4/29/2010

Mais dois casos, estes da guerra colonial em Angola

Estes dois casos datam do já remoto ano de 1963. Reproduzo as palavras que na altura escrevi.

"Tomar a nuvem por Juno" é uma expressão muito vulgar que, na maioria dos casos, significa que nos iludimos e supomos que uma coisa é diferente daquilo que de facto é. Aconteceu-me hoje aqui na Fazenda Tentativa algo que, pela segunda vez num espaço de tempo relativamente curto, constitui um bom exemplo do significado daquela expressão.
Com um entardecer de sonho, uma temperatura amena e as palmeiras da Fazenda recortando-se no horizonte contra um céu rubro, fui dar um passeio por esta imensa propriedade, sorvendo com o olhar as várias dádivas que a natureza magnífica me ia oferecendo. A dada altura, divisei ao longe um grupo relativamente grande. Pareciam-me mulheres. Confirmei-o ao aproximar-me um pouco mais. Todas de preto. Ajoelhadas num local do palmar que nada parecia ter de especial. Mantive-me a alguma distância para não perturbar. Ciente da possibilidade, nunca de excluir, de ver mulheres a servir de alguma maneira interesses de eventuais rebeldes, observei a cena. Mantiveram-se ajoelhadas e recolhidas em silêncio enquanto o sol se ia pondo. Era uma cena estranha, muito bela. De filme. Que significado teria? O que estariam aquelas mulheres a fazer ali? Formou-se-me uma dúvida no espírito, dúvida que só ao jantar, com um dos funcionários da Fazenda, consegui esclarecer. "O sr. alferes viu mesmo essas mulheres junto ao palmar? Exactamente em que sítio?" Dei-lhe a localização precisa. "Isso é muito interessante. Que dia é hoje? Pois, tem de ser isso. Foi mais ou menos por esta altura que há dois anos vários homens que trabalhavam aqui na Fazenda foram considerados suspeitos de estar a maquinar algo cá dentro. Interrogados pela tropa e também pela polícia, uns terão feito declarações que os comprometeram, outros não terão aberto a boca. Não sei dizer com rigor o que se passou porque não assisti a nada. Mas sei que, para cortar o mal pela raiz, foram todos mortos. Mortos e enterrados numa larga vala comum, que um tractor abriu aqui na Fazenda. As mulheres desses homens ficaram por cá, bem como os filhos, se os tinham. O que viu hoje, porque foi esse o local que me indicou, foi uma romaria das mulheres ao lugar dessa vala comum, no meio dos palmares. Possivelmente faz anos que eles lá foram enterrados!"
Não sei o que dizer desta triste e comovente história da guerra de Angola. Ela fala por si.

Tenho, entretanto, uma outra nuvem em forma de Juno. Também recente. Passou-se no Libongo, antes de eu vir aqui para a Tentativa. Junto à Fazenda, existe a sanzala Terra Nova, onde fui muitas vezes. É uma sanzala com uma população simpática, mas bem mais suspeita do que esta da Tentativa relativamente a contactos com núcleos de nativos armados, por ficar mais a norte e, por conseguinte, ter maiores probabilidades de estabelecer contactos com rebeldes. Nas minhas visitas por ali e mesmo na Fazenda Libongo, notei em mais do que uma rapariga algo que me intrigou: um fio vermelho na parte da frente da T-shirt que usavam, do lado do coração. Que significado teria aquele fio de lã vermelho? Perguntei a colegas meus, que não souberam dar-me uma resposta cabal e concreta. "Não será um sinal combinado?" "Não faço a mínima ideia!" A questão arrastou-se. Até que um dia, vendo uma moça sozinha, desenvolta, talvez com 19 ou 20 anos e com o tal fio vermelho na T-shirt, decidi-me. Abeirei-me dela. Recuou um pouco. Dei dois dedos de conversa primeiro. Perguntei-lhe amigavelmente se era dali e como se chamava. A moça respondeu-me sem quaisquer problemas. Mas para mim o importante era outra coisa. Disparei então de chofre, embora no mesmo tom cordial: "Ouve lá, para que é o fio de lã vermelho aí do lado esquerdo?" Ficou muda. Senti que ela não corava pela simples razão de que a sua cor não permite ver o sangue aflorar à face. Mas não estava muito à vontade. Um flash de satisfação perversa passou-me pela mente: "Apanhei-a! Apanhei-os! Ela não vai poder fugir e irá ter que confessar que sinal é este para os homens que estão na mata e se juntaram aos terroristas." Insisti. "Então, para que é esse fio vermelho?" A resposta lá veio finalmente, algo gaguejada por causa do embaraço, mas totalmente sincera e bem explícita: "É para avisar o meu namorado de que estou com o sangue. Estou no período!"
São as raparigas que são suspeitas, ou sou eu que estou a precisar de ir ao médico, de tão contaminado que estou, devido à guerra, de uma desconfiança absolutamente exagerada nas pessoas?

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