Sob o ponto de vista económico e financeiro, o mundo tem mudado substancialmente nos últimos anos. Muito embora empresas multinacionais existam já há mais tempo, foi principalmente desde o desmantelamento da União Soviética em 1991 que se acentuaram os investimentos feitos por empresas de nações ricas em países mais pobres, onde a mão-de-obra é mais barata, a protecção social aos trabalhadores menor e as leis laborais são mais flexíveis. Numa palavra, poderá dizer-se, com a naturalidade que uma visão estritamente economicista dos negócios deixa pressupor, que as empresas procuram locais onde os seus custos de produção ou laboração sejam menores para assim verem aumentados os seus lucros.
E como reagem os governos dos países onde é efectuado esse investimento provindo do estrangeiro? Como seria de prever, os governos sopesam os prós e os contras, mas na esmagadora maioria dos casos mostram-se abertos a esse tipo de investimento por várias razões, de entre as quais sobressaem as seguintes:
1. Ao criarem postos de trabalho, as empresas estrangeiras estão a proporcionar maior poder de compra aos nacionais que nelas trabalham. Este facto traduz-se na possibilidade acrescida de esses nacionais satisfazerem alguns dos seus anseios de melhoria material e social, o que é importante para a reeleição dos governantes.
2. Mais pessoas a laborarem significa para os governos a existência de maior receita tanto em impostos directos sobre o rendimento como em impostos indirectos sobre as aquisições que elas efectuam.
3. Um número maior de pessoas a laborar traduz-se, pelo menos em princípio, em maiores descontos para a Segurança Social, o que contribui para o bem comum.
4. Em termos de imagem, os países ganham maior prestígio através da confiança internacional que o capital estrangeiro demonstra ao efectuar investimentos no seu território.
E, perguntar-se-á, não existe o reverso da medalha? Todos sabemos que não há almoços grátis, portanto ...
Algo paradoxalmente, essas mesmas empresas multinacionais que criam postos de trabalho são em larga medida responsáveis pela actual situação de desemprego em vários países, entre os quais Portugal, mas também a Alemanha e igualmente os Estados Unidos. O caso de Portugal, diga-se, não é muito semelhante ao dos Estados Unidos ou ao da Alemanha, sendo mais similar ao da Grécia ou da Espanha.
Presentemente, a empresa alemã Siemens, que é o terceiro maior grupo industrial europeu, pensa em deslocalizar várias das suas fábricas e também alguns dos seus serviços. Em todo o mundo, a Siemens emprega um total de 417 mil trabalhadores. A fim de aumentar a sua produtividade, a companhia pretende reduzir operações naqueles locais em que cerca de 40 por cento dos seus trabalhadores representam pouco mais de 20 por cento do volume total de negócios. Por exemplo, no sector dos telefones móveis a Siemens está a encarar a possibilidade de se mudar para a Hungria – onde os custos de trabalho são 30 por cento inferiores aos da Alemanha --, enquanto no que respeita aos telefones fixos o alvo em mira da sua deslocalização é a China. Estas medidas podem representar no imediato a perda de 2500 empregos na Alemanha, mas não é impossível que esse número acabe por ascender a 10 mil.
A Siemens não está sozinha nesta sua intenção. De facto, se o seu Conselho de Administração decidiu tomar estas medidas é porque muitas outras empresas germânicas e de outros países o fizeram anteriormente, pelo que os seus produtos estão a ficar menos competitivos. De acordo com um estudo recente, cerca de 10 mil empresas alemãs tencionam transferir a sua produção para o estrangeiro até 2006, o que implicará a perda de aproximadamente 50 mil postos de trabalho na própria Alemanha. No geral, as grandes empresas encaminham-se para a China, enquanto as de dimensão mais reduzida encaram como mais provável a mudança para a Europa de Leste, nomeadamente para os países que vão ser alvo do próximo alargamento da União Europeia.
E porquê concretamente estes países? Às razões apontadas atrás, de redução de custos, soma-se uma outra de não pequena monta. Os países menos desenvolvidos da União Europeia – receptores de investimento estrangeiro -- são elegíveis para a canalização de fundos da U.E. destinados a permitir uma recuperação de regiões mais atrasadas que conduza a um maior nivelamento futuro das respectivas economias. Daqui resulta que várias multinacionais instaladas até agora em países incluídos no primeiro alargamento, como Portugal, estão a abandonar esses territórios e a deslocar-se para os novos países onde, a juntar a um mais baixo custo da mão-de-obra e dos encargos sociais, vão auferir de um significativo bónus inicial, que lhes permitirá reduzir substancialmente os riscos do negócio. Os subsídios que auferem podem ser muito chorudos. Num exemplo frisante e relativo a uma empresa que felizmente ainda não abandonou Portugal – a Auto-Europa --, esses subsídios ascenderam a qualquer coisa como 120 milhões de contos na altura em que foram conferidos. E já foram entretanto reforçados.
Uma parte dos grandes problemas de emprego existentes actualmente resultam basicamente do facto de, na economia, as empresas estarem a mandarem mais do que os Estados na medida em que só assinam contratos que lhes dão vantagens por assim dizer leoninas. Nenhuma empresa, americana, japonesa ou alemã assinará um contrato com o Estado português em que preveja a continuidade de laboração de uma fábrica até, digamos, 2050 -- aceitando penalizações fortes em caso de incumprimento -- como contrapartida pelas benesses do subsídio inicial e de outras facilidades fiscais que lhe possam ser concedidas. A vantagem é sempre delas. Por isso, quando o negócio passa a ser mais rentável numa outra região do mundo, essas empresas equacionam a questão e é para lá que partem – deixando inúmeros problemas humanos e sociais atrás de si. Mas pode pedir-se ao capital económico para ser humano?
