3/30/2010

Diferenças culturais


Digamos, para começar, aquilo que poderia ser dito em jeito de conclusão: diferenças levam a diferendos. Maneiras desiguais de olhar a vida e as variadíssimas questões que esta levanta estão frequentemente na origem de associações de pessoas em grupos diversos, os quais se combatem mutuamente por palavras ou por meios mais duros e, por vezes, até letais. Em países onde existe democracia institucional, areópagos como o Parlamento são palco de acesas discussões, das quais os meios de comunicação social – muitas vezes eles próprios com a sua cor bem definida – fazem eco para o público. É próprio da sociedade humana manter opiniões diferentes, produto das características próprias e modo de pensar de cada um. Se essa variedade de pensamento e expressão não é consentida, estamos perante um regime ditatorial: o regime outorga-se o direito de pensar pelo todo e a todos impõe a sua opinião. Qualquer notória divergência é reprimida pelos meios que o regime na ocasião considera os mais adequados. Nestes casos, a grande vantagem da democracia é o seu princípio da livre expressão. Esta tem, no entanto, também os seus custos, económicos e sociais, como aliás sucede com todos os conflitos.
Gostaria que esta breve introdução servisse para entrarmos um pouco no tema das reformas do sistema de saúde que Obama prometeu ao povo americano antes de ser eleito e que têm sido duramente postas em causa na América por eleitores discordantes. A revelação de que, numa população de cerca de 250 milhões de pessoas, existiam uns 40 milhões sem cobertura de saúde garantida, terá levado Obama a querer quebrar esta injustiça social. Ora, 40 milhões, apesar de representarem quatro vezes a população de Portugal, constituem uma minoria relativamente à restante população dos Estados Unidos. Esta promessa que Obama fez durante a sua camapnha para a Presidência revelou um elevado sentido de justiça social e de democracia. Mostrou, além disso, uma extraordinária coragem – a coragem daqueles raros governantes que governam mais para as gerações do que para as eleições. Teve que lutar muito duramente para cumprir a sua promessa, mas para já tem sido bem sucedido.
Entretanto, pode bem dizer-se que parte da procissão ainda vai no adro. Pessoalmente, admito que só se estivesse a viver na sociedade americana me aperceberia mais concretamente do que se passa, mas creio que há uma pergunta que muita gente que é contra a reforma formula: se tudo tem funcionado razoavelmente até agora, porquê fazer um cavalo de batalha na mudança do sistema? Será que estamos de facto em presença de uma injustiça social? Na enorme e ruidosa manifestação em Washington no dia da decisiva votação, viam-se cartazes dos que se opunham que deixavam uma mensagem importante sobre o diferendo: In America, We Don’t Redistribute Wealth, We Earn It. (Na América não redistribuímos a riqueza; ganhamo-la com o nosso esforço!)
Juntamente com alguns interesses que são afectados e que, naturalmente, contribuíram para a acção de lobbying contra a reforma da saúde, este ponto parece-me fulcral. Estabelece a distinção entre, por assim dizer, a caridade institucionalizada e o dever intrínseco de cada um conseguir sobreviver pelos seus próprios meios, trabalhando e produzindo. Numa sociedade culturalmente católica como a portuguesa, poderá parecer chocante este segundo ponto de vista, mas tudo depende da perspectiva e da formação de cada um. Alguém que se esforçou toda a vida e educou os seus no sentido de se tornarem independentes o mais cedo possível e é agora confrontado com a necessidade de contribuir, através de uma parcela maior ou menor dos seus ganhos, para cuidar de outros que, em sua opinião, não só não lhe são nada como provavelmente não fizeram tudo aquilo que as regras da sociedade determinam que seja feito para sobreviverem com os seus próprios meios, tenderá naturalmente a reagir. Sentirá mesmo, possivelmente, que está a ser forçado a colaborar nalguns casos com pessoas com vícios, o que para ele é constrangedor. (Esta visão não é apenas apanágio dos Estados Unidos, como bem se entenderá, mas lá terá uma corrente mais forte. Em Portugal, recebi não há muito tempo no meu computador uma linha supostamente humorística que dizia: Não esmoreças nem desistas. Trabalha duro! Milhares de pessoas que vivem do Rendimento Mínimo, sem trabalhar, dependem de ti!)
Ainda há dias, em conversa com um amigo eu lembrava uma história que se passou comigo e que já uma vez contei neste blog. Tendo visitado uns amigos nos Estados Unidos, fiquei agradavelmente surpreendido com umas caixinhas que esses meus amigos americanos tinham no seu jardim para alimentar os passaritos das redondezas. Regressado a Portugal, arranjei um dispositivo idêntico junto à janela da minha casa. Com sucesso. Numa das vezes que esses amigos vieram à Europa, estiveram em minha casa e mostrei-lhes o que tinha feito. "Em Boston já deitámos isso fora há mais de um ano! Disseram-nos que estávamos a habituar os pássaros a encontrar a comida já prontinha. Assim os pássaros perdiam qualidades e não conseguiriam nunca sobreviver em condições mais difíceis." Aqui estava a lição americana. Os cartazes a que acima me refiro não diziam outra coisa.
O projecto da Administração Obama passou vitorioso na votação, mas obrigou os democratas a cerrar fileiras. Nem um dos republicanos votou a favor de um projecto que coloca dentro do sistema de cuidados de saúde todos aqueles trabalhadores pobres a quem a entidade patronal não paga o correspondente seguro de saúde, porque a tal não é obrigada. As companhias de seguros, que até agora se podiam negar a aceitar os potenciais segurados que bem entendessem, vão em princípio deixar de poder fazê-lo. Entretanto, mencione-se que os pobres não empregados têm direito ao Medicaid, estando portanto cobertos. A ser bem sucedido, este é um projecto que poderá grangear votos aos democratas, o que, aliás, constitui uma das fortes razões para a oposição feita pelos republicanos. Os mais extremistas de entre estes ergueram o fantasma de um Estado excessivamente grande e poderoso que seria claramente socialista e poderia conduzir ao totalitarismo. Diferendos causados por diferenças de opinião!
Possivelmente pelas suas características de amálgama de imigrantes cansados de hierarquias nos seus respectivos países, o americano médio desenvolveu ao longo da sua história uma reacção muito acentuada relativamente a autoridades de tipo ideológico. Grosso modo, os americanos gostam de pensar pela sua cabeça e reagem a argumentos tais como "os cientistas não têm dúvidas sobre o aquecimento global" ou "a teoria do evolucionismo de Darwin não pode ser posta em questão". Muitos continuam a não aceitar o primeiro argumento e, quanto ao segundo, mantêm teorias por outros consideradas antiquadas. Este posicionamento não deixa de estar relacionado com a atitude básica da Reforma religiosa, muito presente nas correntes imigratórias iniciais, que pressupõe a não-existência de intermediários entre o povo e Deus: qualquer um pode ler a Bíblia e ser tão conhecedor da verdade como um teólogo. Cada pessoa tem em si a mesma capacidade de acesso a Deus.
Um assunto interessante, um debate que faz sentido.

Sem comentários:

Enviar um comentário