Tudo o que é imposição causa oposição: a verdade contida nesta asserção é bem conhecida. Por esse motivo, quem tem que impor uma coisa tenta disfarçar essa imposição usando outras palavras e empregando justificações mais ou menos plausíveis, que depois são, por seu lado, mais ou menos bem aceites pela comunidade.
Aquilo que se impõe é, por definição, o imposto, o que nos transporta mentalmente para o mundo dos impostos. Do Estado. Virando a perspectiva, como lhe convém, o Estado prefere alternar o termo "contribuições" com "fiscalidade". Quando está menos eufemista e mais técnico, ainda usa "tributação". Numa outra versão igualmente comum, utiliza a palavra "imposto" mas em sigla. Daqui nasce, por exemplo, o I.M.I., que durante muitos anos se chamou Contribuição Autárquica e agora passou a usar a sigla que abrevia o longo nome de Imposto Municipal sobre Imóveis. Tanto a designação I.R.S. como a sua semelhante I.R.C. (Imposto sobre o Rendimento das pessoas Singulares, e idem das Colectivas) seguem o mesmo processo. O I.V.A. (Imposto sobre o Valor Acrescentado) baseia-se em idêntico princípio.
Desta luta transparece o óbvio: para o Estado a arrecadação de receitas através de impostos é um must, para os particulares e as empresas o pagamento de impostos é um esforço. Recordo-me do espontâneo sentimento de revolta que o meu filho revelou ao mostrar-me, há uns bons anos já, o documento que acompanhava o primeiro cheque que recebera pelo seu trabalho. Que injustiça aquelas deduções! Hoje, porém, já não protesta. Afinal, os outros têm também que engolir os factos da vida como ele.
Todos os outros? Bem, esse é precisamente o busílis da questão. Há muitos que tentam fugir e conseguem. Mas há também quem tente escapar dessa prisão-sem-grades dos impostos e seja apanhado. Tem, depois, de pagar dolorosas multas.
Se recuarmos um bom bocado no tempo, veremos que o reconhecimento oficial do nosso país pelo Papa Alexandre III – o reconhecimento papal era um sine qua non naqueles tempos do século XII -, demorou mais de trinta anos após Afonso VII de Leão e Castela ter reconhecido a soberania portuguesa, e custou dinheiro. O monarca português comprometeu-se inicialmente, a si e aos seus descendentes, a pagar quatro onças de ouro à Santa Sé, montante que depois aumentou para 16 onças. Começamos a entender melhor a razão por que o Estado, também ele recebedor de tributos, é hoje frequentemente visto como "o amigo da onça"!
Quem, a certa altura, entendeu igualmente o incómodo de pagar impostos ao Vaticano foi a Inglaterra, e não só. Aproveitando uma quezília com o Papa no século XVI – o mesmo século em que outros contestatários, alemães, deixaram de estar submetidos à figura papal – os ingleses emanciparam-se de Roma e criaram a chamada Igreja Anglicana. Poupando nos pagamentos, por um lado, passaram, por outro, a poder ser eles os cobradores ao atacarem navios católicos espanhóis provindos das Américas, carregados de ouro e prata que os nossos vizinhos ibéricos tinham "conquistado" aos índios pagãos do México, Peru e paragens similares. O sentido pragmático dos anglo-saxões já era nessa altura evidente.
Saltando agora para um tempo mais recente, verificamos que o pagamento de impostos ao Estado continua para muitos a ser um verdadeiro sacrifício. Para parcialmente resolver este problema, o Estado adoptou um processo que lembra aquele que as mães por vezes usam com os seus filhotes: dar-lhes um remédio que é necessário juntamente com a sopa. Seguindo um caminho similar, o Estado inclui numerosos impostos no preço dos produtos: são os chamados impostos indirectos, que no caso português representam bem mais do que metade da carga fiscal, e que nós pagamos quando compramos gasolina ou qualquer outro artigo.
E o contrato social? Bem, o contrato social que a maioria dos países da Europa reconhece e utiliza, implica o Estado, os trabalhadores e as entidades patronais. Contra uma dedução efectuada no salário do trabalhador e uma contribuição feita pela respectiva entidade patronal, ambas a deduzir do salário bruto – a tal diferença entre o valor ilíquido do salário e o montante que o cheque pago realmente exibe, que tanto faz no início saltar pessoas como sucedeu com o meu filho – o Estado garante vários serviços, de entre os quais avulta o da Segurança Social.
Mas, perguntam os empresários neoliberais nos dias de hoje, porque terão eles de pagar impostos para os seus trabalhadores? (Há anos, ouvi da boca de um dos maiores empregadores portugueses a declaração do montante que a sua firma entregava ao Estado mensalmente em impostos: nesse montante ele incluía as deduções para os seus trabalhadores.) O entendimento de que aqueles pagamentos que os empresários fazem para os seus trabalhadores são, afinal, mais um imposto que o Estado lhes cobra, denota uma ruptura, pelo menos mental, com a natureza do estado social. Vêem o seu lado, e apenas o seu lado. Com isso, apontam as armas a um objectivo óbvio: desmantelar a Segurança Social. Do seu ponto de vista, ganharão em dois carrinhos: passarão a não ter que pagar impostos para a Segurança dos seus empregados e poderão, directa ou indirectamente, cobrar depois pelos serviços privados a que a população se virá obrigada a recorrer. Sobre o que representa o desmantelamento da Segurança Social em termos de problemas, conflitos, criminalidade, desumanidade, etc., será melhor não falar aqui. Essa é uma outra questão. Mas que existirá um enorme retrocesso da nossa sociedade não tenhamos a mínima dúvida. Entretanto, o que poderemos esperar de pessoas que se preocupam apenas com o aumento dos seus lucros e que não hesitam em colocar os seus vultosos proveitos em offshores, fora do controlo directo dos Estados a que pertencem? (Também eles já deixaram de chamar aos offshores "paraísos fiscais", cientes de que aquilo que para si constitui um paraíso acaba por representar para muitos outros um infernal aumento de impostos.)
Com tudo isto, a sociedade mostra, afinal, toda a dinâmica que lhe está inerente. Nada é imutável. nada está certo, nada é garantido. Existe um constante e latente conflito de interesses, que ora faz a sociedade progredir em termos de qualidade de vida para a maioria, ora conduz para a mesma maioria a um retrocesso dessa mesma qualidade.
Recordo-me de há anos ter participado, em representação de um familiar meu que estava doente, na discussão da venda de uma estância de madeiras com cerca de 60 trabalhadores. Perguntei, algo ingenuamente, "E o que se faz com os empregados da firma?" "Os índios que se amanhem!", recebi como resposta. Os índios! Tal como aqueles índios americanos a quem despojaram de ouro, prata e outras preciosidades. O conflito é o mesmo. O homem continua a ser o maior inimigo do homem. E o amigo da onça.
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