A palavra árabe "xatranj", de origem persa, foi trazida pelos muçulmanos para a Península Ibérica no século X. Hoje em dia, a adaptação portuguesa de "xatranj" surge-nos ligada a variadíssimas coisas, que vão de padrões de vestuário, de papel, madeira e mosaicos, a tabuleiros, às grades de uma prisão e, acima de tudo, a um jogo mundialmente conhecido: o xadrez.
O xadrez é um jogo entre dois exércitos, disputado sobre um tabuleiro com um total de 64 casas geralmente pretas e brancas, tal como as 32 peças -- 16 de cada lado --, que constituem o corpo militar. Inicialmente, cada um dos exércitos possui uma primeira linha constituída por oito peões e uma segunda linha onde se encontram o rei e a rainha, dois cavalos, dois bispos e duas torres. O objectivo principal do jogo consiste em manobrar as pedras de tal forma que se consiga encurralar o rei do exército inimigo, declarando posteriormente duas palavras foneticamente parecidas com as originais persas (shah mat): "Xeque mate!" ("o rei está morto").
Como se sabe, as peças não possuem todas o mesmo poder de movimentação: há as que podem avançar apenas uma casa (os peões), as que podem saltar algo imprevistamente (os cavalos), as que se movem na diagonal (os bispos), as que se deslocam lateralmente e para a frente (as torres), as que estão resguardadas e pouco se movem (os reis) e as que podem andar para a frente e para trás, na diagonal, na horizontal e na vertical se preciso for: as rainhas. Têm mobilidade total! Ora, aqui coloca-se uma questão que parece óbvia: conhecendo nós as raízes socio-culturais das sociedades do Médio Oriente e o tratamento ainda hoje dado à mulher nas sociedades de religião islâmica, como é que poderemos entender que um jogo originalmente persa atribua uma tal mobilidade a mulheres? Mais: se é a rainha a última grande defensora do rei, não será humilhante para um homem ver-se assim protegido pela sua mulher?
A explicação acaba por ser simples. As peças do jogo de xadrez, tal como hoje as identificamos, não são necessariamente as originais, tendo sofrido adaptações. Na realidade, elas constituem por assim dizer um auto-retrato das cruzadas cristãs dos séculos XI a XIII. Estes foram dois séculos de grande e fecundo intercâmbio entre o Médio oriente e o Ocidente. O jogo do xadrez foi então re-introduzido na Europa, nomeadamente nos países fora da Península Ibérica, lembrando um pouco a história dos moinhos, que foram deixados aqui na Península pelos árabes e por isso são diferentes dos que acabaram por ser trazidos para outras partes da Europa, v.g. Holanda. Assim, atrás da primeira linha dos peões estavam os grandes símbolos das Cruzadas. As torres são as fortalezas que as diferentes ordens de cavalaria (Templários, Hospitalários) mandaram construir no percurso para sua salvaguarda e dos peregrinos que demandavam a Terra Santa. Ainda hoje existem algumas ruínas dessas torres. Os cavalos simbolizam os cavaleiros. São um símbolo importante, na medida em que não só dão superioridade no combate como também conferem um estatuto de nobreza: ser "cavaleiro" está associado a ser "cavalheiro", gentleman. Os bispos são os representantes da Igreja, que naturalmente apadrinhava todo o movimento. Muito sintomaticamente, os bispos atacam algo traiçoeiramente de viés. Que o rei é o Xá já sabemos. E a rainha? Bem, a rainha substituíu a figura original do "condestável" do Xá. Aqui teremos que ter presente que as cruzadas constituíram um movimento para retirar o Santo Sepulcro de Cristo das mãos dos "infiéis". A fé na Virgem Maria, mãe de Jesus, foi então elevada ao extremo. Na realidade, "aos píncaros das catedrais". Por esse motivo, acharam os cruzados que quem mais podia interceder por todos era Nossa Senhora. Quem protege o rei não é uma mulher qualquer, mas sim alguém com poder divino. Todo o apoio de que o rei possa necessitar passa assim a ser o suporte divino de que todo o homem carece na visão medieval. Mesmo os que são reis.
Considero o "xatranj" um exemplo interessante da adaptação europeia de um jogo importado de uma cultura e civilização diferente.
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