5/01/2004

Privilégios

Nunca vivi no campo. Nunca vivi numa cidade de província. Talvez por isso tenha a nostalgia da vida saudável ao ar livre, em contacto estrito com a natureza, e do natural e gratuito suplemento de vitamina D de que os camponeses beneficiam. Fujo o mais que posso de ambientes fechados, odeio centros comerciais, onde não há nada de natural, nem luz, nem canto de pássaros, nem árvores.

Certamente por isso, a minha visão do paraíso terrestre é, invariavelmente, um qualquer lugar isolado, de preferência favorecido em beleza natural, muitos livros e muita música.

Não há muito tempo dei uma escapadela de Lisboa, em busca de um desses paraísos. Muito bem instalada na minha solidão havia dias, soube de um concerto que ia acontecer nessa noite, no âmbito de umas jornadas de debate sobre agricultura. Nem pensei duas vezes: a música e a oportunidade de conhecer a capela do convento da pequena terra beirã em que me encontrava fizeram-me pegar no carro, abandonado no parque de estacionamento desde a chegada.

Não, não é sobre a qualidade da música ali feita que me quero pronunciar, embora sobre isso a reflexão possível vá chegar exactamente ao meu alvo: depois de ter acesso a tudo o que de bom se faz a nível mundial e passa por Lisboa, depois de ouvir vezes sem conta as melhores gravações das melhores obras, mesmo que se não possa ou não queira ser intolerantes, o nosso ouvido torna-se tirano: exige o melhor!

Afinal nós, lisboetas, somos uns privilegiados e não temos muita consciência disso. Concluí eu, que costumo achar privilegiado quem respira bom ar, não tem filas de automóveis para chegar ao trabalho, pode ir almoçar a casa, quem sabe até debaixo da árvore secular lá do quintal...

O tema do concerto era a música popular portuguesa ligada às tradições religiosas do natal, da páscoa e ao culto mariano. Intercalada por uma ou outra pequena peça para órgão.
Com pompa e circunstância, a assistência teve direito a apresentação dos artistas e explicação das obras apresentadas, feitas por uma dinâmica senhora, depreendo que pessoa das chamadas “forças vivas” locais.

E aqui, santa paciência, tenho eu que “bater” sem complacências. Sob o pretexto de que a cultura não ocupa lugar, como foi dito, foi um desfilar de “erudição”, misto de biografia detalhada de compositores e teoria musical, vocabulário rebuscado, longas transcrições de textos de Lopes Graça e Giaccometi, e... muita asneira à mistura. Desde erros gramaticais, a palavras usadas completamente a despropósito, a um pobre Pergolese rebaptizado de Pergossoli!

Adoraria ter sabido o que pensou daquele discurso a senhora ao meu lado, que olhou para o programa que lhe puseram nas mãos calosas, lhe deu várias voltas para cima, para baixo, (letras e mais letras, figuras nenhumas!...) e o pousou sem perceber sequer em que sentido é que se lia... Adoraria saber o que captou de todas aquelas palavras. Ela, “a privilegiada” que, a julgar pelo tom da pele, vive ao ar livre, tem uma vida provavelmente mais saudável do que a minha...e não sabe ler.

Senti vergonha de ter presenciado aquela cena, no meu país, no século XXI. Tive vontade de lhe pedir desculpa pelo que ela não percebeu do discurso. Pelo que não foi capaz de ler no programa. E por me esquecer tão frequentemente da sorte que tive em ter tido acesso a bens culturais tão elementares quanto a escolaridade básica. Estaria eu hoje a dar voltas ao programa, sem saber o que fazer com ele, se acaso tivesse nascido num meio rural do chamado “país profundo”?

É fácil invejar a vida saudável, o chilreio dos pássaros, o sol, o rio a correr ali ao lado, quando se tem tudo e um carro à nossa espera na garagem.

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