Estes dois casos datam do já remoto ano de 1963. Reproduzo as palavras que na altura escrevi.
"Tomar a nuvem por Juno" é uma expressão muito vulgar que, na maioria dos casos, significa que nos iludimos e supomos que uma coisa é diferente daquilo que de facto é. Aconteceu-me hoje aqui na Fazenda Tentativa algo que, pela segunda vez num espaço de tempo relativamente curto, constitui um bom exemplo do significado daquela expressão.
Com um entardecer de sonho, uma temperatura amena e as palmeiras da Fazenda recortando-se no horizonte contra um céu rubro, fui dar um passeio por esta imensa propriedade, sorvendo com o olhar as várias dádivas que a natureza magnífica me ia oferecendo. A dada altura, divisei ao longe um grupo relativamente grande. Pareciam-me mulheres. Confirmei-o ao aproximar-me um pouco mais. Todas de preto. Ajoelhadas num local do palmar que nada parecia ter de especial. Mantive-me a alguma distância para não perturbar. Ciente da possibilidade, nunca de excluir, de ver mulheres a servir de alguma maneira interesses de eventuais rebeldes, observei a cena. Mantiveram-se ajoelhadas e recolhidas em silêncio enquanto o sol se ia pondo. Era uma cena estranha, muito bela. De filme. Que significado teria? O que estariam aquelas mulheres a fazer ali? Formou-se-me uma dúvida no espírito, dúvida que só ao jantar, com um dos funcionários da Fazenda, consegui esclarecer. "O sr. alferes viu mesmo essas mulheres junto ao palmar? Exactamente em que sítio?" Dei-lhe a localização precisa. "Isso é muito interessante. Que dia é hoje? Pois, tem de ser isso. Foi mais ou menos por esta altura que há dois anos vários homens que trabalhavam aqui na Fazenda foram considerados suspeitos de estar a maquinar algo cá dentro. Interrogados pela tropa e também pela polícia, uns terão feito declarações que os comprometeram, outros não terão aberto a boca. Não sei dizer com rigor o que se passou porque não assisti a nada. Mas sei que, para cortar o mal pela raiz, foram todos mortos. Mortos e enterrados numa larga vala comum, que um tractor abriu aqui na Fazenda. As mulheres desses homens ficaram por cá, bem como os filhos, se os tinham. O que viu hoje, porque foi esse o local que me indicou, foi uma romaria das mulheres ao lugar dessa vala comum, no meio dos palmares. Possivelmente faz anos que eles lá foram enterrados!"
Não sei o que dizer desta triste e comovente história da guerra de Angola. Ela fala por si.
Tenho, entretanto, uma outra nuvem em forma de Juno. Também recente. Passou-se no Libongo, antes de eu vir aqui para a Tentativa. Junto à Fazenda, existe a sanzala Terra Nova, onde fui muitas vezes. É uma sanzala com uma população simpática, mas bem mais suspeita do que esta da Tentativa relativamente a contactos com núcleos de nativos armados, por ficar mais a norte e, por conseguinte, ter maiores probabilidades de estabelecer contactos com rebeldes. Nas minhas visitas por ali e mesmo na Fazenda Libongo, notei em mais do que uma rapariga algo que me intrigou: um fio vermelho na parte da frente da T-shirt que usavam, do lado do coração. Que significado teria aquele fio de lã vermelho? Perguntei a colegas meus, que não souberam dar-me uma resposta cabal e concreta. "Não será um sinal combinado?" "Não faço a mínima ideia!" A questão arrastou-se. Até que um dia, vendo uma moça sozinha, desenvolta, talvez com 19 ou 20 anos e com o tal fio vermelho na T-shirt, decidi-me. Abeirei-me dela. Recuou um pouco. Dei dois dedos de conversa primeiro. Perguntei-lhe amigavelmente se era dali e como se chamava. A moça respondeu-me sem quaisquer problemas. Mas para mim o importante era outra coisa. Disparei então de chofre, embora no mesmo tom cordial: "Ouve lá, para que é o fio de lã vermelho aí do lado esquerdo?" Ficou muda. Senti que ela não corava pela simples razão de que a sua cor não permite ver o sangue aflorar à face. Mas não estava muito à vontade. Um flash de satisfação perversa passou-me pela mente: "Apanhei-a! Apanhei-os! Ela não vai poder fugir e irá ter que confessar que sinal é este para os homens que estão na mata e se juntaram aos terroristas." Insisti. "Então, para que é esse fio vermelho?" A resposta lá veio finalmente, algo gaguejada por causa do embaraço, mas totalmente sincera e bem explícita: "É para avisar o meu namorado de que estou com o sangue. Estou no período!"
São as raparigas que são suspeitas, ou sou eu que estou a precisar de ir ao médico, de tão contaminado que estou, devido à guerra, de uma desconfiança absolutamente exagerada nas pessoas?
4/26/2010
Três casos não-ficcionados
Para variar um pouco, pensei que talvez fosse relativamente interessante dar a conhecer três historietas reais, das muitas que cada um de nós tem da sua vida profissional. O cenário comum a todas elas é uma instituição de ensino.
A professora que acompanhava o grupo de alunos finalistas de um curso de turismo, todos eles entre os 21 e os 28 anos, era uma profissional competente, com larga experiência. O grupo fazia uma viagem de autocarro com a duração de 11 dias pelo Centro e Norte do país. O objectivo principal da viagem era dar a conhecer melhor Portugal, visitando monumentos, fazendo no autocarro e nas visitas prática de guia-intérprete ao mesmo tempo que faziam o reconhecimento de itinerários. Estabeleciam-se, ainda, contactos com autarquias e serviços oficiais de turismo.
Nas suas indicações à partida, a professora distribuiu algumas tarefas por vários alunos e, nas suas recomendações, salientou que o facto de aqueles jovens estarem vários dias fora de casa não deveria significar que iriam todas as noites a discotecas, com o correspondente regresso ao hotel a altas horas, passando depois as manhãs a dormir no assento do autocarro. Nos hotéis onde iam ficar, todo o barulho deveria ficaria cá fora, já que os restantes hóspedes tinham todo o direito de descansar. Acentuou que era a instituição onde os alunos estudavam que seria posta em causa na eventualidade de surgir algum comportamento menos correcto.
