Em meados de Novembro, coloquei aqui um texto a que dei o título de "Contradições". Tratava de casos de aparente falta de ética. No seu comentário, M. Tulipa chamou-me a atenção para um facto: quando se trata de sobrevivência, o nosso instinto animal pode mandar mais do que a razão e redundar em puro egoísmo social. Gostei de ler o comentário e felicitei a sua autora. Permito-me prosseguir o (perigoso) curso desse pensamento.
Todos conhecemos cães fidelíssimos, nossos amigos, que nos acompanham por todo o lado, obedecem ao nosso chamamento e abanam a cauda em sinal de satisfação sempre que nos vêem. Somos os seus donos, tratamos bem deles, afeiçoaram-se a nós. Se, porém, colocarmos a nossa mão no prato em que eles estão a comer, rosnarão imediatamente. Ameaçadoramente. Poderão mesmo morder-nos. Porque se viram os cães contra nós? Porque estamos a ameaçar a sua sobrevivência.
Quando, há umas semanas, a conflitualidade social rebentou em França com extraordinária força, houve naturalmente quem se perguntasse: "Porquê agora?" Bem, em grande medida porque Sarkozy tinha nas semanas anteriores lançado acções policiais sobre gangs que operavam naqueles bairros. O ministro causou situações de ruptura no abastecimento de droga e de contrabando. Ameaçou a sobrevivência de cabecilhas e de todos os que satelizavam o seu mundo. O conflito estoirou. (Terá depois passado para outros bairros e para outras cidades, numa compita, ainda por cima mostrada na TV, "a ver quem faz pior".)
Não se peça a todas as famílias deste país, desde sempre honestas e bem comportadas, que se portem da mesma maneira quando se vêem confrontadas pelo desemprego, pelo despejo da casa, pelo futuro sem rosto que assoma à sua frente. É a sua sobrevivência que está em jogo. Se a sociedade os despreza e lança na valeta, para quê e porquê respeitar os valores éticos que aprenderam e sempre cultivaram, pensarão vários indivíduos. A criminalidade tende a aumentar como puro reflexo da conflitualidade social. Às vezes ocorre-me uma visita à América Latina do Papa João XXIII, em que ele, de forma politicamente incorrecta, admitiu o recurso à violência quando não haja outras maneiras de resolver questões de justiça social. "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém considera violentas as margens que o apertam", lembrou Bertolt Brecht.
Os ricos que cuidem dos pobres para que não sejam estes a cuidar deles.
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