12/05/2005

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...do António.
Vou cingir-me ao universo cujos meandros conheço bem - o do ensino ensino secundário.
1- A sua componente lectiva sem reduções traduz-se numa carga horária de 20 horas semanais, podendo esta carga emagrecer, em virtude do desgaste que leccionar provoca, até às 12 horas. O desvio relativamente às 35 horas que um funcionário público trabalha por semana corresponde justamente às 15 horas que, na minha opinião, devem na totalidade ser agregadas à componente não lectiva individual, abusivamente considerada tempo livre. Acho ainda que a componente não lectiva dada à escola deve integrar apenas as diversas tarefas «volantes» não registadas no horáro dos docentes (por exemplo, reuniões), as quais, naturalmente, não devem em circunstância alguma beliscar o calendário lectivo propriamente dito, sobrepondo-se-lhe. A especificidade associada à componente lectiva da docência manifesta-se, entre outras coisas, na flagrante diferença entre uma hora de trabalho burocrático e o mesmo tempo passado dentro de uma sala de aula com 26/28 alunos por norma indisciplinados - sei do que falo, pois fui funcionária pública durante alguns anos.
2- Mas concedo que o tempo liberto pela redução da componente lectiva deva estar ao serviço da componente não lectiva dada à escola. A minha carga horária lectiva encontra-se actualmente reduzida a 14 horas e era apenas esse o tempo, quando não havia também reuniões, que eu passava na escola há um ano atrás, antes da revolução burocrática em curso. Assim, acho absolutamente justo dar à escola as 6 horas de redução a que por lei tenho direito. Mas de facto passo, além dessas 6, mais 5 horas por semana na escola - sem outro «benefício», juro, além do dano que isso repercute na qualidade do meu trabalho em casa. Acrescente-se, em abono da verdade, que não me importaria nada de passar 35 horas por semana numa escola que me proporcionasse metade das condições de trabalho de que disponho em casa. Sem contar com o dinheiro que pouparia em livros, papel, tinteiros de impressora e outros recursos...
3- Acresce que, mesmo trabalhando apenas 35 horas por semana (as 14 da componente lectiva + as 6 da componente não lectiva que acho justo dar à escola + as 15 por cuja gestão responderia individualmente), trabalharia decerto sempre mais do que o funcionário público em que a tutela tenciona converter-me. A unidade de tempo lectivo, mesmo com o prazer que dar aulas proporciona, é muito mais desgastante, insisto, do que a equivalente burocrática. Aceito que seja normal o esforço de actualização de conhecimentos exceder a órbita das 35 horas. O que já não me parece tão normal é que, somado às horas que tenho de estar na escola, o tempo dispendido, entre mais tarefas, a preparar/planificar aulas, a elaborar testes e outros materiais, a corrigir testes e restantes trabalhos dos alunos, extravase frequentemente a referida órbita, comprometendo com frequência a disponibilidade - objectiva e subjectiva - para pôr em prática essa actualização! E já que se chama à liça o exemplo de médicos, advogados, mecânicos e carpinteiros, convém não esquecer que se trata de profissões: cujo horário de trabalho, em grande parte flexível, não é honestamente comparável à rigidez total do meu; cujo esforço de actualização pode em muitos casos coabitar com o horário «formal» de trabalho, ao passo que eu sou obrigada a actualizar-me (basicamente lendo) fora da escola - a natureza das minhas tarefas e as condições medíocres que as escolas portuguesas proporcionam não toleram outra opção.
4- Quanto à disponibilidade dos professores (pelos vistos, um privilégio) para frequentarem livrarias entre as 9 e as 18 horas, ela decorre tão só do facto de em muitas escolas a mancha horária da componente lectiva se distribuir variavelmente por 2 turnos: diurno (8 a 10 horas) e nocturno (6 horas). Começo, muito sinceramente, a ter inveja de quem, como os funcionários públicos e certos livreiros, trabalha 8 horas por dia - com o pormenor aliciante de não levarem, a não ser excepcionalmente, trabalho para casa!
5- Aproveito para eslarecer que me repugna um sistema de ensino centrado, como o nosso, no aluno. Reflecte, no seu populismo, prioridades bem típicas do estilo cunhado «eduquês» e é largamente responsável pelo actual insucesso escolar. Aluno e professor são duas faces da mesma dialéctica moeda - a degradação de um infecta irremediavelmente o outro. O único referencial legítimo de qualquer sistema de ensino é, penso eu, precisamente o ensino. Apenas a sua qualidade, desígnio verdadeiramente nacional, deve nortear as opções estratégicas da tutela, não os interesses particulares de professores, alunos ou encarregados de educação! Mas também não será grande pecado, julgo, ter e defender interesses particulares, dos professores ou outros, desde que compatíveis com o superior interesse público. E não é ferindo arbitrariamente o interesse dos docentes (executando cegamente escolhas por sinal correctas no essencial) que a Ministra da Educação vai conseguir melhorar a qualidade do ensino. Apenas vai conseguir com isso o que já conseguiu em parte: desmotivar e deprimir. Ora - e aqui atingimos o coração do problema - um bom professor desmotivado e deprimido é uma contradição nos termos, mesmo que o obriguem a passar 35 horas na escola! Os medianos, bons ou excelentes professores sentir-se-ão, em grau variável, acossados e isso reflectir-se-á negativamente no seu desempenho; os medíocres ou maus continuarão impunemente, «motivados» pela inoperância cúmplice da tutela, a fazer a greve de zelo que sempre fizeram.
6- Haja moralidade... mas que não paguem todos! Não é burocratizando indiscriminadamente heróis e vilões que o Ministério da Educação vai conseguir inflectir o desempenho dos docentes prevaricadores. O facto de passarem a «picar o ponto» não os impedirá, garanto, de continuar a prevaricar! E o «nivelamento por baixo» do corpo docente, seguramente um dos cancros que corrói as nossas escolas, tornar-se-á ainda mais rasteiro. Acontece que os decretos são necessários mas não suficientes para fabricar bons professores...
Que fazer? Para mim a resposta é obvia: promover, a montante de qualquer outra medida, uma credível avaliação externa do desempenho dos docentes e disso extrair corajosamente as dolorosas consequências práticas (que vão onerar, hélas, os cofres do Estado). Mas isso é outra conversa e esta já vai demasiado longa.

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