3/18/2010

Sobre nomes de ruas e monumentos públicos



Segundo os jornais, um grupo de deputados do PS vai propor na Assembleia da República um projecto de lei que visa proibir o uso de nomes de pessoas ainda vivas para "baptizar" espaços públicos, tais como ruas, praças, jardins ou equipamentos financiados pelo Estado.
A medida, da qual devo desde já adiantar que não discordo na generalidade, traz-me à memória as figuras de Dostoievsky e de Estaline. Para se entender o humor subjacente a esta história verídica sobre uma estátua a erigir ao famoso escritor russo Dostoievsky, temos que nos lembrar da maneira como Estaline, o ditador russo dos anos da Segunda Guerra Mundial, gostava de se ver retratado: ele era o sol da Rússia, o grande timoneiro da União Soviética, a luz do mundo. Ora, foi a esse Josef Estaline que a dado momento ocorreu que a sua Rússia tinha uma enorme dívida para com um dos seus maiores escritores. Dostoievsky, o autor de Crime e Castigo, Humilhados e Ofendidos e d'Os Irmãos Karamazov, não possuía em toda a vasta União Soviética uma só estátua que o celebrasse. Do seu todo-poderoso Kremlin de Moscovo, Estaline lançou um repto a todos os criativos do país, de escultores a pintores, de arquitectos a engenheiros, para que enviassem ideias para uma grande estátua de homenagem ao escritor. Choveram projectos. Num, Dostoievsky surgia sentado a uma mesa a escrever, noutro brandindo vigorosamente uma espada, noutro ainda aparecia a cavalo; mais um mostrava-o de mão segurando pensativamente o queixo, qual pensador de Rodin. Foram centenas os projectos. Os artistas russos entenderam bem a justiça da homenagem a prestar ao grande escritor. O júri reuniu-se, a escolha foi feita. Recaíu sobre um projecto que mostrava... Estaline lendo um livro de Dostoievsky!
Esta é uma história que ilustra de forma jocosa mas certeira a necessidade que muitos homens (e mulheres) de poder sentem de poder ultrapassar a morte. Ter uma estátua sua, um nome de rua ou de praça numa cidade, um pavilhão de desportos com o seu nome seria, para muita gente, um passaporte para a eternidade, um ultrapassar da própria morte, uma glória não efémera.
Mas quem é juiz dos homens? Mesmo Deus faz um juízo final. Ora, antes do fim, antes de algum tempo passar para que toda a poeira levantada pela vida possa assentar será conveniente emitir esse passaporte para o futuro? E se depois se vem a descobrir que a personalidade em questão ocultava, afinal, inúmeros defeitos e múltiplos pecados e não apenas simples pecadilhos? Muda-se então o nome do arruamento? Mudar raramente é fácil.
Mas também não é muito difícil, admitamos. A Ponte Salazar, terminada em 1966 – portanto, ainda em vida de Oliveira Salazar – viu num ápice alterado o seu nome para Ponte 25 de Abril com a revolução de 1974. Muito mais recentemente, conforme conta o jornal Público, Manuel Quintas, antigo pároco da freguesia de Areosa, em Viana do Castelo, tinha um largo com o seu nome. Contudo, nas últimas autárquicas, o Padre Manuel Quintas apelou publicamente ao voto no PS. Os eleitos locais, maioritariamente do PSD, não gostaram e, na primeira assembleia de freguesia do actual mandato, apenas há três meses, aprovaram uma proposta para retirar o nome do padre da toponímia local. Ironicamente, o Largo Padre Manuel Correia Quintas, designação que vigorava há várias décadas, foi rebaptizado como Largo da Liberdade.
Se este projecto de lei for avante e conseguir aprovação, a Constituição portuguesa não permitirá o seu efeito retroactivo. A dar-se essa retroactividade, o actual Presidente da República veria o seu nome riscado de uma rua em Rio Tinto, Santana Lopes de uma outra na Figueira da Foz, Manuel Pinho igualmente de uma rua em Paços de Ferreira, Pinto da Costa de uma outra rua, desta vez em Marco de Canavezes, José Carlos Malato de uma praça em Monforte, José Saramago de ruas em Gondomar, Barreiro, Borba, Queluz, Entroncamento e Azinhaga do Ribatejo. Nesta última localidade, de onde José Saramago é natural, a rua com o seu nome faz esquina com a Rua Pilar del Rio, sua mulher. Quanto a nomes de artistas de teatro e da televisão, como o já mencionado caso de Malato, os exemplos são muito numerosos. Mas, como atrás refiro, podemos estar todos descansados, porque esses nomes não serão alterados pelo articulado do referido projecto-lei, caso ele seja um dia aprovado.
Como bem sabemos, o desejo de glória eterna não vem de agora. Nem é obra do século XX. O romano Júlio César não descansou enquanto não viu o Senado do seu tempo aprovar a sua entrada no mundo dos deuses, junto a Juno e a Marte, através do seu próprio nome. E conseguiu que o seu nome enfileirasse no domínio desses arruamentos temporais que se chamam meses! Júlio lá está, com o seu mês que chegou até nós com a designação de Julho. Ele tinha nascido nesse mês (Quintilis, em latim). Que homenagem melhor lhe podiam prestar do que designar o próprio tempo com o seu nome? Como seria previsível, o imperador que se lhe seguiu – César Augusto – também quis para si um mês. Foi a aplicação do nosso conhecido conceito "Já agora...!". E assim nasceu Agosto, com 31 dias para que a homenagem a César Augusto não fosse menor do que a que tinha sido feita a Júlio César (foram buscar um dia ao mês mais fraquinho, Fevereiro, mas os pobres nascem para sofrer e, de qualquer forma, isso seria outra história que não é para aqui chamada).
Concluindo: em razão desta sede de glória e imortalidade do género humano, deveremos ou não concordar com a impossibilidade de pessoas como o ex-autarca Avelino Ferreira Torres ou o ainda autarca de Mafra, Ministro dos Santos, darem o seu nome a espaços públicos nos seus municípios, o que de facto fizeram?
Por mim, rejo-me pela filosofia que subjaz à ironia da velha máxima de Schopenhauer (1788-1860): "Erigir um monumento a uma pessoa em vida significa que não que há que fiar-se na posteridade."

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