Se nos primeiros dias, nas Beiras, tudo correu bem, a certa altura os jovens alunos e alunas não quiseram deixar de dar à noite uma saltada a algumas discotecas mais conhecidas. Em Guimarães, no hotel em que estavam instalados, a professora notou que havia quem estivesse a exagerar. No dia de partida, ao fazer o check-out, recebeu das mãos do chefe da recepção uma carta, em envelope fechado, endereçada ao director do Instituto. Não teve qualquer dúvida: ainda no hotel reuniu o grupo e mostrou-lhes o envelope. Sem saber o que a carta dizia porque não lhe tinha sido endereçada a ela, considerou naturalmente o facto muito grave.
A partir daí, nas restantes três noites o comportamento do grupo foi bem diferente. Sentiram todos a responsabilidade de um puxão de orelhas.
O grupo regressou a Lisboa. No dia seguinte à chegada, a professora veio fazer-me um breve relatório da viagem. Eu era o coordenador do curso. Entregou-me em mão a tal carta do hotel. Fiz-lhe notar que o envelope estava endereçado ao director da instituição. Piscou-me o olho e insistiu para que eu o abrisse. Abri. Lá dentro estava uma folha A-4, dobrada da forma tradicional. Dizeres: zero. Absolutamente nada, uma folha em branco. A experiente professora tinha concebido todo o esquema. Depois, pedira na recepção para meterem a folha num envelope do hotel, endereçado ao director.
Conclusão: com um pouco de imaginação, é possível encontrar formas não-dispendiosas e eficientes de resolver problemas. Foi um típico caso de boa gestão e prevenção de conflitos.
A segunda historieta envolve também uma carta e passou-se com outra professora, que entrou um dia no gabinete onde eu trabalhava. Gostaria de fazer uma viagem de dois dias a Coimbra para refrescar os seus conhecimentos da cidade, com vista a melhorar as suas aulas. Como não possuía automóvel, iria em princípio de autocarro ou de comboio, mas preferiria certamente que a instituição cobrisse o custo da viagem e do hotel. Sem refeições. Ouvi. Disse-lhe que esse era um assunto que apenas a Administração poderia resolver. Concordou. E, como colega e amiga, pediu-me se eu não me importava de escrever uma carta ao administrador para ela depois assinar. Admitiu que não tinha muito jeito para escrever coisas dessas. Teclei rapidamente uma carta ao computador, que lhe mostrei. Concordou com tudo e, depois de feita a respectiva impressão, assinou e meteu a carta num envelope, que entregou na Secretaria.
Passados uns dias, o administrador veio ao meu gabinete falar de assuntos diversos, como era seu hábito, e pedir-me também uma opinião: deveria ou não custear aquela pretensão da professora? Pedi-lhe para dar uma vista de olhos à carta. Li-a com encenada pausa e, quando acabei, respondi afirmativamente. A professora em questão era uma pessoa muito briosa e merecia certamente aquilo que pedia. Achei que não constituía precedente para outros casos. Logo ali à minha frente o administrador assinou o respectivo deferimento. Tudo foi justo, não houve nada de errado, mas confesso que eu próprio não esperava ter de ir ver a minha própria carta uma segunda vez e opinar sobre o seu despacho.
Na mesma instituição, havia uma outra professora de um curso diferente. Por ela, apesar de algumas boas qualidades que também possuía, eu não poria muito as mãos no fogo. Era uma criativa. Forjava histórias com uma verosimilhança notável, que às vezes chegavam a causar embaraços. Dentro do seu currículo, contava-se um período de tempo em que fizera parte de um pool de secretárias de um determinado ministro. Havia já uns três ou quatro anos que não estava nesse ministério, mas essa tinha sido para ela a sua coroa de glória. Chegou a dar-me um cartão, já algo amarelado, com o seu nome e a posição que ocupara. Pelo menos com algumas das suas alunas, mantinha porém a versão de que continuava ligada ao ministério, o qual, por assim dizer, não a podia dispensar.
Um dia, foi ela própria que me contou que nas suas turmas costumava dar, por especial deferência, o seu número de telefone directo do ministério. Pedia-lhes para ligarem para lá sempre que tivessem algum problema sério que não conseguissem resolver. É evidente que, por ser para o ministério, não havia muitas alunas que lhe ligassem. Porém, salvo uma ou outra vez em que as alunas ouviam o telefone tocar e não obtinham qualquer resposta, o directo funcionava mesmo. Era a professora, ela mesma, que as atendia. Tinha-lhes dado o número de telefone da sua própria casa. Directíssimo.
A professora que acompanhava o grupo de alunos finalistas de um curso de turismo, todos eles entre os 21 e os 28 anos, era uma profissional competente, com larga experiência. O grupo fazia uma viagem de autocarro com a duração de 11 dias pelo Centro e Norte do país. O objectivo principal da viagem era dar a conhecer melhor Portugal, visitando monumentos, fazendo no autocarro e nas visitas prática de guia-intérprete ao mesmo tempo que faziam o reconhecimento de itinerários. Estabeleciam-se, ainda, contactos com autarquias e serviços oficiais de turismo.
Nas suas indicações à partida, a professora distribuiu algumas tarefas por vários alunos e, nas suas recomendações, salientou que o facto de aqueles jovens estarem vários dias fora de casa não deveria significar que iriam todas as noites a discotecas, com o correspondente regresso ao hotel a altas horas, passando depois as manhãs a dormir no assento do autocarro. Nos hotéis onde iam ficar, todo o barulho deveria ficaria cá fora, já que os restantes hóspedes tinham todo o direito de descansar. Acentuou que era a instituição onde os alunos estudavam que seria posta em causa na eventualidade de surgir algum comportamento menos correcto.