Esta forma de procedimento acaba por ser, em muitos aspectos, semelhante à adoptada desde sempre por países colonialistas. Tipicamente, e Portugal foi um bom exemplo disso num passado não muito longínquo, as nações que possuem colónias exploram estas últimas através de trocas desiguais. Em primeiro lugar, frise-se que as produções nas colónias não são orientadas primariamente para fomentar o desenvolvimento das colónias em si, mas para alimentarem indústrias da “metrópole”—e só secundariamente é que levam ao desenvolvimento de algumas indústrias locais. Lembremo-nos de produtos tais como o tabaco, o açúcar, o petróleo, o café, o chá, o cacau, o sisal, etc. Em segundo lugar, trata-se de produtos de cuja manufactura e colocação no mercado é a pátria-mãe que colhe os maiores benefícios e não a colónia propriamente dita – embora esta receba uma parte (pouco significativa no cômputo geral) dos salários que são pagos aos trabalhadores.
Mutatis mutandis, as empresas multinacionais actuam com estratégia colonialista relativamente aos países onde se instalam. Assim, muitos dos produtos fabricados num determinado país podem destinar-se prioritariamente à exportação e não ao consumo local; noutros casos, alguns dos produtos são apenas componentes de um todo que é montado num outro país.
Apesar das desvantagens, o que se constata é que, havendo um número significativo de países que aderem ao sistema, os restantes vêem-se igualmente forçados a aderirem. Por este motivo, ainda recentemente a Ministra portuguesa dos Negócios Estrangeiros esteve no Japão a oferecer os préstimos portugueses para instalação em Portugal de empresas nipónicas. Entre as empresas surge a mesma competitividade que entre os países. É muito natural que a Siemens – até pela conotação importante que representa o rótulo de marca “Made in Germany” – preferisse não se deslocar para outros países. Contudo, o facto de a grande rival finlandesa Nokia ter feito há algum tempo um contrato com o Estado chinês obriga a Siemens a encarar essa perspectiva como correcta do ponto de vista de competitividade e como forma de dar satisfação aos accionistas da empresa, espalhados por todo o mundo.
Deste cenário novo em termos de dimensão do número de empresas deslocalizadas estão presentemente a emergir questões adicionais:
1. Os países ricos estão a ver-se descapitalizados.
2. Os empregos estão a adquirir um grau de incerteza excessiva.
3. Os direitos dos trabalhadores estão a sofrer fortíssimas pressões.
4. Os sistemas de segurança social estão a desmoronar-se.
Nos Estados Unidos aponta-se o facto de pelo menos dois milhões de empregos estarem a ser perdidos no país devido ao fenómeno da deslocalização. Esta deslocalização de empresas americanas vai desde o México, país que lhe é vizinho na sua fronteira sul, até ao Brasil, à China e à Índia. Tanto a Índia como as Filipinas ou a Malásia oferecem uma considerável vantagem linguística – bom domínio do inglês – e custos acentuadamente mais baixos do que os dos Estados Unidos.
O que começa a ser novo é que são os trabalhadores dos países altamente desenvolvidos a protestarem mais veementemente contra o fecho de empresas nos seus próprios países para darem lugar a outras em locais distantes, onde eles trabalhadores não têm obviamente lugar.
O que começa a ser novo é que a vantagem de os trabalhadores auferirem ordenados elevados começa a ser desfavorável para a competitividade das empresas em que eles laboram. Por este motivo básico, as empresas mudam para países com custos muito mais baixos de produção, como atrás foi dito. É este facto que leva a que os sindicatos de países como a Alemanha e os Estados Unidos se ergam contra a chamada globalização que, no seu entender, não passa de uma nova forma de exercer colonialismo económico – prejudicando-os seriamente.
O que começa a ser novo é que, em face dos débeis direitos laborais de muitos dos países onde as grandes e médias empresas se re-estabelecem, os direitos dos trabalhadores dos países da casa-mãe são postos em cheque, existindo uma pressão constante para a sua diminuição – eufemisticamente denominada de flexibilização laboral.
O que começa a ser novo é que o assunto seja preocupante também para os governantes dos países ricos, que mudam o seu anterior discurso da globalização para um outro enterrado já há uns anos: o do nacionalismo. Não é patriótico, dizem os governantes, que as grandes empresas transfiram tantos serviços ou locais de produção para o estrangeiro, reduzindo assim a colecta de impostos de que o Estado carece para financiar as suas actividades.
O que começa a ser novo é que do bem-estar para todos, que tem sido a política da Europa do pós-guerra desde Ludwig Erhardt, se passe – em face das menores receitas estaduais -- para políticas mais restritivas que diminuem claramente as pensões sociais dos reformados e as benesses que eles sempre perspectivaram ao longo da sua vida de contribuintes.
Este é um clima não de guerra fria, como tivemos durante tantos anos, não de guerra declarada entre países, mas de confronto económico entre empresas e Estados, com repercussões que atingem gravemente direitos dos trabalhadores que se supunham adquiridos e situações que se acreditava serem estáveis. Cada vez mais se entra num clima de incerteza, que marginaliza socialmente os mais fracos e os menos aptos. É o darwinismo social, aflorado por Herbert Spencer na segunda metade do século XIX, que agora entra com toda a força. Quando se abre a caixa de Pandora da liberalização e da globalização, nunca se sabe que ventos se irá espalhar. Estamos a viver uma situação inédita, que poderá agravar-se bastante se não forem feitas análises objectivas nem tomadas medidas concertadas entre os países mais desenvolvidos.
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