12/08/2005

O canto da cigarra

Caro António:
Sei que existem padrões laborais à luz dos quais trabalhar 50 ou 60 horas por semana é considerado coisa normal. São sem dúvida, também por essa razão (mas não só), padrões mais empreendedores do que o da função pública. Aproveito para lhe dizer que tenho alguns colegas que trabalham por sistema muito mais do que as famigeradas 35 horas semanais. Ninguém os obriga a tal, são simplesmente «workoholics»... Eu, que sou muito mais contemplativa do que empreendedora (coisas do temperamento!), trabalho sensivelmente as 35 horas, por vezes menos, por vezes bastante mais (esta semana e a próxima, por exemplo, em que tenho as provas de Filosofia de 4 turmas para corrigir, além das aulas para preparar). Mas de facto não me sinto nada motivada para dilatar o meu horário laboral e estou genuinamente persuadida de que a hipótese de vir a trabalhar mais horas, sobretudo no «minimalista» espaço físico da minha escola da era do achaque tecnológico (e não é, nem de longe nem de perto, das piores!), não fará de mim uma professora substantivamente melhor. O luxo supremo, na minha contemplativa (talvez demasiado aristocrática...) bitola, chama-se TEMPO - trocaria de bom grado dinheiro por tempo. Por exemplo, tento sempre (por acaso este ano sem sucesso mas com a correspondente compensação venal) furtar-me à obrigação de fazer horas extraordinárias.
Como vê, aquilo que nos separa é muito mais do que a diferença, admito que abissal, entre as respectivas realidades laborais... É toda uma concepção de vida que está em jogo - cigarras versus formigas! Mas eu, cigarra intempestiva destes anos de apocalipse anunciado, procuro ainda assim interagir honestamente com as laboriosas formiguinhas, suando de facto (não apenas picando o ponto nas aparências) o suficiente para obter resultados que me colocam por vezes, na linha de chegada, à frente das formigas (que as há também, insisto, na escola pública).
Além disso, dado o meu relativo desprendimento no que toca a retribuições materiais, não me importo nada de auferir um ordenado com certeza muito inferior, apesar de já me encontrar no topo da carreira, aos de boa parte da «legião de quadros voluntaristas» a que se refere. Sem pôr em dúvida o sentido de responsabilidade ou o amor «à camisola» desses quadros, imagino que eles não serão completamente imunes à força atractora do vil metal (eu, displicente cigarrinha, não o seria se estivessem em jogo determinadas remunerações estratosféricas ou mesmo só a expectativa realista de recebê-las no futuro).
Decerto já percebeu, neste ponto da nossa conversa, que não é o meu doloroso caso pessoal (as cigarras não cultivam chagas) que me anima a responder-lhe. Convenhamos que ele não é assim tão doloroso - jogo por natureza bem à defesa e, além do mais, nesta fase já adiantada do meu campeonato, tenho o usufruto (parcimonioso!) do posto que a antiguidade dá. É o meu tenaz, talvez um tanto obsessivo, fraquinho pela coerência (valor tão degradado, ultimamente, pela tutela da Educação) que me anima a exibir na blogosfera a minha politicamente incorrecta alma de cigarra até hoje tão cuidadosamente «encapuchada». Que pensa o António da condição laboral da «legião» (também ela em grande parte esforçada) de colegas meus - sem vínculo estável ao sistema de ensino e com fraquíssimas expectativas de o obterem - que por mês recebem, ilíquidos, 1058,60 (os licenciados tout court) ou 1268,64 (os profissionalizados) euros? Muitos deles condenados a fazer uma pipa de quilómetros casa/escola, nisso «investindo», sem recurso a qualquer subsídio mitigador, boa fatia do seu ordenado! Acha sensato que se lhes peça que trabalhem mais de 35 horas semanais?! Assumo que concordará que esta questão não é apenas de direito(s) mas sobretudo, flagrantemente, de justiça (comparativa e absoluta). Ou, se preferir, uma básica questão de moral.
E, para terminar, permita - ainda em abono da coerência (o que me torna, pensando bem, uma cigarra um bocadinho atípica) - que tire algumas singelas ilações de uma notícia ainda fresca: provavelmente vão acabar os exames nacionais de Português (no 12º ano) e Filosofia (no 11º ano). O de Filosofia, aliás, não chegou sequer a começar.
Sem me deter nos pressupostos economicistas de mais esta opção da tutela (trata-se de exames obrigatoriamente feitos pela totalidade dos alunos do secundário, sendo curial inferir que a sua extinção, além de cativar politicamente muitos encarregados de educação, permite ao Estado poupar umas valentes massas), desejo confessar o seguinte a todas as formigas deste país:
Os impostos que vocês pagam para sustentar o meu dolce far35 em nada contribuem para a certificação da putativa qualidade do meu desempenho. Aqui declaro solenemente que nunca fui objecto, tirando o episódio do estágio, de qualquer tipo de avaliação externa (a interna, poupo-vos os pormenores obscenos, tem sido uma anedota). Se, por mero acaso, alguma valia tenho como docente, isso deve-se acima de tudo à excelência de alguns colegas e alunos com quem me cruzei, talvez ligeiramente ao parco talento dispensado pelo meu modesto ADN. Também terá contribuído alguma coisa a vergonha na cara incutida pela educação que recebi...
Numa palavra, vocês têm passado, e vão continuar a passar, cheques em branco a esta cigarra que se assina Capuchinho! Ainda por cima uma cigarra das bandas da Filosofia, cujos alunos nunca foram (e tudo indica que nunca serão) submetidos a exame nacional! Concluindo: o Ministério da Educação, ao pretender eliminar um instrumento crucial de avaliação externa (ainda que indirecta) do meu desempenho, prepara-se para matar no ovo a única boa oportunidade de vocês, caras formigas, poderem finalmente, como é vosso direito inalienável, pedir-me contas. Enfim, malhas que o «eduquês» tece...

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