Se nos primeiros dias, nas Beiras, tudo correu bem, a certa altura os jovens alunos e alunas não quiseram deixar de dar à noite uma saltada a algumas discotecas mais conhecidas. Em Guimarães, no hotel em que estavam instalados, a professora notou que havia quem estivesse a exagerar. No dia de partida, ao fazer o check-out, recebeu das mãos do chefe da recepção uma carta, em envelope fechado, endereçada ao director do Instituto. Não teve qualquer dúvida: ainda no hotel reuniu o grupo e mostrou-lhes o envelope. Sem saber o que a carta dizia porque não lhe tinha sido endereçada a ela, considerou naturalmente o facto muito grave.
A partir daí, nas restantes três noites o comportamento do grupo foi bem diferente. Sentiram todos a responsabilidade de um puxão de orelhas.
O grupo regressou a Lisboa. No dia seguinte à chegada, a professora veio fazer-me um breve relatório da viagem. Eu era o coordenador do curso. Entregou-me em mão a tal carta do hotel. Fiz-lhe notar que o envelope estava endereçado ao director da instituição. Piscou-me o olho e insistiu para que eu o abrisse. Abri. Lá dentro estava uma folha A-4, dobrada da forma tradicional. Dizeres: zero. Absolutamente nada, uma folha em branco. A experiente professora tinha concebido todo o esquema. Depois, pedira na recepção para meterem a folha num envelope do hotel, endereçado ao director.
Conclusão: com um pouco de imaginação, é possível encontrar formas não-dispendiosas e eficientes de resolver problemas. Foi um típico caso de boa gestão e prevenção de conflitos.
A segunda historieta envolve também uma carta e passou-se com outra professora, que entrou um dia no gabinete onde eu trabalhava. Gostaria de fazer uma viagem de dois dias a Coimbra para refrescar os seus conhecimentos da cidade, com vista a melhorar as suas aulas. Como não possuía automóvel, iria em princípio de autocarro ou de comboio, mas preferiria certamente que a instituição cobrisse o custo da viagem e do hotel. Sem refeições. Ouvi. Disse-lhe que esse era um assunto que apenas a Administração poderia resolver. Concordou. E, como colega e amiga, pediu-me se eu não me importava de escrever uma carta ao administrador para ela depois assinar. Admitiu que não tinha muito jeito para escrever coisas dessas. Teclei rapidamente uma carta ao computador, que lhe mostrei. Concordou com tudo e, depois de feita a respectiva impressão, assinou e meteu a carta num envelope, que entregou na Secretaria.
Passados uns dias, o administrador veio ao meu gabinete falar de assuntos diversos, como era seu hábito, e pedir-me também uma opinião: deveria ou não custear aquela pretensão da professora? Pedi-lhe para dar uma vista de olhos à carta. Li-a com encenada pausa e, quando acabei, respondi afirmativamente. A professora em questão era uma pessoa muito briosa e merecia certamente aquilo que pedia. Achei que não constituía precedente para outros casos. Logo ali à minha frente o administrador assinou o respectivo deferimento. Tudo foi justo, não houve nada de errado, mas confesso que eu próprio não esperava ter de ir ver a minha própria carta uma segunda vez e opinar sobre o seu despacho.
Na mesma instituição, havia uma outra professora de um curso diferente. Por ela, apesar de algumas boas qualidades que também possuía, eu não poria muito as mãos no fogo. Era uma criativa. Forjava histórias com uma verosimilhança notável, que às vezes chegavam a causar embaraços. Dentro do seu currículo, contava-se um período de tempo em que fizera parte de um pool de secretárias de um determinado ministro. Havia já uns três ou quatro anos que não estava nesse ministério, mas essa tinha sido para ela a sua coroa de glória. Chegou a dar-me um cartão, já algo amarelado, com o seu nome e a posição que ocupara. Pelo menos com algumas das suas alunas, mantinha porém a versão de que continuava ligada ao ministério, o qual, por assim dizer, não a podia dispensar.
Um dia, foi ela própria que me contou que nas suas turmas costumava dar, por especial deferência, o seu número de telefone directo do ministério. Pedia-lhes para ligarem para lá sempre que tivessem algum problema sério que não conseguissem resolver. É evidente que, por ser para o ministério, não havia muitas alunas que lhe ligassem. Porém, salvo uma ou outra vez em que as alunas ouviam o telefone tocar e não obtinham qualquer resposta, o directo funcionava mesmo. Era a professora, ela mesma, que as atendia. Tinha-lhes dado o número de telefone da sua própria casa. Directíssimo.
4/24/2010
Uma simples pergunta
Faz parte dos direitos dos governados que os seus governantes lhes digam toda a verdade?
4/20/2010
Uma saudação especial para o João Miguel
Esta foi uma semana mais pobre no azweblog. Faltaram-nos as Sugestões do João Miguel! Com a excepção daqueles casos de férias ou festividades especiais em que as Sugestões são alargadas para cobrir um período de tempo mais longo, creio que esta foi a primeira vez que as magníficas indicações e recomendações do João Miguel não saíram. Houve decerto motivos muito particulares para esse facto. Aqui no azweblog acreditamos que esta semana voltaremos a ter as Sugestões a fazerem-nos a mais agradável e útil das companhias.
4/16/2010
Portugal e o complexo do Espírito Santo
Regra geral, quando uma criança se magoa, dizemos-lhe, para a animar, "Isso já passa!" A verdade é que às vezes passa mesmo – a palavra e o consequente voto de esperança distraíram a criança e a dor passou. Noutras vezes, não passa: existe um problema mais fundo, que tem de ser tratado de forma mais séria. O uso da palavra ajuda quase sempre, mas quando uma situação é mesmo grave, as soluções são, também elas, necessariamente gravosas. Não é só com palavras que se vai lá!
A questão, porém, é que há muita gente que julga que sim. No nosso país e na nossa cultura há muitos a saberem que não se pode tocar o sino e ir na procissão, ter sol na eira e chuva no nabal, ou não ter dinheiro e mesmo assim ter vícios, mas depois esquecem voluntariamente essas realidades. Ao ignorá-las – o José Gil diria que não as inscrevem – escamoteiam-nas para assim passarem a vida mais amenamente.
