de ler no programa. E por me esquecer tão frequentemente da sorte que tive em ter tido acesso a bens culturais tão elementares quanto a escolaridade básica. Estaria eu hoje a dar voltas ao programa, sem saber o que fazer com ele, se acaso tivesse nascido num meio rural do chamado “país profundo”?
É fácil invejar a vida saudável, o chilreio dos pássaros, o sol, o rio a correr ali ao lado, quando se tem tudo e um carro à nossa espera na garagem.
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