11/21/2003

Democracias ditatoriais

Quero optimisticamente pensar que está a formar-se no meu país uma vaga de fundo que gradualmente irá desmascarar a pseudo-democracia em que vivemos. Sempre aprendi que a grande virtude da democracia consistia na livre expressão das minorias para que estas não sejam esmagadas e possam mesmo um dia tornar-se maiorias. Ora, sucede que presentemente neste país cada vez mais os governos pretendem gerir a nação como se ela fosse sua coutada. À maneira de empresários donos das suas empresas, os governantes crêem que num sistema democrático podem ser senhores de uma nação durante o período para o qual foram eleitos. Esta é, como se torna óbvio, uma forma naturalmente perversa de entender a democracia. “As minorias que se calem, porque no governo estamos nós, e nós não só sabemos decidir como estamos legitimamente empossados para o fazer.” E sentem-se como se não tivessem satisfações a dar. É com enfado que respondem a questões. Quando o fazem, atacam pessoas e não ideias. Como grandes proprietários acreditam poder decidir a seu belo prazer. Nós, meros cidadãos, passamos assim a ser governados de uma forma que não se desassemelha totalmente da ditatorial, só que legitimada pelo voto.

Esquecendo-se do ligeiro pormenor de que foram eleitos apenas para administrar o país, os governantes fazem-se rodear de homens da sua confiança. Não de cidadãos em que a nação pode confiar pela sua probidade e conhecimentos técnicos; antes de homens da sua confiança política, pessoas que estão incondicionalmente com os seus patrões a defender o que aqueles consideram correcto. Tudo o que seja oposição, opiniões adversas e contestatárias, varre-se de uma penada. Para isso, tenta-se ir reduzindo os media o mais possível ao pensamento único, ao diktat de quem sabe e governa.

Os Estados Unidos chamam aos seus governos “administração”. Existe uma grande verdade democrática neste conceito – o que não quer dizer que essa verdade tenha vindo ultimamente a ser observada. O conceito de administrar, não sendo muito diferente do de governar, apresenta no entanto algum distanciamento maior relativamente à coisa administrada. Uma condicionante da democracia é a transparência de quem administra a nação. Só com essa transparência podem os governos proporcionar a prestação de contas (“accountability”) que é devida aos cidadãos. Com as devidas ressalvas para os serviços secretos que, pela sua natureza têm mesmo de permanecer no maior sigilo, a transparência tem que imperar. Porquê? Para que os cidadãos votantes saibam como os diversos sectores do seu país estão a ser geridos – a educação, a saúde, o território, a defesa, a justiça. As razões das políticas adoptadas devem ser dadas com verdade e não com mentiras disfarçadas. Infelizmente, este governo parece ter lido e concordado com a conhecida reflexão de Fernando Pessoa: “As massas odeiam a verdade, conduzem-se por mentiras. Quem quiser conduzi-las, terá que mentir-lhes delirantemente, e fá-lo-á com tanto mais êxito quando mais mentir e se compenetrar da verdade da mentira.“

O que interessa acima de tudo aos senhores do poder é governar ditatorialmente e sem que ninguém lhes faça sombra. Para isso, pretendem maiorias absolutas. A partir dessas maiorias absolutas, sentem que tudo está ao seu alcance. E legitimado, até. Há óbices de vulto, por vezes. A Constituição portuguesa é um deles. Ela defende princípios que são uma garantia de que os detentores do governo não podem ultrapassar certos limites. Pois que pretendem agora os detentores do governo português? Que se altere a Constituição! Alterando a base, conquistam um poder de manobra mais alargado. Para alterarem a Constituição, porém, necessitam de mais do que de simples maioria; carecem da aprovação de dois terços dos deputados eleitos. Irá algum dos outros partidos satisfazer-lhes o seu voraz apetite?

O indicador mais expressivo do desejo que popularmente se traduz por QPM (“quero, posso e mando”) é dado pela pretensão já expressa pelo actual governo de alterar os mandatos parlamentares e autárquicos para cinco anos, fazendo portanto com que os mesmos coincidam com os mandatos presidenciais. É a constelação total. Prevendo um Presidente da República em 2006 com as suas cores, fariam o pleno! Sem oposição de qualquer ordem, ajudados pela retocada Constituição, com o apoio incondicional dos media que tenderiam a dominar na quase totalidade, que melhor paraíso poderiam ter criado?

Com democratas assim, Portugal não vai longe. Talvez vá apenas até aos braços do seu vizinho do lado.

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