Os provérbios, como os acima citados e tantos outros, contêm chamadas de atenção que a experiência de séculos nos diz serem necessárias. A sua longa continuidade através dos tempos denota que as pessoas precisam desses avisos. De facto, eles não apenas para memorizar mas também, e principalmente, para interiorizar.
Como sabemos, a vida não são só palavras. A realidade acaba por impôr-se. Com óbvias excepções, pode dizer-se que o povo português nunca foi muito trabalhador no seu próprio país. Isto não quer dizer que muitos não se esfalfem a trabalhar, por vezes até em mais do que um posto de trabalho. Mas se se puder não trabalhar, há um elevado número de portugueses que prefere essa situação. Veja-se a popularidade da situação de reforma. Acresce que, em matéria de direitos e deveres, a população aprendeu nas últimas décadas a reclamar mais direitos do que a ganhar consciência dos seus deveres. Entre outras coisas, um povo que costumava ser poupado passou a endividar-se, isto é, a gastar mais do que aquilo que verdadeiramente estava ao seu alcance.
Com gastos excessivos, tanto do Estado, como das empresas e ainda dos particulares, não admira que o país esteja numa situação económica e financeira pouco confortável. Tal como algumas outras nações, aliás. E como se remedeia este facto, que é iniludível? Com palavras, como "Isto já passa!", sabemos de fonte segura que não.
Creio que a grande questão que presentemente nos aflige é a falta de hábito de encarar a realidade frontalmente. Para os políticos, aparentemente o que mais interessa nesta altura não é a necessidade de um tratamento profundo. Continuam a falar, a guerrear-se e a ter confrontos verbais que ajudam a tudo menos à unidade. Uma unidade consciente, entenda-se, que ajude a levantar o país e não o deixe afundar-se ainda mais. Estamos em meados de Abril e as medidas necessárias continuam a ser discutidas. Não se vê uma vontade firme de as pôr a actuar o mais cedo possível. 2010 mais parece ser um ano de intermezzo do que de início concreto de reformas. Escreveram-se princípios, delineou-se um programa de reequilíbrio – algo que é indiscutivelmente essencial – mas não se vê por enquanto uma vontade firme de agir. O Plano de Estabilidade e Crescimento propõe uma melhoria reduzida do défice, tipo "para o ano que vem é que é!". Essencial parece ser colocar a nação unida e consciente para que a situação melhore. O clima de mentiras e guerrilhas em que se tem vivido em nada ajuda, mas urge que seja ultrapassado. O fundamental é que o Estado, os políticos, os empresários, trabalhadores e estudantes se compenetrem de que existe uma necessidade urgente de um tratamento a sério.
Se insisto neste ponto, é porque Portugal é um país indisciplinado. Mas poderá melhorar, se interiorizar o que há a fazer. Aqui não se trata de ser apenas o Estado a puxar a carroça; trata-se de todos entenderem que há que puxar a carroça, e fazê-lo de facto. Se vivemos acima das nossas posses, teremos agora de pagar por isso. Todos, como é evidente. As medidas não podem ser apenas suaves, algumas terão que ser duras, embora tão equilibradas quanto possível. Se criámos uma bolha elevada no nosso modo de viver, essa bolha tem que rebentar para que a situação se normalize a médio prazo. Haverá naturais sacrifícios a fazer. Porém, se nos inteirarmos da necessidade desses sacrifícios, eles transformar-se-ão numa pena que entenderemos como justificada.
As vozes discordantes dirão desde já, como de costume, que a culpa é dos outros. É sempre dos outros. Quem fala, diz geralmente mal de A e de B para soar, ele próprio, como o virtuoso. Dentro da sua virtude, pretende convencer tudo e todos que agiu imaculadamente e que portanto deve ficar de fora no que respeita aos sacrifícios.
Há alguns anos, havia dois países que Portugal elegia como seus ídolos: a Finlândia e a Irlanda. Eram exaltadas as qualidades de ambos. O crescimento sustentado da Finlândia e a exemplaridade do seu sistema escolar eram tópicos frequentemente mencionados. Quanto à Irlanda, falava-se do "milagre irlandês". O seu PIB aumentou consideravelmente, o boom imobiliário foi notório, os investimentos estrangeiros ascenderam a um volume nunca anteriormente visto.
Presentemente, a sustentabilidade da Finlândia mantém-se. Já no que respeita ao "tigre celta", a crise instalou-se. Não há milagres na economia e nas finanças que não sejam produto de uma forte solidez. A crise do imobiliário veio para ficar. A Irlanda chegou a ser incluída como o segundo I da conhecida sigla depreciativa PIGS (Portugal, Italy, Greece, Spain). Já não neste momento. Porquê? Porque os irlandeses estão a fazer coisas que nos dão uma prova clara de que aprenderam a lição. Estão a ser muito mais pragmáticos e honestos do que nós. Não se ficam pelas palavras. Em vez de fazerem como os gregos e muitos portugueses – a apontarem o dedo ao capitalismo desenfreado, que é aliás uma realidade – os irlandeses instituíram um programa de grande austeridade. Os impostos foram aumentados, as despesas estatais foram cortadas. Este ano, a conta dos serviços sociais sofrerá o corte de um terço. No que respeita ao funcionalismo público, cujos salários aumentaram substancialmente durante os anos de maior desenvolvimento, haverá um corte médio de 7 por cento. Fica congelada a entrada de novos funcionários. Até agora não tem havido greves ou tumultos provocados por este apertar do cinto. Toca a todos. Na generalidade, os irlandeses reconhecem os seus próprios erros no processo e sabem que estão agora a pagar por eles. Entretanto, anseiam por vir a recuperar o nível de vida que tiveram, mas sabem que têm que trabalhar para isso. Muitos já emigraram para procurar trabalho noutros locais, algo que se justifica perante uma taxa de desemprego superior a 12 por cento.
Sei que este texto vai sofrer alguma contestação, verbalizada ou não. Para o que quero chamar a atenção é para a nossa necessidade de sermos mais realistas e deixarmos de ignorar determinados factos. Não advogo as mesmas medidas que acabei de citar, porque cada país é diferente, mas insisto numa política de honestidade e justiça.
