Há muitas pessoas que, na sua infância, na sua adolescência ou mesmo mais tarde, por vezes sonham que estão a ser perseguidas por um touro e que, para seu desespero, não conseguem correr, os pés como que grudados ao chão. Acabam por acordar. O pesadelo termina, mas pode ser recorrente. As pessoas em questão sentem um aperto de qualquer coisa que as oprime. É de angústia que se trata.
Porquê um touro, pode perguntar-se, e não um gato, por exemplo? Porque o touro é um símbolo de força, ameaçador e amedrontador. Dele temos medo. Dum gato, não. Touro diz-se bull em inglês. Um bully é alguém que usa a sua força ou poder para magoar ou aterrorizar outros. À acção dos bullies chama-se bullying.
Com este nome ou com outro, trata-se de um fenómeno relativamente comum. No reino animal é frequente. Com os humanos, o bullying acontece a muitos níveis, nomeadamente no meio laboral, no mundo político e também no ambiente estudantil. Os mais fortes tentam mostrar por que razão são os mais poderosos. Dos mais fracos pretendem a submissão e, por vezes, mesmo a humilhação. As praxes universitárias têm o seu lado de bullying, embora esta faceta possa durar basicamente apenas um dia ou dois.
No mês passado, José Couto Nogueira lembrava no jornal em que colabora que "é um mito o que Locke e Rousseau disseram: o homem no seu estado selvagem é bom e é a sociedade que o torna mau. É precisamente o contrário: o homem selvagem é o animal na luta pela sobrevivência. A necessidade de se associar a outros homens (por razões emocionais e materiais) é que leva a um comportamento "civilizado". Sujeita-se a restrições para ter as vantagens da sociedade organizada." Acho que, basicamente, Couto Nogueira tem razão. Existe muita perversidade intrínseca nas pessoas, incluindo crianças, que depois tende a ser mais ou menos sublimada. Todos nós já vimos miúdos de escola a chamarem nomes a outros ou a terem atitudes provocatórias para testarem a reacção desses outros. Se estes reagem, podem facilmente chegar a uma cena de pancadaria. O grupo provocador, crendo-se mais forte, investe em jeito de touro bravo. Se os outros não respondem, recebem o epíteto de maricas e ficam marcados.
Após o aparente suicídio de um jovem estudante em Mirandela, o caso narrado esta semana pelos jornais do suicídio de um professor devido a um contínuo assédio provocatório (bullying) por parte de um determinado grupo de alunos impressionou-me por dois motivos principais: (1) tudo se passou no domínio da educação; e (2) terminou em suicídio.
Em princípio não deveria ter sucedido na área educativa. A educação tem, entre outras finalidades, a de levar os alunos a atitudes “civilizadas”, próprias de seres humanos. A insensibilidade que os elementos gozadores mostram perante os sentimentos dos gozados mostra até que ponto a educação não cumpre a sua finalidade.
Na minha experiência de professor, recordo-me de vários casos que poderiam cair neste domínio. Dentro de uma acção de praxe realizada numa escola superior em que leccionei, houve um aluno que lançou umas gotas de ácido à cara de uma sua colega. Esta ficou com o rosto marcado e perdeu o emprego que tinha na altura: trabalhava numa perfumaria. Felizmente, alguns meses depois a acção do ácido desvaneceu-se. Quanto ao aluno, foi, primeiramente, alvo de um processo e, depois, expulso.
Num outro caso, bem diferente, contratei uma nova professora para umas aulas de História da Arte. A pessoa em questão possuía um mestrado naquela área, mas não tinha ainda experiência de ensino. Terminara o referido mestrado havia pouco tempo e com boa classificação. Estava desejosa de começar a ensinar. Era uma pessoa algo tímida mas simpática, de trinta e sete anos, bonita e de família abastada. Após conversar detidamente com ela como coordenador do curso, levei-a a uma das duas turmas que ela iria leccionar. As primeiras aulas correram aparentemente bem, embora ela não tenha gostado do número de alunos, que lhe pareceu demasiado elevado – e era, de facto. Na terceira ou quarta semana, voltei a falar com ela. Não aparentava grande satisfação. Um dia faltou. Telefonei-lhe. Confessou-me que, nos dias de aulas, logo de manhã se sentia com vómitos só de pensar que tinha que enfrentar aquelas turmas. Não o conseguia evitar. Falámos com calma no gabinete onde eu trabalhava. Ouvi-a. Percebi que ela não conseguia obter silêncio na sala e tinha dificuldade em manter a disciplina com uma turma grande. Auscultei os delegados dos alunos, que me falaram com franqueza. Havia ali um problema de facto, mas não era de conhecimentos. Dada a situação, voltei a falar com a professora e ambos concordámos que aquela não era, infelizmente, a experiência que ela esperava. Culpei o número excessivo de alunos pelo sucedido, numa tentativa de a salvar na sua auto-estima, ela que tinha mostrado tanto entusiasmo por ensinar. Encorajei-a a tentar uma experiência diferente, mas noutros termos. Aqueles vómitos de que ela me falara representavam uma recusa total. Não havia saída possível. Sem qualquer zanga de parte a parte, ela abandonou. Como era proprietária de uma loja de antiguidades, continuou à frente do seu estabelecimento. Procurei-a mais tarde. Não tinha esquecido a situação, mas o mau tempo já tinha passado.
Num caso ocorrido há mais de quatro décadas comigo próprio, recordo-me que cheguei na altura a confessar a amigos meus: "Se eu tivesse apenas este colégio para leccionar, diria que não tinha o mínimo jeito para o ensino." Era o meu terceiro ano de leccionação, após dois outros bem sucedidos. Uma determinada turma de alunos com 14 ou 15 anos revelou-se especialmente difícil. Tratava-se de filhos de algumas das mais conhecidas famílias de Portugal e, quais imperadores adolescentes, julgavam poder fazer tudo o que lhes apetecia. Digamos que, por razões diplomáticas, a Direcção não actuava com a disciplina que se impunha. Se bem me lembro, cheguei a desesperar. No final do ano saí para uma outra instituição privada, aliás pertencente à mesma organização, mas agora de ensino superior. Foi um alívio tremendo. Nessa nova instituição trabalhei depois durante trinta e cinco anos, sem quaisquer problemas de ordem disciplinar.
E quando os fracassos e o bullying, seja este da parte de alunos, da Direcção, ou de colegas, levam ao suicídio, como ocorreu com o professor de Música da Escola de Rio de Mouro? Isso é mesmo o fim. O suicídio resulta de um conflito insanável connosco próprios. É o desespero total, e desespero significa esperança zero. É todo um futuro vazio, sem rosto, que assoma ao espírito do suicida. A certa altura, a ideia torna-se fixa. Sem amparos verdadeiros, o suicida não resiste.
Já aqui abordei o caso dos suicídios por motivos laborais em França e na Bélgica. Alguns terão igualmente acontecido em Portugal. No domínio da educação torna-se especialmente penoso, porque educar é construir e não destruir, é edificar, instruir. Tudo o que não seja isto é obviamente aberrante. O caso do professor de Música que não aguentou a pressão de uma das suas turmas e aparentemente nem recebeu amparo de ninguém, nem viu os provocadores serem advertidos, é trágico também por isso. A falta de pulso para punir quem prevarica faz a indisciplina grassar em muitas das nossas instituições. Existe um clima de hipertolerância e correspondente hiperimpunidade. É um péssimo serviço prestado à nobre causa da educação e uma desatenção por vezes irreparável, como neste caso aconteceu.
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