3/23/2010

Um país zangado


Ao longo dos últimos anos, Portugal transformou-se num país aparentemente descontente consigo próprio. (Se digo "aparentemente" é porque poderá não estar tão descontente assim, mas isso faz parte da arte de estar na vida.) Para onde quer que vamos, ouvimos protestar. Por tudo e por nada. Seja qual for o noticiário que oiçamos, na rádio ou na televisão, ou o jornal que leiamos, apercebemo-nos de uma situação de descontentamento geral.
Nada disto é verdadeiramente novo, entenda-se. Portugal é mesmo o país do fado das queixas. Porém, como aqueles que são mais velhos se lembrarão, antes da Revolução de 1974 discutia-se muito menos: as grandes situações de conflito passavam-se mais lá fora, no estrangeiro, do que cá dentro. Aqui reinava a paz, uma paz que era muitas vezes podre, que tanto a censura exercida sobre os meios de comunicação social como a presença ubíqua da polícia política impunham. Libertado que foi o país, deu-se a explosão do muito que tinha ficado reprimido, berrou-se como não era costume fazer-se e organizaram-se enormes manifestações, que isso de valentia expressa-se melhor quando se vai em boa e larga companhia.
Desapareceu o medo de falar contra o governo, seja ele qual for, na rua, nos cafés, nos transportes públicos. Mais do que isso: quem não se manifesta contra é porque está feito com "eles". Para que esta desconfiança não surja na mente das pessoas, torna-se cómodo, mesmo para quem não discorda tão abertamente, dar uma bicada no governo aqui e ali. Se o fizer já passa a ser mais "um dos nossos" e deixa de ser visto como alguém que é ainda feliz por poder auferir de insondáveis privilégios vedados aos demais.
A situação recorda-me o que às vezes se passa com as viúvas, nomeadamente em meios pequenos. Não lhes basta a desdita de terem perdido o marido; também precisam de deitar cá para fora - para os outros - toda a mágoa que sentem. Se por acaso vestem algo colorido antes de ter passado um determinado período de tempo, há quem se interrogue se a viúva não se terá afinal regozijado com a morte do marido e terá mesmo contribuído para o infeliz desenlace. Tendo em vista os costumes, a viúva lamenta-se, carpe, veste de preto e faz todo o esforço para não se rir, nem bater palmas ou parecer minimamente feliz.
É em parte assim que Portugal me surge neste momento. Apesar do sol que brilha como sempre neste início de Primavera após um Inverno demasiado chuvoso, e não obstante a melhoria de vida que foi sensível desde a Revolução (basta ver o número de pessoas com casa própria antes e agora, basta ver a quantidade de automóveis que circulam nas estradas, basta ver a actual percentagem de pessoas com estudos secundários e superiores, os lares com televisão, computadores, telefones fixos e móveis, electrodomésticos, etc.) a insatisfação mantém-se. Há problemas? É verdade que há. E, numa sociedade que é por natureza dinâmica, esses problemas têm necessariamente de existir. Mais agravados ficaram com a recessão causada, entre outros factores, pela ganância capitalista de uns tantos poderosos que criaram o habilidoso conceito de globalização para assim melhor poderem explorar economicamente populações que auferem salários de miséria. Graças à execução prática desse conceito, ao aumento do emprego nas terras do Oriente de salários baixíssimos correspondeu a subida do desemprego nas terras do Ocidente de salários médios ou comparativamente elevados. Este é um facto e um problema que urge resolver, mas não será, só por si, razão suficiente para que quase todos neste país estejam contra os sucessivos governos, protestando e acusando pessoas por tudo e por nada, assim diminuindo a sua felicidade e a dos outros. E baixando a produtividade. País zangado produz muito menos. Portugal é hoje um país zangado. E mais desconfiado que nunca. O boneco do Bordalo Pinheiro expressa-o bem.

Sem comentários:

Enviar um comentário