Quando entrámos para a União Europeia, houve os calimeros habituais que lamentaram as perdas que iríamos sofrer em termos de soberania. Mas era claro que iríamos perder alguma coisa! Nós e cada um dos outros países. Não podemos continuar a sofrer do complexo do Espírito Santo que, como alguém disse, fazia com que nós portugueses pensássemos que Portugal era fecundado pela Europa mas lograva mesmo assim manter-se imaculado. Se queremos vantagens, não podemos pretender permanecer virgens. É puro contra-senso pensar-se assim. O mesmo sucede quando a polémica partidária anda à volta do "diz que não aumenta impostos, mas as deduções são impostos encapotados". Pois claro que são! Isso significa que os portugueses irão ter um rendimento pessoal menor neste ano e nos próximos. É evidente que sim. Importante é que a justiça funcione e puna implacável e celeremente aqueles que, em vez de colaborarem, procurem aproveitar-se da situação. Portugal precisa urgentemente de ser mais realista, mais honesto e verdadeiro.
A questão, porém, é que há muita gente que julga que sim. No nosso país e na nossa cultura há muitos a saberem que não se pode tocar o sino e ir na procissão, ter sol na eira e chuva no nabal, ou não ter dinheiro e mesmo assim ter vícios, mas depois esquecem voluntariamente essas realidades. Ao ignorá-las – o José Gil diria que não as inscrevem – escamoteiam-nas para assim passarem a vida mais amenamente.
Os provérbios, como os acima citados e tantos outros, contêm chamadas de atenção que a experiência de séculos nos diz serem necessárias. A sua longa continuidade através dos tempos denota que as pessoas precisam desses avisos. De facto, eles não apenas para memorizar mas também, e principalmente, para interiorizar.
Como sabemos, a vida não são só palavras. A realidade acaba por impôr-se. Com óbvias excepções, pode dizer-se que o povo português nunca foi muito trabalhador no seu próprio país. Isto não quer dizer que muitos não se esfalfem a trabalhar, por vezes até em mais do que um posto de trabalho. Mas se se puder não trabalhar, há um elevado número de portugueses que prefere essa situação. Veja-se a popularidade da situação de reforma. Acresce que, em matéria de direitos e deveres, a população aprendeu nas últimas décadas a reclamar mais direitos do que a ganhar consciência dos seus deveres. Entre outras coisas, um povo que costumava ser poupado passou a endividar-se, isto é, a gastar mais do que aquilo que verdadeiramente estava ao seu alcance.
Com gastos excessivos, tanto do Estado, como das empresas e ainda dos particulares, não admira que o país esteja numa situação económica e financeira pouco confortável. Tal como algumas outras nações, aliás. E como se remedeia este facto, que é iniludível? Com palavras, como "Isto já passa!", sabemos de fonte segura que não.
Creio que a grande questão que presentemente nos aflige é a falta de hábito de encarar a realidade frontalmente. Para os políticos, aparentemente o que mais interessa nesta altura não é a necessidade de um tratamento profundo. Continuam a falar, a guerrear-se e a ter confrontos verbais que ajudam a tudo menos à unidade. Uma unidade consciente, entenda-se, que ajude a levantar o país e não o deixe afundar-se ainda mais. Estamos em meados de Abril e as medidas necessárias continuam a ser discutidas. Não se vê uma vontade firme de as pôr a actuar o mais cedo possível. 2010 mais parece ser um ano de intermezzo do que de início concreto de reformas. Escreveram-se princípios, delineou-se um programa de reequilíbrio – algo que é indiscutivelmente essencial – mas não se vê por enquanto uma vontade firme de agir. O Plano de Estabilidade e Crescimento propõe uma melhoria reduzida do défice, tipo "para o ano que vem é que é!". Essencial parece ser colocar a nação unida e consciente para que a situação melhore. O clima de mentiras e guerrilhas em que se tem vivido em nada ajuda, mas urge que seja ultrapassado. O fundamental é que o Estado, os políticos, os empresários, trabalhadores e estudantes se compenetrem de que existe uma necessidade urgente de um tratamento a sério.
Se insisto neste ponto, é porque Portugal é um país indisciplinado. Mas poderá melhorar, se interiorizar o que há a fazer. Aqui não se trata de ser apenas o Estado a puxar a carroça; trata-se de todos entenderem que há que puxar a carroça, e fazê-lo de facto. Se vivemos acima das nossas posses, teremos agora de pagar por isso. Todos, como é evidente. As medidas não podem ser apenas suaves, algumas terão que ser duras, embora tão equilibradas quanto possível. Se criámos uma bolha elevada no nosso modo de viver, essa bolha tem que rebentar para que a situação se normalize a médio prazo. Haverá naturais sacrifícios a fazer. Porém, se nos inteirarmos da necessidade desses sacrifícios, eles transformar-se-ão numa pena que entenderemos como justificada.
As vozes discordantes dirão desde já, como de costume, que a culpa é dos outros. É sempre dos outros. Quem fala, diz geralmente mal de A e de B para soar, ele próprio, como o virtuoso. Dentro da sua virtude, pretende convencer tudo e todos que agiu imaculadamente e que portanto deve ficar de fora no que respeita aos sacrifícios.
Há alguns anos, havia dois países que Portugal elegia como seus ídolos: a Finlândia e a Irlanda. Eram exaltadas as qualidades de ambos. O crescimento sustentado da Finlândia e a exemplaridade do seu sistema escolar eram tópicos frequentemente mencionados. Quanto à Irlanda, falava-se do "milagre irlandês". O seu PIB aumentou consideravelmente, o boom imobiliário foi notório, os investimentos estrangeiros ascenderam a um volume nunca anteriormente visto.
Presentemente, a sustentabilidade da Finlândia mantém-se. Já no que respeita ao "tigre celta", a crise instalou-se. Não há milagres na economia e nas finanças que não sejam produto de uma forte solidez. A crise do imobiliário veio para ficar. A Irlanda chegou a ser incluída como o segundo I da conhecida sigla depreciativa PIGS (Portugal, Italy, Greece, Spain). Já não neste momento. Porquê? Porque os irlandeses estão a fazer coisas que nos dão uma prova clara de que aprenderam a lição. Estão a ser muito mais pragmáticos e honestos do que nós. Não se ficam pelas palavras. Em vez de fazerem como os gregos e muitos portugueses – a apontarem o dedo ao capitalismo desenfreado, que é aliás uma realidade – os irlandeses instituíram um programa de grande austeridade. Os impostos foram aumentados, as despesas estatais foram cortadas. Este ano, a conta dos serviços sociais sofrerá o corte de um terço. No que respeita ao funcionalismo público, cujos salários aumentaram substancialmente durante os anos de maior desenvolvimento, haverá um corte médio de 7 por cento. Fica congelada a entrada de novos funcionários. Até agora não tem havido greves ou tumultos provocados por este apertar do cinto. Toca a todos. Na generalidade, os irlandeses reconhecem os seus próprios erros no processo e sabem que estão agora a pagar por eles. Entretanto, anseiam por vir a recuperar o nível de vida que tiveram, mas sabem que têm que trabalhar para isso. Muitos já emigraram para procurar trabalho noutros locais, algo que se justifica perante uma taxa de desemprego superior a 12 por cento.
Sei que este texto vai sofrer alguma contestação, verbalizada ou não. Para o que quero chamar a atenção é para a nossa necessidade de sermos mais realistas e deixarmos de ignorar determinados factos. Não advogo as mesmas medidas que acabei de citar, porque cada país é diferente, mas insisto numa política de honestidade e justiça.
Quando entrámos para a União Europeia, houve os calimeros habituais que lamentaram as perdas que iríamos sofrer em termos de soberania. Mas era claro que iríamos perder alguma coisa! Nós e cada um dos outros países. Não podemos continuar a sofrer do complexo do Espírito Santo que, como alguém disse, fazia com que nós portugueses pensássemos que Portugal era fecundado pela Europa mas lograva mesmo assim manter-se imaculado. Se queremos vantagens, não podemos pretender permanecer virgens. É puro contra-senso pensar-se assim. O mesmo sucede quando a polémica partidária anda à volta do "diz que não aumenta impostos, mas as deduções são impostos encapotados". Pois claro que são! Isso significa que os portugueses irão ter um rendimento pessoal menor neste ano e nos próximos. É evidente que sim. Importante é que a justiça funcione e puna implacável e celeremente aqueles que, em vez de colaborarem, procurem aproveitar-se da situação. Portugal precisa urgentemente de ser mais realista, mais honesto e verdadeiro.
4/13/2010
Acende uma vela!
Tenho de confessar que cada vez me custa mais ouvir o discurso do bota-abaixo. Chega! O país não está bem? OK, não está. De acordo. Por nosso lado, vamos tentar pô-lo melhor e não enterrá-lo ainda mais, nem que seja só por palavras! O Primeiro-Ministro mentiu? Acho que sim. Tem boas qualidades? Também as tem. Já alguém conseguiu comprar um CD novo com 12 faixas todas elas excelentes? A justiça portuguesa funciona mal? Ninguém tem dúvida. Vamos pensar em medidas que a ponham melhor e, quando se notarem melhorias, citemo-las com mais entusiasmo ainda do que quando diagnosticámos os seus males. A corrupção é um facto? Não há país que a não tenha, mas é verdade que a taxa de corrupção em Portugal não se situa entre as mais baixas. Elejamos pessoas que a combatam e recusemo-nos a eleger aqueles que a alimentam. Mas não corroam mais o país com a conversa sobre corrupção, a não ser que seja para a desmascarar!
Lembremo-nos da clássica e sábia recomendação: "Quando vires que está escuro num sítio, não protestes contra a escuridão. Acende uma vela!"
4/09/2010
Quadradinhos de felicidade
Leio o título da notícia que o jornal publica - "Sonho europeu do Benfica acaba com goleada" – e pergunto a mim próprio se teria sido melhor para os adeptos não terem sonhado, para não sofrerem agora com a derrota. Não coloco a pergunta por ser benfiquista, que não sou, ou por o assunto em questão ser o futebol. Mas sim porque é vida. Teria valido mais não acalentar esperanças de que o Benfica passasse à eliminatória seguinte?
A minha resposta é "Não!". É bom sonhar, viver momentos de felicidade através do sonho, fundado este numa realidade provável ou improvável, mas sempre possível. Ser positivo relativamente às coisas é melhor do que o oposto. Enquanto se sonha, num caso destes ou em qualquer outro, é-se feliz. Por momentos. Por dias. Por semanas. Se depois o sonho não se realiza, a verdade é que já nos deu um prazer significativo. Afinal, não é toda a nossa vida um projecto e, em certa medida, um sonho sonhado, que um dia acaba de vez? Neste caso, felizmente para os sonhadores crentes, haverá mais eventuais alegrias no corrente ano e no que vem. Sonhar não é apenas matar o tempo. É viver. É que, quando apenas se mata o tempo, o tempo mata-nos mais depressa.
4/05/2010
O amigo da onça
Tudo o que é imposição causa oposição: a verdade contida nesta asserção é bem conhecida. Por esse motivo, quem tem que impor uma coisa tenta disfarçar essa imposição usando outras palavras e empregando justificações mais ou menos plausíveis, que depois são, por seu lado, mais ou menos bem aceites pela comunidade.
Aquilo que se impõe é, por definição, o imposto, o que nos transporta mentalmente para o mundo dos impostos. Do Estado. Virando a perspectiva, como lhe convém, o Estado prefere alternar o termo "contribuições" com "fiscalidade". Quando está menos eufemista e mais técnico, ainda usa "tributação". Numa outra versão igualmente comum, utiliza a palavra "imposto" mas em sigla. Daqui nasce, por exemplo, o I.M.I., que durante muitos anos se chamou Contribuição Autárquica e agora passou a usar a sigla que abrevia o longo nome de Imposto Municipal sobre Imóveis. Tanto a designação I.R.S. como a sua semelhante I.R.C. (Imposto sobre o Rendimento das pessoas Singulares, e idem das Colectivas) seguem o mesmo processo. O I.V.A. (Imposto sobre o Valor Acrescentado) baseia-se em idêntico princípio.
Desta luta transparece o óbvio: para o Estado a arrecadação de receitas através de impostos é um must, para os particulares e as empresas o pagamento de impostos é um esforço. Recordo-me do espontâneo sentimento de revolta que o meu filho revelou ao mostrar-me, há uns bons anos já, o documento que acompanhava o primeiro cheque que recebera pelo seu trabalho. Que injustiça aquelas deduções! Hoje, porém, já não protesta. Afinal, os outros têm também que engolir os factos da vida como ele.
Todos os outros? Bem, esse é precisamente o busílis da questão. Há muitos que tentam fugir e conseguem. Mas há também quem tente escapar dessa prisão-sem-grades dos impostos e seja apanhado. Tem, depois, de pagar dolorosas multas.
Se recuarmos um bom bocado no tempo, veremos que o reconhecimento oficial do nosso país pelo Papa Alexandre III – o reconhecimento papal era um sine qua non naqueles tempos do século XII -, demorou mais de trinta anos após Afonso VII de Leão e Castela ter reconhecido a soberania portuguesa, e custou dinheiro. O monarca português comprometeu-se inicialmente, a si e aos seus descendentes, a pagar quatro onças de ouro à Santa Sé, montante que depois aumentou para 16 onças. Começamos a entender melhor a razão por que o Estado, também ele recebedor de tributos, é hoje frequentemente visto como "o amigo da onça"!
Quem, a certa altura, entendeu igualmente o incómodo de pagar impostos ao Vaticano foi a Inglaterra, e não só. Aproveitando uma quezília com o Papa no século XVI – o mesmo século em que outros contestatários, alemães, deixaram de estar submetidos à figura papal – os ingleses emanciparam-se de Roma e criaram a chamada Igreja Anglicana. Poupando nos pagamentos, por um lado, passaram, por outro, a poder ser eles os cobradores ao atacarem navios católicos espanhóis provindos das Américas, carregados de ouro e prata que os nossos vizinhos ibéricos tinham "conquistado" aos índios pagãos do México, Peru e paragens similares. O sentido pragmático dos anglo-saxões já era nessa altura evidente.
Saltando agora para um tempo mais recente, verificamos que o pagamento de impostos ao Estado continua para muitos a ser um verdadeiro sacrifício. Para parcialmente resolver este problema, o Estado adoptou um processo que lembra aquele que as mães por vezes usam com os seus filhotes: dar-lhes um remédio que é necessário juntamente com a sopa. Seguindo um caminho similar, o Estado inclui numerosos impostos no preço dos produtos: são os chamados impostos indirectos, que no caso português representam bem mais do que metade da carga fiscal, e que nós pagamos quando compramos gasolina ou qualquer outro artigo.
E o contrato social? Bem, o contrato social que a maioria dos países da Europa reconhece e utiliza, implica o Estado, os trabalhadores e as entidades patronais. Contra uma dedução efectuada no salário do trabalhador e uma contribuição feita pela respectiva entidade patronal, ambas a deduzir do salário bruto – a tal diferença entre o valor ilíquido do salário e o montante que o cheque pago realmente exibe, que tanto faz no início saltar pessoas como sucedeu com o meu filho – o Estado garante vários serviços, de entre os quais avulta o da Segurança Social.
Mas, perguntam os empresários neoliberais nos dias de hoje, porque terão eles de pagar impostos para os seus trabalhadores? (Há anos, ouvi da boca de um dos maiores empregadores portugueses a declaração do montante que a sua firma entregava ao Estado mensalmente em impostos: nesse montante ele incluía as deduções para os seus trabalhadores.) O entendimento de que aqueles pagamentos que os empresários fazem para os seus trabalhadores são, afinal, mais um imposto que o Estado lhes cobra, denota uma ruptura, pelo menos mental, com a natureza do estado social. Vêem o seu lado, e apenas o seu lado. Com isso, apontam as armas a um objectivo óbvio: desmantelar a Segurança Social. Do seu ponto de vista, ganharão em dois carrinhos: passarão a não ter que pagar impostos para a Segurança dos seus empregados e poderão, directa ou indirectamente, cobrar depois pelos serviços privados a que a população se virá obrigada a recorrer. Sobre o que representa o desmantelamento da Segurança Social em termos de problemas, conflitos, criminalidade, desumanidade, etc., será melhor não falar aqui. Essa é uma outra questão. Mas que existirá um enorme retrocesso da nossa sociedade não tenhamos a mínima dúvida. Entretanto, o que poderemos esperar de pessoas que se preocupam apenas com o aumento dos seus lucros e que não hesitam em colocar os seus vultosos proveitos em offshores, fora do controlo directo dos Estados a que pertencem? (Também eles já deixaram de chamar aos offshores "paraísos fiscais", cientes de que aquilo que para si constitui um paraíso acaba por representar para muitos outros um infernal aumento de impostos.)
Com tudo isto, a sociedade mostra, afinal, toda a dinâmica que lhe está inerente. Nada é imutável. nada está certo, nada é garantido. Existe um constante e latente conflito de interesses, que ora faz a sociedade progredir em termos de qualidade de vida para a maioria, ora conduz para a mesma maioria a um retrocesso dessa mesma qualidade.
Recordo-me de há anos ter participado, em representação de um familiar meu que estava doente, na discussão da venda de uma estância de madeiras com cerca de 60 trabalhadores. Perguntei, algo ingenuamente, "E o que se faz com os empregados da firma?" "Os índios que se amanhem!", recebi como resposta. Os índios! Tal como aqueles índios americanos a quem despojaram de ouro, prata e outras preciosidades. O conflito é o mesmo. O homem continua a ser o maior inimigo do homem. E o amigo da onça.
Aquilo que se impõe é, por definição, o imposto, o que nos transporta mentalmente para o mundo dos impostos. Do Estado. Virando a perspectiva, como lhe convém, o Estado prefere alternar o termo "contribuições" com "fiscalidade". Quando está menos eufemista e mais técnico, ainda usa "tributação". Numa outra versão igualmente comum, utiliza a palavra "imposto" mas em sigla. Daqui nasce, por exemplo, o I.M.I., que durante muitos anos se chamou Contribuição Autárquica e agora passou a usar a sigla que abrevia o longo nome de Imposto Municipal sobre Imóveis. Tanto a designação I.R.S. como a sua semelhante I.R.C. (Imposto sobre o Rendimento das pessoas Singulares, e idem das Colectivas) seguem o mesmo processo. O I.V.A. (Imposto sobre o Valor Acrescentado) baseia-se em idêntico princípio.
Desta luta transparece o óbvio: para o Estado a arrecadação de receitas através de impostos é um must, para os particulares e as empresas o pagamento de impostos é um esforço. Recordo-me do espontâneo sentimento de revolta que o meu filho revelou ao mostrar-me, há uns bons anos já, o documento que acompanhava o primeiro cheque que recebera pelo seu trabalho. Que injustiça aquelas deduções! Hoje, porém, já não protesta. Afinal, os outros têm também que engolir os factos da vida como ele.
Todos os outros? Bem, esse é precisamente o busílis da questão. Há muitos que tentam fugir e conseguem. Mas há também quem tente escapar dessa prisão-sem-grades dos impostos e seja apanhado. Tem, depois, de pagar dolorosas multas.
Se recuarmos um bom bocado no tempo, veremos que o reconhecimento oficial do nosso país pelo Papa Alexandre III – o reconhecimento papal era um sine qua non naqueles tempos do século XII -, demorou mais de trinta anos após Afonso VII de Leão e Castela ter reconhecido a soberania portuguesa, e custou dinheiro. O monarca português comprometeu-se inicialmente, a si e aos seus descendentes, a pagar quatro onças de ouro à Santa Sé, montante que depois aumentou para 16 onças. Começamos a entender melhor a razão por que o Estado, também ele recebedor de tributos, é hoje frequentemente visto como "o amigo da onça"!
Quem, a certa altura, entendeu igualmente o incómodo de pagar impostos ao Vaticano foi a Inglaterra, e não só. Aproveitando uma quezília com o Papa no século XVI – o mesmo século em que outros contestatários, alemães, deixaram de estar submetidos à figura papal – os ingleses emanciparam-se de Roma e criaram a chamada Igreja Anglicana. Poupando nos pagamentos, por um lado, passaram, por outro, a poder ser eles os cobradores ao atacarem navios católicos espanhóis provindos das Américas, carregados de ouro e prata que os nossos vizinhos ibéricos tinham "conquistado" aos índios pagãos do México, Peru e paragens similares. O sentido pragmático dos anglo-saxões já era nessa altura evidente.
Saltando agora para um tempo mais recente, verificamos que o pagamento de impostos ao Estado continua para muitos a ser um verdadeiro sacrifício. Para parcialmente resolver este problema, o Estado adoptou um processo que lembra aquele que as mães por vezes usam com os seus filhotes: dar-lhes um remédio que é necessário juntamente com a sopa. Seguindo um caminho similar, o Estado inclui numerosos impostos no preço dos produtos: são os chamados impostos indirectos, que no caso português representam bem mais do que metade da carga fiscal, e que nós pagamos quando compramos gasolina ou qualquer outro artigo.
E o contrato social? Bem, o contrato social que a maioria dos países da Europa reconhece e utiliza, implica o Estado, os trabalhadores e as entidades patronais. Contra uma dedução efectuada no salário do trabalhador e uma contribuição feita pela respectiva entidade patronal, ambas a deduzir do salário bruto – a tal diferença entre o valor ilíquido do salário e o montante que o cheque pago realmente exibe, que tanto faz no início saltar pessoas como sucedeu com o meu filho – o Estado garante vários serviços, de entre os quais avulta o da Segurança Social.
Mas, perguntam os empresários neoliberais nos dias de hoje, porque terão eles de pagar impostos para os seus trabalhadores? (Há anos, ouvi da boca de um dos maiores empregadores portugueses a declaração do montante que a sua firma entregava ao Estado mensalmente em impostos: nesse montante ele incluía as deduções para os seus trabalhadores.) O entendimento de que aqueles pagamentos que os empresários fazem para os seus trabalhadores são, afinal, mais um imposto que o Estado lhes cobra, denota uma ruptura, pelo menos mental, com a natureza do estado social. Vêem o seu lado, e apenas o seu lado. Com isso, apontam as armas a um objectivo óbvio: desmantelar a Segurança Social. Do seu ponto de vista, ganharão em dois carrinhos: passarão a não ter que pagar impostos para a Segurança dos seus empregados e poderão, directa ou indirectamente, cobrar depois pelos serviços privados a que a população se virá obrigada a recorrer. Sobre o que representa o desmantelamento da Segurança Social em termos de problemas, conflitos, criminalidade, desumanidade, etc., será melhor não falar aqui. Essa é uma outra questão. Mas que existirá um enorme retrocesso da nossa sociedade não tenhamos a mínima dúvida. Entretanto, o que poderemos esperar de pessoas que se preocupam apenas com o aumento dos seus lucros e que não hesitam em colocar os seus vultosos proveitos em offshores, fora do controlo directo dos Estados a que pertencem? (Também eles já deixaram de chamar aos offshores "paraísos fiscais", cientes de que aquilo que para si constitui um paraíso acaba por representar para muitos outros um infernal aumento de impostos.)
Com tudo isto, a sociedade mostra, afinal, toda a dinâmica que lhe está inerente. Nada é imutável. nada está certo, nada é garantido. Existe um constante e latente conflito de interesses, que ora faz a sociedade progredir em termos de qualidade de vida para a maioria, ora conduz para a mesma maioria a um retrocesso dessa mesma qualidade.
Recordo-me de há anos ter participado, em representação de um familiar meu que estava doente, na discussão da venda de uma estância de madeiras com cerca de 60 trabalhadores. Perguntei, algo ingenuamente, "E o que se faz com os empregados da firma?" "Os índios que se amanhem!", recebi como resposta. Os índios! Tal como aqueles índios americanos a quem despojaram de ouro, prata e outras preciosidades. O conflito é o mesmo. O homem continua a ser o maior inimigo do homem. E o amigo da onça.
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